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Cansado da criminalidade, Brasil aceita a contragosto a violência policial

Moradores do morro do São Carlos, localizado na cidade do Rio de Janeiro, voltaram a protestar na noite da última sexta-feira (15) por causa da morte de dois homens na comunidade - Alexandre Cassiano/Agência O Globo
Moradores do morro do São Carlos, localizado na cidade do Rio de Janeiro, voltaram a protestar na noite da última sexta-feira (15) por causa da morte de dois homens na comunidade Imagem: Alexandre Cassiano/Agência O Globo

Simon Romero e Taylor Barnes

22/05/2015 06h01

Eduardo de Jesus estava à porta de sua casa no Complexo do Alemão, um vasto labirinto de casas de blocos de concreto aqui, quando sua mãe ouviu o som de disparos.

Segundos depois, ela viu Eduardo, 10, caído morto devido a um ferimento de bala na cabeça, e ela correu na direção do policial que segurava a arma.

"Eu o agarrei pelo colete e gritei: 'Você matou meu menino, seu desgraçado'", disse sua mãe, Terezinha Maria de Jesus, 40.

"Ele me disse: 'Assim como matei seu filho, posso matar você também', apontando o fuzil dele para a minha cabeça", ela prosseguiu. "Eu lhe disse: 'Vá em frente. Você já matou parte de mim. Pode matar o resto'."

As imagens do corpo sem vida de Eduardo e os gritos de seus vizinhos condenando a polícia, registradas em celulares e compartilhadas pelas redes sociais por todo o Brasil desde o episódio no mês passado, oferecem um raro vislumbre do senso de desespero em uma sociedade onde as mortes pela polícia são tão comuns que fazem o número nos Estados Unidos parecer pequeno.

Pelo menos 2.212 pessoas foram mortas pela polícia no Brasil em 2013, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um grupo independente de pesquisa, e especialistas dizem que é provável que o número real seja substancialmente maior, já que alguns Estados não informam as mortes por suas forças policiais.

Nos Estados Unidos, com 100 milhões de habitantes a mais que o Brasil, o FBI registra bem menos mortes pela polícia: 461 em 2013, o ano mais recente para o qual há dados disponíveis. Outras estimativas elevam o número nos Estados Unidos para até 1.100, ainda assim nem metade do número de mortes por policiais no Brasil.

Mas, enquanto as mortes pelas mãos da polícia provocam protestos febris por todos os Estados Unidos, incendiando cidades como Baltimore e Ferguson (Missouri), elas costumam ser aceitas a contragosto no Brasil como uma característica normal do policiamento em um país cansado de crimes violentos.

"É claro, o senso de ultraje seria diferente se as vítimas fossem meninos com cabelos loiros e olhos azuis vivendo nos bairros ricos, mas não eram", disse Antônio Carlos Costa, um pastor presbiteriano que ajuda a rastrear casos de crianças com menos de 14 anos que são mortas pela polícia. "As crianças, adolescentes e adultos mortos pela polícia no Brasil são vítimas de um massacre no qual o número de baixas é maior do que em algumas zonas de guerra."

Com as mortes pela polícia aumentando no Rio, enquanto as autoridades agem em preparação para os Jogos Olímpicos no ano que vem, ocasionalmente a população se revolta.

Após a morte de Eduardo, a polícia reprimiu as manifestações no Complexo do Alemão, um conjunto de favelas, disparando bombas de fumaça e balas de borracha. Os manifestantes em outra área de favelas do Rio, o Complexo de São Carlos, incendiaram ônibus neste mês, após acusarem uma unidade da polícia de ter matado dois homens.

Mas, em vez de provocar uma ampla resposta às mortes pela polícia, o fenômeno oposto está ocorrendo em grande parte do Brasil: os defensores de táticas mais duras de policiamento estão se tornando mais fortes.

Em resposta aos temores em um país cansado de crime, com mais homicídios que qualquer outro -–50.108 em 2012, segundo a ONU-–, políticos conservadores provenientes das forças policiais e com posições duras contra o crime obtiveram grande votação nas recentes eleições estaduais e federais, reforçando o que é chamado no Brasil de "Bancada da Bala" no Congresso.

Alguns membros da Bancada da Bala comemoram abertamente o número de pessoas mortas durante o patrulhamento das ruas. Um astro político em ascensão, o coronel Paulo Telhada, se gabou de ter matado mais de 30 pessoas como policial em São Paulo, dizendo em uma entrevista recente que não tem pena de bandidos.

"Há partes da classe média que aceitam as mortes pela polícia como práticas legítimas", disse Ivan C. Marques, diretor do Instituto Sou da Paz, um grupo que monitora questões policiais.

Apenas no Estado do Rio, a polícia matou pelo menos 563 pessoas em 2014, um aumento de 35% em comparação ao ano anterior, segundo o Instituto de Segurança Pública do Estado.

Isso representa significativamente mais do que o FBI registrou em todos os Estados Unidos, que contam com uma população cerca de 20 vezes maior do que a do Estado do Rio de Janeiro.

"Às vezes é preciso a morte de um menino de 10 anos para sacudir as pessoas a perceberem que há uma tragédia se desdobrando em escala épica", disse Ignacio Cano, pesquisador de questões policiais. "Infelizmente, apenas quando a vítima é escandalosamente inocente é que toca um nervo."

Muitos casos não resolvidos em que crianças são mortas são simplesmente chamados de casos de "bala perdida". Alguns casos aconteceram durante as operações antidrogas em áreas altamente povoadas, levantando questões sobre a estratégia comum de realizar grandes incursões policiais agressivas em áreas residenciais.

Os pesquisadores dizem que os motivos para o grande número de mortes pela polícia são diversos. Para começar, forças policiais mal remuneradas e mal treinadas em favelas infestadas de crime costumam apresentar um instinto de atirar primeiro, que vem de uma mistura de medo, paranoia e um senso de impunidade.

Algumas unidades de elite, como o Batalhão de Operações Policiais Especiais no Rio, anunciam abertamente, e até glorificam, seu poder letal. O símbolo da unidade é uma caveira e pistolas cruzadas.

Mas analistas dizem que esses esquadrões são apenas a ponta afiada de sistemas policiais maiores nos quais os criminosos, ou pessoas consideradas criminosas, são considerados elementos indesejáveis que não podem ser recuperados. Já que muitas gangues do narcotráfico controlam muitos presídios no Brasil, prender criminosos e enviá-los para a prisão é visto por alguns policiais como uma forma de alimentar a criminalidade, não de reduzi-la.

Muitos casos envolvendo a polícia são registrados como "mortes por resistência à prisão" ou "mortes em confronto com a polícia", apesar de grupos de direitos dizerem que os episódios com frequência representam execuções sumárias.

"Para a polícia, é mais fácil e entendido como uma solução matar supostos criminosos", disse Graham Denyer Willis, um professor da Universidade de Cambridge que estuda a polícia do Brasil. Com as mortes rotineiramente aceitas como subproduto inevitável da redução da insegurança em algumas cidades, o resultado é "inequivocamente uma forma de limpeza social", ele disse.

Às vezes, as autoridades exaltam a prática.

"Vou dar uma medalha para cada bandido que ele mandou para o inferno", disse André Puccinelli, o governador do Estado de Mato Grosso do Sul, enquanto elogiava um policial de folga que matou dois homens armados que tentavam roubar uma loja.

Aqui no Estado do Rio, as autoridades dizem que o número de mortes pela polícia caiu de 1.330 em 2007 para 563 em 2014, ao enviarem forças de segurança às favelas na chamada campanha de pacificação. Mas as autoridades de segurança reconheceram que o problema persiste.

"Nós precisamos de muito mais treinamento para preparar a polícia para territórios onde ainda temos muita dificuldade para trabalhar", disse o coronel Robson Rodrigues, um alto oficial da polícia estadual do Rio. "As atividades policiais ainda precisam de alguma correção."

Grupos de direitos questionam se as autoridades estão tentando coibir as mortes pela polícia. Em um estudo, Michel Misse, um sociólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, examinou 707 casos de mortes pela polícia e descobriu que os promotores se recusaram a indiciar os policiais em mais de 99% deles.

No caso de Eduardo, o menino de 10 anos morto em abril, uma porta-voz da polícia disse que o caso ainda está sendo investigado.

Terezinha Maria de Jesus, a mãe de Eduardo, diz que se pergunta se a polícia achava que seu filho estava armado, apesar da morte ter ocorrido à luz do dia e o pequeno celular branco na mão dele estar longe de lembrar uma arma. Terezinha disse que ela e seus vizinhos correram para impedir que os policiais manipulassem a cena, temendo que pudessem plantar uma arma perto do corpo de Eduardo.

Luiz Fernando Pezão, o governador do Rio, reconheceu aos repórteres que um "erro" ocorreu na morte de Eduardo, chamando o episódio de "lamentável".

Tradução: George El Khouri Andolfato