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Imigrantes são forçados a trabalhar em pesca para ração animal na Ásia

Pescadores de Mianmar descansam em um barco em Songkhla, na Tailândia - Adam Dean/The New York Times
Pescadores de Mianmar descansam em um barco em Songkhla, na Tailândia Imagem: Adam Dean/The New York Times

Ian Urbina

Em Songkhla (Tailândia)

28/07/2015 06h01

A provação de Lang Long teve início na traseira de um caminhão. Após assistir seus irmãos mais novos passarem fome porque a plantação de arroz da família no Camboja não podia sustentar a todos, ele aceitou a oferta de um traficante para cruzar a fronteira tailandesa para um trabalho no setor de construção civil.

Era sua chance de recomeçar. Mas quando chegou, Long foi mantido por dias por homens armados em uma sala perto do porto de Samut Prakan, a mais de duas dezenas de quilômetros a sudeste de Bancoc. Ele então foi conduzido com seis outros imigrantes por um passadiço até um velho navio de madeira. Foi o início de três anos brutais em cativeiro no mar.

"Eu chorava", disse Long, recontando como foi revendido duas vezes entre barcos de pesca. Após repetidas tentativas de escapar, um capitão o acorrentava pelo pescoço sempre que outras embarcações se aproximavam.

As tripulações de Long pescavam principalmente peixes de forragem, que são pequenos e baratos. Grande parte de sua pesca vem de águas além da costa da Tailândia, onde Long foi mantido, e vendida para os Estados Unidos, principalmente na forma de ração enlatada para cães e gatos, ou como ração para aves, porcos e peixes de aquicultura, não para consumo pelos americanos.

A miséria suportada por Long, que foi resgatado por um grupo de ajuda, não é incomum no mundo marítimo. Os abusos trabalhistas no mar podem ser tão severos que os meninos e homens que são suas vítimas poderiam muito bem ser cativos de eras passadas. Em entrevistas, aqueles que fugiram narram violência terrível: doentes atirados ao mar, o desafiador sendo decapitado, o insubordinado sendo mantido por dias no compartimento escuro e fétido reservado para a pesca sob o convés.

As práticas cruéis se intensificaram nos últimos anos, como mostra uma análise de centenas de relatos, fornecidos por centenas de marinheiros que fugiram, à polícia, autoridades de imigração e funcionários de direitos humanos. Isso se deve às frouxas leis trabalhistas marítimas e à demanda global insaciável por peixes e frutos do mar.

Registros de navegação, dados aduaneiros e dezenas de entrevistas com autoridades marítimas e de governo apontam para um maior uso de pesca de longo curso, na qual as embarcações permanecem no mar, às vezes por anos, distantes do alcance das autoridades. Com o aumento dos preços dos combustíveis e menos peixes próximos da costa, os especialistas em pesca preveem que mais embarcações recorrerão a ir mais longe, exacerbando o potencial de maus-tratos.

"A vida no mar é barata", disse Phil Robertson, vice-diretor da divisão para a Ásia da Human Rights Watch. "E as condições lá fora continuam piorando."

Apesar de trabalho forçado existir por todo o mundo, em nenhum outro lugar o problema é mais pronunciado do que aqui no Mar do Sul da China, especialmente entre a frota pesqueira tailandesa, que enfrenta uma escassez anual de cerca de 50 mil marinheiros, com base em estimativas da ONU. A escassez é preenchida principalmente por imigrantes, a maioria do Camboja e Mianmar.

Muitos deles, como Long, são atraídos a cruzar a fronteira por traficantes apenas para se tornarem escravos nos campos de trabalhos forçados flutuantes. Com frequência eles são espancados pelas menores transgressões, como costurar uma rede rasgada lentamente ou colocar por engano cavala no balde para arenque, segundo um levantamento da ONU envolvendo cerca de 50 homens e meninos cambojanos vendidos para barcos pesqueiros tailandeses. Dentre os entrevistados no levantamento de 2009, 29 disseram ter testemunhado seu capitão ou outro oficial matar um trabalhador.

Os imigrantes, que são relativamente invisíveis, porque a maioria não possui documento, desaparecem além do horizonte nos "navios fantasmas" –-embarcações não registradas que o governo tailandês nem sabe que existem.

Eles geralmente não falam a língua de seus capitães tailandeses, não sabem nadar e nunca estiveram no mar antes de serem abduzidos da costa, segundo entrevistas na Malásia, Tailândia e Indonésia. Essas entrevistas, no porto ou em barcos pesqueiros no mar, foram conduzidas junto a mais de três dezenas de marinheiros ou ex-tripulantes.

A intervenção do governo é rara. Apesar dos pactos da ONU e de várias proteções de direitos humanos proibirem o trabalho forçado, os militares e agentes da lei tailandeses fazem pouco para coibir o mau comportamento em alto-mar. Autoridades da ONU e organizações de direitos acusam alguns deles de receberem suborno dos traficantes, para permitir salvo conduto pela fronteira. Os imigrantes relatam com frequência serem resgatados por policiais, apenas para serem revendidos para outros contrabandista.

Long não sabia o destino do peixe que pescava. Mas ele sabia que grande parte do peixe de forragem do último barco onde foi mantido era destinado à fábrica de conservas Songkla Canning Public Company, uma subsidiária da Thai Union Frozen Products, a maior empresa de peixes e frutos do mar do país. No ano passado, a Thai Union vendeu mais de 12 mil toneladas em ração para cães e gatos contendo peixe para algumas das maiores marcas vendidas nos Estados Unidos, segundo documentos aduaneiros americanos.

Apesar da crescente pressão de americanos e outros consumidores ocidentais por mais prestação de contas nas cadeias de suprimentos pesqueiras para assegurar que não ocorra pesca ilegal e nem peixes contaminados ou falsos, virtualmente nenhuma atenção é dada ao trabalho que fornece os peixes e frutos do mar consumidos pelas pessoas, muito menos os peixes dados como alimento para animais.

Pouco alívio para o perigo

É difícil exagerar os riscos da pesca comercial. Dois dias passados a mais de 160 quilômetros da costa em um navio pesqueiro tailandês, com duas dúzias de meninos cambojanos, alguns com apenas 15 anos, mostraram o ritmo brutal desse trabalho.

Faça chuva ou faça sol, os turnos são de 18 a 20 horas. As temperaturas no verão passam dos 37ºC. O convés é um percurso de obstáculos de equipamento denteado, guinchos e pilhas altas de redes de mais de 200 quilos. O spray do oceano e as entranhas dos peixes tornam o piso escorregadio. O navio balança, particularmente em mar bravo e ventos fortes. A maioria dos meninos trabalha descalça. Grande parte disso ocorre em uma escuridão feito breu. Atuneiros cercadores, como este navio, geralmente lançam suas redes à noite, quando o pequeno peixe de forragem prateado que pescam é mais fácil de ser visto.

Quando não estão pescando, os cambojanos, a maioria recrutada por traficantes, separa a pesca e conserta as redes. Um menino de 17 anos mostrou orgulhosamente dois dedos faltando em uma mão –-decepados por uma linha de náilon que enrolou em uma manivela de giro. As mãos dos imigrantes, que virtualmente nunca ficam secas, apresentam feridas abertas, cortes pelas escamas dos peixes e rasgos pelo atrito das redes. Eles mesmos dão pontos em seus cortes mais profundos. Infecções são constantes.

As refeições a bordo consistem de apenas uma tigela diária de arroz, salpicado com lula cozida ou outros peixes descartados. Na cozinha, na sala do leme e em outros lugares, os balcões estão repletos de baratas. O toalete é uma tábua de piso removível no convés. À noite, os bichos limpam os pratos não lavados dos meninos.

Litania de abusos

Percorrendo a costa do Mar do Sul da China, parece que todo imigrante tem sua própria história de abuso.

Os comandantes nunca carecem de anfetaminas, para que os trabalhadores possam trabalhar mais horas, mas raramente contam com antibióticos para as feridas infectadas. Ex-marinheiros descrevem as "ilhas-prisão" –-a maioria em atóis desabitados, que existem às centenas no Mar do Sul da China. Os capitães dos navios pesqueiros às vezes abandonam suas tripulações cativas nessas ilhas, às vezes por semanas, enquanto suas embarcações são levadas ao porto para reparos.

As autoridades do governo tailandês dizem ter aumentado as investigações e processos, e que planejam continuar a fazê-lo. Um esforço para registro dos trabalhadores sem documentos está em andamento, visando fornecer uma carteira de identidade para eles, acrescentou Vijavat Isarabhakdi, o embaixador da Tailândia nos Estados Unidos até este ano. O governo também montou vários centros por todo o país para as vítimas do tráfico.

San Oo, 35, um mianmarense de voz suave e pele curtida pelo tempo, previu que até que os capitães dos navios sejam processados, pouco mudará. Ele descreveu como em seu primeiro dia de dois anos e meio de cativeiro, seu capitão alertou que tinha matado o marinheiro que Oo estava substituindo. "Se você desobedecer, fugir ou adoecer, eu o farei de novo", disse seu capitão, segundo ele.