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Igreja de Rhode Island tenta esclarecer seu papel no comércio de escravos

A capela da Catedral São João, que irá se tornar um museu com foco no mercado transatlântico de escravos, em Providence, Rhode Island; o museu abrirá em 2017 - Charlie Mahoney/The New York Times
A capela da Catedral São João, que irá se tornar um museu com foco no mercado transatlântico de escravos, em Providence, Rhode Island; o museu abrirá em 2017 Imagem: Charlie Mahoney/The New York Times

Katharine Q. Seelye

Em Providence, Rhode Island (EUA)

26/08/2015 06h00

Um dos capítulos mais sombrios da história de Rhode Island envolveu a proeminência do Estado no comércio de escravos, a partir dos anos 1700. Mais da metade dos navios negreiros dos Estados Unidos partiam de portos em Providence, Newport e Bristol –tantos, e tão diferente da imagem popular da escravidão ser principalmente um flagelo do Sul, que Rhode Island era chamada de "Norte Profundo".

Essa história em breve se tornará mais proeminente, à medida que a diocese episcopal daqui, que esteve imersa no comércio de escravos transatlântico, cria um museu dedicado a contar essa história, o primeiro no país a fazê-lo, segundo estudiosos.

Muitos dos construtores de navios, capitães e financiadores dessas viagens negreiras eram episcopais. A igreja, como muitas outras de sua época, apoiava a escravidão e lucrava com ela, mesmo após o tráfico de escravos transatlântico ter se tornado ilegal e a escravidão ter sido proibida no Estado.

Entre os mais notáveis episcopais donos de escravos estavam Thomas Jefferson, que foi ativo por algum tempo na igreja, e George Washington.

Ao longo da última década, a Igreja Episcopal dos Estados Unidos reconheceu formalmente e pediu desculpas por sua cumplicidade na perpetuação da escravidão. Algumas dioceses episcopais estão reexaminando seus papéis, realizando cerimônias de arrependimento e dando início a programas da verdade e reconciliação.

A Diocese de Rhode Island, como muitas outras, foi lenta em responder. Mas sob o bispo W. Nicholas Knisely, que se tornou bispo episcopal de Rhode Island em 2012, ela está tomando medidas para reconhecer publicamente seu passado. Elas incluem a criação de um museu focado no tráfico de escravos transatlântico, na escravidão e na cumplicidade do Norte, como parte de um novo centro para reconciliação racial e cura.

"Eu quero contar a história", disse Knisely, "de como a Igreja Episcopal e vozes religiosas participaram do apoio à instituição da escravidão e de como trabalharam para aboli-la. É um pacote ambíguo".

Outros museus da escravidão – notavelmente a Fazenda Whitney, em Wallace, Louisiana, e o Museu do Velho Mercado de Escravos, em Charleston, Carolina do Sul – contam a história da escravidão no Sul. Alguns museus e locais históricos tocam na escravidão no Norte. Mas nenhum museu é dedicado ao envolvimento profundo da região, segundo James DeWolf Perry 6º, um descendente direto da família mais prolífica nos primórdios do comércio de escravos nos Estados Unidos e coeditor de um livro chamado "Interpreting Slavery at Museums and Historic Sites" (Interpretando a Escravidão em Museus e Locais Históricos, em tradução livre).

Ele está ajudando a planejar o museu e o centro para reconciliação, que ainda estão nas fases de organização e arrecadação de fundos. Eles ficarão na Catedral de São João, um prédio de pedra de 200 anos, sede da Diocese Episcopal de Rhode Island. Devido à redução do número de fiéis, a catedral majestosa, mas em deterioração, foi fechada em 2012.

Bispo - Charlie Mahoney/The New York Times - Charlie Mahoney/The New York Times
O bispo W. Nicholas Knisely, da igreja episcopal de Rhode Island, impulsionou a abertura do museu sobre o tráfico de escravos
Imagem: Charlie Mahoney/The New York Times

A ideia do museu e do centro para reconciliação surgiu de discussões entre a comunidade sobre o que fazer com a catedral fechada. Ela ganhou nova urgência nos últimos meses, à medida que distúrbios raciais ocorriam em várias cidades.

"Estamos tentando agir de modo orquestrado com o que está acontecendo por todo o país", disse o reverendo David Ames, que está ajudando a estabelecer o centro para reconciliação. "Eventos como o massacre em Charleston realmente fizeram com que nos focássemos na importância das relações raciais neste país."

Autoridades da diocese já deram início a conversas com o público, inclusive com líderes afro-americanos da Igreja, sobre as metas do centro para reconciliação. Enquanto a catedral está sendo reformada, os planejadores estão trabalhando com universidades locais e organizações para patrocínio de palestrantes e programas que tratem das questões raciais. Eles marcaram mais painéis de discussão para o último trimestre do ano em igrejas episcopais por todo o Estado, que no passado eram frequentadas pelos mercadores de escravos.

O museu, com previsão de abertura em 2017, buscará esclarecer o papel da Igreja no tráfico e a história extensa, mas com frequência ignorada, da escravidão na Nova Inglaterra.

A economia da região era inseparável do comércio de escravos nos anos 1600, quando os primeiros colonos passaram a trocar os nativo-americanos que capturaram por escravos trazidos da África. Posteriormente, os mercadores e fornecedores que enriqueceram com o comércio de escravos fundaram e destinaram fundos a várias faculdades hoje importantes do Nordeste; em pouco tempo, as tecelagens do Norte estavam operando a todo vapor com o algodão colhido no Sul pelos escravos.

A minúscula Rhode Island exerceu um papel muito acima de seu tamanho no comércio, graças aos financistas e à força de trabalho marítima do Estado, assim como às autoridades estaduais, que faziam vista grossa às leis antiescravidão.

Apesar de muitos dos navios negreiros terem sido construídos em Boston, eles eram fornecidos, tripulados e partiam dos portos de Rhode Island. Entre 1725 e 1807, mais de 1.000 viagens negreiras –cerca de 58% do total dos Estados Unidos– partiram de Providence, Newport e Bristol, Rhode Island.

Essas embarcações trouxeram mais de 100 mil africanos para as Américas como parte de um comércio triangular. Eles viajavam para o Oeste da África transportando rum, que era trocado por escravos. A carga humana era então transportada para o Caribe na famosa "Passagem do Meio" do triângulo.

De lá, os navios eram esvaziados de escravos e carregados com açúcar, que era levado para as destilarias de Rhode Island para produção de mais rum, que era levado para a África, e assim o ciclo se repetia.

Eles também levavam escravos para o Norte, onde eram usados em numerosos lares. Em meados do século 18, segundo um estudo da Universidade Brown, cerca de 10% dos habitantes de Rhode Island eram escravos. (Em 2003, a universidade, em Providence, começou a explorar e confrontar seus próprios laços profundos com a escravidão.)

Para a criação do museu e do centro para reconciliação, a Igreja está trabalhando com o Centro para o Estudo da Escravidão e Justiça da Brown e com a família mais prolífica no comércio de escravos nos Estados Unidos.

A atual geração de DeWolfs começou a examinar a herança da família há uma década. Um membro da família, Katrina Browne, uma descendente de sétima geração de Mark Anthony DeWolf, o primeiro mercador de escravos da família, organizou uma viagem para 10 familiares para seguir os passos do legado deles de Bristol até os fortes de escravos em Gana e às antigas plantações da açúcar da família em Cuba.

Em 2008, ela produziu um documentário sobre a viagem chamado "Traces of the Trade". Essa experiência levou ela e Perry, seu primo distante, a fundarem o Centro de Rastreamento das Histórias e Legados da Escravidão, dedicado a educar o público sobre a cumplicidade de toda a nação na escravidão e no comércio de escravos.

"A experiência de ver plateias negras respondendo ao reconhecimento dessas coisas por uma família branca –trata-se de um ponto de partida poderoso", disse Perry.