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Soldados americanos são instruídos a ignorar abusos a meninos por aliados afegãos

Buckley teria sido morto no Afeganistão por um garoto usado como escravo sexual - Kirsten Luce/NYT
Buckley teria sido morto no Afeganistão por um garoto usado como escravo sexual Imagem: Kirsten Luce/NYT

Joseph Goldstein

Em Cabul (Afeganistão)

22/09/2015 06h00

Em seu último telefonema para casa, o cabo Gregory Buckley Jr. contou ao seu pai o que estava lhe incomodando: de seu beliche no sul do Afeganistão, ele podia ouvir os policiais afegãos abusando sexualmente dos meninos que traziam para a base. "À noite, nós podemos ouvi-los gritando, mas não estamos autorizados a fazer nada a respeito", relembrou o pai do cabo do Corpo dos Marines, Gregory Buck Sr., sobre o que seu filho disse-lhe antes de ser morto a tiros na base em 2012. Ele pediu ao filho que contasse aos seus superiores. "Meu filho disse que seus oficiais lhe disseram para fazer vista grossa, porque é a cultura deles".

O abuso sexual desenfreado de crianças há muito é um problema no Afeganistão, particularmente entre os comandantes armados que dominam grande parte da paisagem rural e podem molestar a população. A prática é chamada de "bacha bazi", literalmente "brincar com menino", e os soldados americanos foram instruídos a não intervirem --em alguns casos, nem mesmo quando seus aliados afegãos abusam de meninos nas bases militares, segundo entrevistas e autos de processos.

A política perdurou enquanto as forças americanas recrutavam e organizavam a milícia afegã para ajudar a defender território contra o Taleban. Mas os soldados estão cada vez mais perturbados por, em vez de eliminarem os pedófilos, as Forças Armadas americanas os estarem armando e os colocando como comandantes de aldeias --e fazendo pouco quando começam a abusar de crianças.

"O motivo para estarmos aqui é porque ouvíamos as coisas terríveis que o Taleban estava fazendo à população, como privavam as pessoas de direitos humanos", disse Dan Quinn, um ex-capitão das Forças Especiais que deu uma surra no comandante de uma milícia apoiada pelos Estados Unidos, por manter um menino acorrentado à sua cama como escravo sexual. "Mas estávamos colocando pessoas no poder que faziam coisas ainda piores do que o Taleban –-foi o que alguns anciões tribais disseram para mim."

A política de instruir os soldados a ignorar a pedofilia por seus aliados afegãos está sob novo escrutínio, particularmente após vir à tona que militares como Quinn enfrentam medidas disciplinares, até mesmo têm suas carreiras arruinadas, por desobedecê-la.

Após a surra, o Exército afastou Quinn de seu comando e o retirou do Afeganistão. Ele, então, abandonou as forças armadas. Quatro anos depois, o Exército também está tentando aposentar à força o sargento Charles Martland, um membro das Forças Especiais que se juntou à Quinn na surra dada no comandante.

"O Exército argumenta que Martland e outros deveriam ter feito vista grossa (um argumento que acredito ser um absurdo)", escreveu na semana passada o deputado Duncan Hunter, republicano da Califórnia, que espera salvar a carreira de Martland, em uma carta ao inspetor-geral do Pentágono.

No caso de Martland, o Exército disse que não pode comentar devido à Lei de Privacidade. Ao ser perguntado sobre a política das Forças Armadas dos Estados Unidos, o porta-voz do comando americano no Afeganistão, o coronel Brian Tribus, escreveu em um e-mail: "De modo geral, as alegações de abuso sexual de menores por policiais ou militares afegãos seriam um assunto da lei criminal doméstica afegã". Ele acrescentou que "não há exigência expressa de que pessoal militar americano deva relatá-lo". Uma exceção, ele disse, é quando o estupro está sendo usado como arma de guerra.

A política americana de não intervenção visa manter boas relações com as unidades de polícia e milícias afegãs treinadas pelos Estados Unidos para combater o Taleban. Também reflete uma relutância em impor valores culturais em um país onde a pederastia é abundante, particularmente entre homens poderosos, para os quais estar cercado por adolescentes pode ser uma marca de status social.

Mas a política americana de tratar a pedofilia como uma questão cultural com frequência aliena as aldeias cujas crianças estão sendo abusadas. Os problemas da política ficaram claros quando soldados das Forças Especiais americanas começaram a formar milícias policiais locais afegãs para manter as aldeias retomadas pelas forças americanas do Taleban em 2010 e 2011.

Em meados de 2011, Quinn  e Martland, ambos Boinas Verdes em seu segundo período na província de Kunduz, no norte, começaram a receber queixas sobre as unidades da polícia afegã que estavam treinando e apoiando.

Primeiro, um dos comandantes da milícia estuprou uma menina de 14 ou 15 anos que avistou trabalhando nos campos. Quinn informou ao chefe de polícia da província, que logo impôs a punição. "Ele passou um dia na prisão e então ela foi forçada a se casar com ele", disse Quinn.

Em setembro de 2011, uma mulher afegã, visivelmente machucada, apareceu em uma base americana com seu filho, que estava mancando. Um dos comandantes da polícia afegã na área, Abdul Rahman, abduziu o menino e o forçou a ser seu escravo sexual, acorrentado à sua cama, explicou a mulher. Quando tentou resgatar seu filho, ela foi espancada. O filho dela acabou sendo solto, mas ela ficou com medo de que aconteceria de novo e procurou os americanos na base.

Ela explicou que como "seu filho era um menino bonito, ele era um símbolo de status", cobiçado pelos comandantes locais, lembrou Quinn, que não falou diretamente com a mulher, mas foi informado sobre a visita dela quando retornou à base de uma missão mais tarde naquele dia.

Assim, Quinn convocou Abdul Rahman e o confrontou sobre o que tinha feito. O comandante da polícia reconheceu que era verdade, mas deu de ombros. Quando o oficial americano começou a censurá-lo sobre o alto padrão que se espera de quem está trabalhando com as forças americanas, que a população espera mais deles, o comandante começou a rir.

"Eu o agarrei e o atirei no chão", disse Quinn. Martland se juntou a ele, ele disse. "Eu fiz isso para assegurar que a mensagem tinha sido entendida, que se ele fosse atrás do menino, aquilo não seria tolerado", lembrou Quinn.

Há um desacordo sobre a extensão dos ferimentos do comandante. Quinn disse que não eram sérios, o que foi corroborado por um oficial afegão que viu o comandante em seguida. (O comandante, Abdul Rahman, foi morto há dois anos em uma emboscada do Taleban. O irmão dele disse em uma entrevista que seu irmão nunca estuprou o menino, mas que foi vítima de uma acusação falsa, forjada por seus inimigos.)

Martland, que recebeu uma Estrela de Bronze por valor por suas ações durante uma emboscada do Taleban, escreveu em uma carta ao Exército neste anos que ele e Quinn sentiram que "moralmente, não poderiam mais permitir que nossa Policia Local Afegã cometesse atrocidades".