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A Groenlândia está derretendo

Josh Haner/The New York Times
Imagem: Josh Haner/The New York Times

Coral Davenport, Josh Haner, Larry Buchanan e Derek Watkins

No Manto de Gelo da Groenlândia

28/10/2015 06h00

O sol da meia-noite ainda brilhava à 1h por toda a extensão brilhante do manto de gelo da Groenlândia. Brandon Overstreet, um candidato ao doutorado em hidrologia pela Universidade do Wyoming, abriu caminho pela paisagem congelada, prendeu seu arnês a uma âncora no gelo e se arrastou até a beira de um rio, que corria até um enorme sumidouro.

Se ele caísse ali, “a chance de morte é de 100%”, disse o amigo de Overstreet e também pesquisador, Lincoln Pitcher.

Mas a tarefa de Overstreet, coletar dados críticos do rio, é essencial para a compreensão de um dos impactos mais importantes do aquecimento global. Os dados científicos que ele e uma equipe de seis outros pesquisadores estão coletando aqui podem vir a produzir informação reveladora sobre a taxa com que o derretimento do manto de gelo da Groenlândia, um dos maiores pedaços de gelo e que mais rápido está derretendo na Terra, elevará o nível dos mares nas próximas décadas. O derretimento pleno do manto de gelo da Groenlândia poderia elevar o nível dos mares em cerca de 6 metros.

“Nós cientistas adoramos sentar diante de nossos computadores e usar modelos climáticos para fazer essas previsões”, disse Laurence C. Smith, chefe do departamento de geografia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e líder da equipe que trabalhou recentemente na Groenlândia. “Mas para realmente saber o que está acontecendo, esse tipo de entendimento só é possível por meio de medições empíricas em campo."

Por anos, os cientistas estudaram o impacto do aquecimento do planeta nos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida. Mas, apesar dos pesquisadores contarem com imagens por satélite para rastrear os icebergs que se desprendem, e criarem modelos para simular o degelo, eles contam com pouca informação em solo, de forma que têm dificuldades em prever precisamente quão rapidamente o nível dos mares se elevará.

A pesquisa deles poderá produzir informação valiosa para ajudar os cientistas a determinar quão rapidamente o nível dos mares se elevará no século 21, e como as populações de áreas costeiras, de Nova York a Bangladesh, poderão se planejar para a mudança.

Mas a pesquisa está sob crescente ataque de alguns líderes republicanos no Congresso, que negam ou questionam o consenso científico de que as atividades humanas contribuem para a mudança climática.

Liderando o ataque republicano no Capitólio está o deputado Lamar Smith, do Texas, o presidente do comitê de Ciência da Câmara, que tenta cortar US$ 300 milhões do orçamento da Nasa (sigla em inglês da Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) para ciências da Terra e iniciou um inquérito sobre cerca de 50 subvenções da Fundação Nacional de Ciências. Em 13 de outubro, o comitê intimou cientistas da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional, exigindo a entrega de mais de seis anos de deliberações internas, incluindo “todos os documentos e comunicações” relacionados à medição pela agência da mudança climática.

Quaisquer cortes podem afetar diretamente o trabalho de Smith e sua equipe, que são financiados por uma subvenção da Nasa de três anos, no valor de US$ 778 mil, que deve cobrir tudo, incluindo os salários dos pesquisadores, voos, alimentação, computadores, instrumentos científicos e de camping, equipamento de segurança e para clima frio extremo. Todo cientista, disse Smith, está ciente de que a pesquisa custa “uma quantidade tremenda de dinheiro do contribuinte”.

Groelândia - Josh Haner/The New York Times - Josh Haner/The New York Times
Imagem: Josh Haner/The New York Times

Preparação para o trabalho

Em julho, a equipe de Smith chegou a Kangerlussuaq, Groenlândia, um posto avançado empoeirado de 512 habitantes na costa sudoeste da ilha, que serve como base para os pesquisadores se prepararem para o trabalho de campo no manto de gelo.

Os cientistas estavam empolgados, mas ansiosos, enquanto se preparavam para viajar de helicóptero ao interior para realização do trabalho de campo no centro de sua pesquisa: por 72 horas, de hora em hora, eles monitorariam uma linha divisória de águas subglaciais, realizando medições – velocidade, volume, temperatura e profundidade – na margem congelada do rio.

“Ninguém nunca coletou um conjunto de dados como este”, disse Asa Rennermalm, uma professora de geografia do Instituto do Clima da Universidade Rutgers, que está comandando o projeto juntamente com Smith, para a equipe durante um almoço de hambúrgueres de boi-almiscarado no café do aeroporto de Kangerlussuaq.

A realização de cada medição é tão difícil e perigosa que exige dois cientistas de cada vez, ela disse. Eles teriam que planejar um horário de dormir para assegurar que um grupo sempre estivesse desperto para realizar o trabalho. Todos sabiam que a equipe trabalharia rio acima do “moulin” – o sumidouro que arrastaria qualquer um que caísse nele até as profundezas do manto de gelo.

Na manhã antes da partida, a equipe se reuniu em um hangar para empacotar equipamento e provisões: tendas, camas de metal desmontáveis, geradores, picaretas, ponteiras, refeições desidratadas, uma variedade de instrumentos científicos, frascos para amostras de neve, gelo e água e uma geladeira para transporte das amostras aos laboratórios nos Estados Unidos.

O helicóptero decolou com o equipamento da equipe pendurado em uma rede. Os cientistas olhavam para a superfície aparentemente sem fim de gelo, sob o helicóptero, se espalhando em todas as direções, riscada por rios e lagos verde azulados. Após um voo de 40 minutos, o piloto tocou o helicóptero cautelosamente no gelo, para assegurar que era duro o suficiente para pouso.

Ao desembarcarem, os cientistas foram atingidos pelo frio do verão da Groenlândia – de -32ºC a -4ºC enquanto estiveram lá – um vento constante e o brilho do sol.

Enquanto os pesquisadores montavam o acampamento, Overstreet, o estudante de doutorado da Universidade de Wyoming, seguiu para o rio, em silêncio enquanto atravessava o gelo. Mais do que qualquer outro membro da equipe, o sucesso da missão dependia dele.

Overstreet, 31, que cresceu praticando caiaque e rafting no Oregon, projetou o complexo sistema de corda e polias – baseado nos sistemas de resgate para botes em corredeiras – que seria crucial para coleta de dados nas águas traiçoeiras. Antes de vir para a Groenlândia, ele passou meses aperfeiçoando e testando seu sistema de cordas nos rios no Wyoming.

No gelo

A equipe logo iniciou o trabalho. Um piloto de helicóptero transportou dois dos colegas de Overstreet, Pitcher e Matthew Cooper, para o outro lado do rio de 18 metros de largura. Na margem oposta, eles perfuraram o gelo, prenderam uma âncora e se prenderam a ela por segurança. Eles prenderam uma corda de náilon à âncora, com o restante da corda enrolada em uma sacola pesada.

Agora vinha a parte crucial: os homens se revezavam atirando a sacola para o outro lado do rio, mas ela caia repetidas vezes na água. Após ansiosa meia hora, Cooper finalmente conseguiu que a corda chegasse ao outro lado. Overstreet a pegou e começou a montar o sistema de corda e polia que testou por tanto tempo.

À beira do acampamento, Johnny Ryan, um candidato ao doutorado em geografia pela Universidade de Aberystwyth, no País de Gales, lançou um drone em formato de avião com um dispositivo semelhante a um estilingue, e então o guiou por uma área de quase 195km². Mas então o drone deixou de transmitir. “Ele parou de se comunicar comigo e agora deve ter caído no gelo”, disse Ryan.

Ryan, que usava um gorro cor de rosa e óculos púrpuras que destacavam sua barba ruiva, lançou o drone substituto. Sentindo-se estressado, ele monitorou o voo nervosamente enquanto as horas passavam, bebendo canecas de chá para se aquecer.

À margem do rio, Overstreet e Pitcher iniciaram a coleta de dados prendendo um dispositivo computadorizado que parecia uma prancha de body board à corda que atravessava o rio. De hora em hora eles o enviavam de um lado a outro para medição da profundidade, velocidade e temperatura da água.

Mas enquanto a luz do dia avançava noite adentro, a bateria do dispositivo, exaurida pelo frio, começou a falhar. Àquela altura o sol estava mais baixo, preenchendo o céu com um brilho cor de laranja espetacular. Os cientistas estavam preocupados – o esgotamento da bateria significaria o fracasso de sua missão.

Uma ideia ocorreu a Overstreet. Ele encontrou um rolo de manta prateada isolante no campo e a enrolou em volta da bateria da prancha. Na passagem seguinte por sobre o rio, ela permaneceu funcionando.

Mas a carga da bateria continuava caindo, de modo que Pitcher retirou os aquecedores de mão de suas luvas e os inseriu na bolsa da bateria. Sucesso. A bateria permaneceu aquecida e funcionando.

Por três dias e três noites, os cientistas continuaram realizando as medições no rio, enquanto até 1,6 milhão de litros de água por minuto saía do gelo e era despejado no sumidouro. Na manhã final, a equipe, cansada, mas exultante, se reuniu à beira do rio enquanto a prancha realizava sua travessia final. Àquela altura, o drone reserva de Ryan concluiu em segurança sua missão de mapeamento. Overstreet abriu a sacola comemorativa de mangas desidratadas – um deleite luxuoso para os campistas no gelo.

“É difícil fazer a escolha de participar de projetos como este, mas tudo na minha vida me preparou para vir aqui”, disse Overstreet. “Nós passamos de lutar contra o rio a trabalhar com ele, e então aprendemos muito com ele”.