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Na fuga, crianças se perdem dos pais e chegam sozinhas aos países europeus

Reza Mohammadi, que se perdeu da família na Europa durante a fuga do Afeganistão - Mauricio Lima/The New York Times
Reza Mohammadi, que se perdeu da família na Europa durante a fuga do Afeganistão Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Katrin Bennhold

Em Passau (Alemanha)

29/10/2015 06h00

Reza Mohammadi perdeu seus pais em uma floresta na Macedônia. Ou na Sérvia. Ele não se recorda. O que ele lembra é que estava chovendo: a lama espessa grudou em seus sapatos e pesava em suas pernas de 7 anos.

Sua família fugiu do Afeganistão para o Irã, depois para a Turquia. Eles embarcaram em um bote de borracha para a Grécia e foram resgatados pela guarda costeira antes de seguirem viagem, em grande parte a pé, rumo à Alemanha.

Naquela noite chuvosa próxima da fronteira da Macedônia e Sérvia, Reza e sua mãe, pai e duas irmãs caminhavam em um grupo de cerca de duas dúzias, ele lembrou. Quando ele percebeu que sua família não estava mais atrás dele, ele se sentou em um toco de árvore e esperou. Havia comoção mais adiante. Então uma sombra saiu de entre as árvores.

“O que você está fazendo?” um homem sussurrou em dari.

“Estou esperando pelos meus pais”, respondeu Reza.

O homem era da província de Herat, no oeste do Afeganistão, como a família de Reza. Ele disse que a floresta estava cheia de policiais. Eles tinham prendido três ou quatro famílias que estavam atrás. Não era seguro ficar ali. O menino segurou a mão dele e fugiu.

Um menino pequeno com grandes olhos castanhos e um expressão séria, Reza chegou aqui em Passau em 29 de dezembro. As autoridades municipais acreditam que ele seja o refugiado mais jovem a chegar até esta cidade bávara de fronteira por conta própria.

“Aqui é a Alemanha?” ele teria perguntado a um tradutor na primeira das muitas entrevistas que ajudaram a construir sua história. Então: “Por favor, quero ligar para minha mãe”.

Dez meses depois, sentado em sua cama bem arrumada em um lar para crianças dirigido por freiras católicas, ele contou novamente sua jornada em alemão quase fluente, apenas uma vez checando o pequeno dicionário amarelo que agora leva consigo: como roubaram o dinheiro que sua mãe colocou em seu bolso para emergências; como viu a polícia perseguir outras crianças; como finalmente fez contato com seus pais, que acabaram de volta ao Irã, apenas para perder contato com eles de novo há um mês.

A história de Reza é incomum por causa de sua idade. Mas ela ilustra um lado discreto da crise dos imigrantes na Europa: na maré humana que chega ao continente, dezenas de milhares são crianças e adolescentes que chegam por conta própria.

No ano passado, mais de 23 mil menores desacompanhados pediram asilo nos 28 países integrantes da União Europeia, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Isso foi antes do número de refugiados aumentar neste ano. A esta altura, a estimativa é de que 30 mil estejam vivendo apenas na Alemanha.

Duas dúzias de perfis psicológicos dos recém-chegados, compilados pelas autoridades e vistos pelo “The New York Times”, revelam padrões: muitas das novas crianças misteriosas na Europa são meninos com idades entre 14 e 17 anos, enviados por famílias pobres demais para pagarem aos contrabandistas por mais do que uma viagem individual. Alguns perderam seus pais para a guerra ou homicídio em casa. Outros, como Reza, foram separados deles no caos ao longo do caminho. Algumas poucas tinham suas próprias razões para fugir: escapar do recrutamento como crianças-soldado ou homens-bomba.

Apenas cerca de 2% dos adolescentes que chegam sozinhos são meninas, mas elas costumam contar as histórias mais pungentes de abuso.

Uma menina síria de 15 anos no lar para crianças onde Reza vive sofreu lesões internas tão sérias que uma ginecologista conseguiu diagnosticar múltiplos estupros semanas depois. Outra, Fatima, 16 anos, da Somália, contou uma história tão sádica de violência sexual na Bulgária e na Sérvia que a funcionária de bem-estar jovem na Alemanha optou por não incluir os detalhes em seu relatório.

“Nós não tínhamos palavras”, disse a funcionária, Sandra Wagner-Putz.

Alois Kriegl, chefe do escritório de bem-estar social jovem de Passau, disse que até três anos atrás, o termo “refugiado menor desacompanhado” nem mesmo fazia parte do vocabulário. Agora, esta cidade de 50 mil, uma das entradas mais populares para a Alemanha na trilha dos imigrantes, tem uma administração dedicada a eles.

Em uma sede separada, com um orçamento de 2 milhões de euros e um quadro de 25 pessoas, funcionários que antes cuidavam de crianças negligenciadas ou vítimas de abuso por pais viciados em drogas e violência doméstica agora passam seus dias à procura de lares, famílias adotivas, apoio psicológico, guardiões legais e escolas para os jovens imigrantes sírios, afegãos e somalis.

Os números agora são tão grandes que tudo é escasso.

Apenas um pequeno grupo de menores desacompanhados chegou a Passau em 2012. Um ano depois, o número aumentou para 70 e, em 2014, foram 470. Neste ano, as autoridades esperam 2 mil.

Os jovens refugiados são tão engenhosos quanto vulneráveis. Kriegl contou sobre dois irmãos afegãos, de 9 e 10 anos, que chegaram no verão, descalços e usando calças curtas, dizendo que estavam a caminho da Suécia. O escritório dele os alimentou, encontrou leitos para eles em um lar para crianças e lhes contou sobre a vida na Alemanha. Mas no dia seguinte, eles tinham partido.

“Nunca vi uma determinação como a deles”, disse Kriegl. “E as pessoas pensam que cercas mais altas e arame farpado pode detê-los.” Ele riu.

Então ficou sério de novo.

“Você precisa se perguntar, o que tem que acontecer para que uma criança parta em uma jornada como essa? O que aconteceu aos pais para enviarem seus filhos em uma jornada como essa?”

Por toda a cidade, no segundo andar de um lar temporário para imigrantes adolescentes recém-chegados, uma parede coberta com pinturas coloridas fornece algumas respostas. O tema de uma sessão de pintura terapêutica para uma dúzia de meninos com idades entre 14 e 17 anos era “Lar”. De seus pincéis surgiram aviões de guerra, tanques, casas incendiadas, corpos e uma bandeira síria chorando lágrimas de sangue.

“Alguns desses meninos nunca seguraram uma caneta de colorir em suas mãos, mas já viram o próprio pai ser decapitado”, disse Matthias Schacherbauer, que dirige o centro desde que foi aberto em março.

Reza foi levado ao seu novo lar um dia após sua chegada e divide um quarto com um menino alemão. Agora com 8 anos, ele está frequentando uma escola primária.

Ele é um bom aluno. Os gizes de cera em seu estojo estão devidamente organizados por cor. “Já é mais alemão do que alguns alemães”, brincou uma cuidadora.

Reza fez progresso, disse sua cuidadora. Às vezes ele adormece à noite sem chorar. Foi ainda melhor quando ele falava com sua mãe toda semana. Mas no mês passado, eles perderam contato.

Reza disse torcer para que isso signifique que ela está vindo. “Ela disse que viria”, ele disse. “Ela prometeu.”