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Indonésia apresenta contestação muçulmana à ideologia do Estado Islâmico

Danish Ismail/Reuters
Imagem: Danish Ismail/Reuters

Joe Cochran

Em Jacarta (Indonésia)

28/11/2015 06h00

A cena é horrivelmente familiar. Soldados do Estado Islâmico conduzem uma fila de prisioneiros até a margem de um rio, atiram neles um por um e jogam os corpos ensanguentados na água.

Mas em vez da música de celebração e elogios esperados em um vídeo jihadista, a trilha sonora exibe o ex-presidente indonésio, Abdurrahman Wahid, cantando um poema místico javanês: "Muitos dos que decoram o Alcorão e o Hadiz adoram condenar outros como infiéis, ignorando sua própria infidelidade a Deus, com seus corações e mentes ainda atolados na imundície".

Essa cena poderosa é uma das muitas em um filme de 90 minutos que representa um repúdio religioso implacável ao Estado Islâmico e o disparo inicial de uma campanha global do maior grupo muçulmano do mundo para contestação de sua ideologia.

A contestação, de modo talvez surpreendente, vem da Indonésia, que conta com a maior população muçulmana do mundo, mas fica a milhares de quilômetros de distância da base do Estado Islâmico no Oriente Médio.

"A disseminação de um entendimento raso do Islã torna essa situação crítica, à medida que elementos altamente estridentes dentro da população muçulmana em geral --os grupos extremistas-- justificam seu comportamento bronco e com frequência selvagem alegando agir de acordo com os comandos de Deus, apesar de estarem terrivelmente errados", disse A. Mustofa Bisri, o líder espiritual do grupo Nahdlatul Ulama, uma organização muçulmana indonésia que alega contar com mais de 50 milhões de membros.

"De acordo com a visão sunita do Islã", ele disse, "cada aspecto e expressão da religião deve estar impregnado de amor e compaixão, e promover a perfeição da natureza humana".

Essa mensagem de tolerância está no coração da campanha do grupo contra o jihadismo, que será realizada online, e em salões de conferência de hotéis e centros de convenção da América do Norte até a Europa e Ásia. O filme foi lançado na quinta-feira (26), no início de um congresso de três dias realizado pela divisão jovem da organização na cidade de Yogyakarta, em Java Central.

Enquanto líderes mundiais pedem aos muçulmanos que assumam a liderança na batalha ideológica contra um ramo crescente e cada vez mais violento de sua própria religião, analistas dizem que a campanha do grupo é um antídoto bem-vindo ao jihadismo.

"Eu vejo a contranarrativa como uma forma de os governos ocidentais poderem lidar com a propaganda do EI, mas não há nenhuma estratégia no momento", disse Nico Prucha, um pesquisador do King's College London, que analisa a propaganda online em língua árabe do Estado Islâmico.

E os líderes ocidentais com frequência carecem de credibilidade junto àqueles mais suscetíveis à atração da jihad. "Eles não falam árabe nem nunca viveram no mundo muçulmano", disse Prucha.

A campanha pela Nahdlatul Ulama, conhecida como NU, por um Islã pluralista e liberal também ocorre em um momento em que o Islã está em guerra consigo mesmo em torno de questões teológicas centrais de como a fé é definida na era moderna.

De certo modo, não deveria causar surpresa que essa mensagem venha da Indonésia, lar do Islam Nusantara, amplamente visto como um dos movimentos islâmicos mais progressistas do mundo. O movimento --seu nome significa "Islã das Índias Orientais" em indonésio-- tem mais de 500 anos e promove uma interpretação espiritual do Islã que enfatiza a não violência, a inclusão e a aceitação de outras religiões.

Um centro de prevenção baseado na Indonésia, que deverá entrar em operação no fim do ano, treinará estudantes do sexo masculino e feminino que falam árabe para refutarem a ideologia jihadista e transmitirem mensagens sob orientação dos teólogos da NU que dão consultoria à academia no Ocidente.

O filme, "Rahmat Islam Nusantara" ("A divina graça do Islã das Índias Orientais", em tradução livre), foi traduzido para inglês e árabe para distribuição mundial, inclusive online. O filme explora a chegada do Islã e sua evolução na Indonésia, e inclui entrevistas com estudiosos islâmicos indonésios.

Em cena após cena, eles contestam e condenam a interpretação pelo Estado Islâmico do Alcorão e do Hadiz, o livro dos ensinamentos do Profeta Maomé, como factualmente errada e perversa.

Há reservas aqui a respeito da abordagem global da NU, em vez de primeiro se concentrar no extremismo violento doméstico. A Indonésia já sofreu vários ataques terroristas mortais por militantes islâmicos nos últimos anos que mataram centenas, incluindo atentados a bomba à ilha resort de Bali, em 2002 e 2005, e a hotéis internacionais cinco estrelas em Jacarta, em 2003 e 2009.

O grupo jihadista indonésio mais conhecido, o Jemaah Islamiyah, que já foi uma filial da Al Qaeda no Sudeste Asiático, foi esmagado, mas ainda existem ramificações, assim como outros grupos militantes islâmicos como a Frente dos Defensores Islâmicos, que ocasionalmente destrói bares e ataca minorias religiosas e suas casas de adoração.

Bonar Tigor Naipospos, vice-presidente do conselho executivo do Instituto Setara para Democracia e Paz em Jacarta, disse que a campanha da NU se aplica igualmente aos radicais locais.

"Eles querem mostrar à sociedade indonésia, 'Veja, somos islâmicos e temos valores universais, mas também respeitamos as culturas locais'", ele disse. "Não somos como o Islã do Oriente Médio."

Outros dizem que o discurso público internacional precisa começar em algum lugar, mesmo que seja a milhares de quilômetros de distância da Síria e do Iraque.