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Sob poder do Estado Islâmico, mulheres muçulmanas têm poucas escolhas

21.set.2015 - Aws, que prefere ser identificada por um pseudônimo, mora agora em uma cidade no sul da Turquia - Tara Todras-Whitehill/The New York Times
21.set.2015 - Aws, que prefere ser identificada por um pseudônimo, mora agora em uma cidade no sul da Turquia Imagem: Tara Todras-Whitehill/The New York Times

Azadeh Moaveni

Turquia

30/11/2015 06h00

Dua trabalhava há apenas dois meses para a Brigada Khansaa, a polícia moral do Estado Islâmico, composta apenas por mulheres, quando suas amigas foram levados para a base para serem chicoteadas.

A polícia tinha levado duas mulheres que ela conhecia desde a infância, uma mãe e a filha adolescente, ambas muito perturbadas. Suas abaias, túnicas pretas e largas, tinham sido consideradas muito justas. Quando a mãe viu Dua, correu e implorou para que ela intercedesse.

"As abaias estavam realmente muito apertadas. Eu disse que era culpa dela; elas tinham saído usando a roupa errada", disse ela. "Elas não ficaram contentes com isso."

Dua se sentou e observou enquanto os outros oficiais levavam as mulheres para uma sala nos fundos para serem chicoteadas. Quando eles retiraram o véu que cobria o rosto das duas, descobriram que elas também estavam usando maquiagem. Eram 20 chibatadas pela infração da abaia, cinco para a maquiagem e mais cinco por não serem submissas o bastante quando foram presas.

Os gritos delas começaram a ser ouvidos, Dua olhou fixamente para o teto, com um nó crescendo na garganta.

A prima de segundo grau de Dua também trabalhava para a Brigada. Pouco tempo depois que as amigas de Dua foram açoitadas, Aws viu combatentes chicotearem brutalmente um homem na Praça Muhammad. O homem, de cerca de 70 anos, frágil e de cabelos brancos, tinha sido ouvido xingando Deus. Enquanto uma multidão se aglomerava, os combatentes o arrastaram para a praça pública e o chicotearam mesmo depois que ele caiu de joelhos.

"Ele chorou o tempo todo", disse Aws. "Foi uma sorte para ele ter amaldiçoado Alá, porque Alá é misericordioso. Se ele tivesse amaldiçoado o Profeta, eles o teriam matado."

Hoje, a Aws, 25, e Dua, 20, vivem numa cidade pequena no sul da Turquia depois de fugir de Raqqa e dos comandantes jihadistas. Lá elas encontraram Asma, 22, outra desertora da Brigada Khansaa, e conseguiram abrigo numa comunidade grande de refugiados sírios na cidade.

Capital do Estado Islâmico

Raqqa agora é conhecida como a capital declarada do califado do Estado Islâmico. Mas a cidade na qual as três mulheres se tornaram adultas já foi muito diferente. Identificadas aqui por apelidos, as mulheres falaram à reportagem por muitas horas ao longo de duas visitas neste outono, recordando suas experiências sob o domínio Estado Islâmico e como os jihadistas mudaram totalmente a vida em Raqqa.

Todos as três se descreveram como jovens típicas de Raqqa. Aws gostava mais de Hollywood, Dua de Bollywood. A família de Aws era de classe média, e ela estudou literatura inglesa numa faculdade da Universidade Eufrates, a três horas de ônibus de Hasaka. Ela devorava livros: alguns de Agatha Christie, e principalmente os livros de Dan Brown.

Asma era outra jovem voltada para o exterior, que estudava administração na Universidade Eufrates. Ela também é uma leitora voraz, fã de Ernest Hemingway e Victor Hugo, e fala um pouco de inglês.

Quando a revolta contra o governo do presidente Bashar el-Assad começou a se espalhar por toda a Síria em 2011, ela parecia distante de Raqqa. Quando as notícias de combates e massacres começaram a chegar, vinham principalmente de cidades distantes, no oeste do país, como Homs. Mesmo quando pessoas desabrigadas começaram a aparecer em Raqqa e os jovens da cidade passaram a se inscrever com grupos anti-Assad na região, entre eles a Frente Nusra e o atual Estado Islâmico, o tecido da vida parecia intacto.

No início de 2014, tudo mudou. O Estado Islâmico tomou o controle total de Raqqa e fez da cidade o seu centro de comando, consolidando violentamente sua autoridade. Aqueles que resistiram, ou cuja família ou amigos tinham as conexões erradas, foram detidos, torturados ou mortos.

Chegada ao poder

O Estado Islâmico passou a ser conhecido no mundo todo por nomes como ISIS e ISIL (nas siglas em inglês). Mas em Raqqa, os moradores começaram a chamá-lo de Al Tanzeem: “A Organização”. E rapidamente ficou claro que cada ponto da ordem social, e qualquer chance de uma família para sobreviver, dependia totalmente do grupo.

Os moradores de Raqqa não só foram submetidos à liderança da Organização, na maior parte iraquiana, mas seu espaço na sociedade se reduziu ainda mais do dia para a noite. Á medida que combatentes estrangeiros e outros voluntários começaram a ir para a cidade, respondendo ao apelo da jihad, eles se tornaram os líderes da comunidade abalada. Em Raqqa, os sírios tinham se tornado cidadãos de segunda classe, na melhor das hipóteses.

Dua, Aws e Asma estavam entre as mais afortunadas: elas tiveram a escolha de se juntar ao movimento. E cada uma escolheu trocar sua vida, através do trabalho e do casamento, pela Organização.

Nenhuma delas acreditava na ideologia extremista, e mesmo depois de fugir de casa e se esconder, elas ainda têm dificuldades de explicar como deixaram de ser jovens modernas e se tornaram parte da polícia moral do Estado Islâmico.

Escolha parecia certa

No momento, a escolha parecia ser certa, uma forma de manter a vida tolerável: casar com combatentes para acalmar a Organização e proteger suas famílias; entrar para a Brigada Khansaa para ganhar alguma liberdade de movimento e uma renda numa cidade onde as mulheres foram despojadas de seu direito de escolha.

Mas em pouco tempo, cada concessão se transformou em horror, e as mulheres passaram a desprezar a forma como os combatentes tentavam colocá-las contra seus vizinhos na tentativa de desmembrar a comunidade que amavam. Poucos meses depois, viúvas e abandonadas e obrigadas a se casar novamente com estranhos, que elas viram que estavam sendo usadas como alívio temporário para combatentes estrangeiros, que só se dedicavam à violência e a um Deus irreconhecível.

Cada uma delas foi levada a crer que fugir era a última chance que tinham para viver. E, eventualmente, elas se juntaram ao fluxo de sírios que abandonavam seu país, deixando um vazio a ser preenchido por estrangeiros que não tinham nenhum amor pela Síria.

Embora as mulheres tenham tentado racionalizar seu alistamento na Brigada Khansaa, não havia como evitar ver a Organização como uma máquina desenfreada de morte. Mas toda a Síria, ao que parece, tornou-se um lugar de morte.

Em julho de 2014, o marido de Dua, Abu Soheil, não voltou por três noites seguidas. No quarto dia, um grupo de combatentes bateu na porta de Dua. Disseram que Abu Soheil tinha morrido numa explosão suicida numa batalha contra o exército sírio em Tal Abyad, na fronteira com a Turquia.

Apenas dez dias depois, outro homem da unidade de seu marido voltou para a casa. Ele disse a Dua que ela não podia ficar em casa sozinha e teria que se casar de novo, imediatamente.

"Eu disse a ele que ainda não conseguia parar de chorar", contou Dua. "Eu falei: 'estou com o coração partido. Quero esperar os três meses de luto'". mas o comandante disse que ela era diferente de uma viúva normal. "Você não deveria triste e de luto", disse ele. "Ele próprio quis o martírio, e você é a mulher de um mártir. Você deveria estar feliz."

Esse foi o momento que a derrubou. Ela sabia que tinha de fugir.

A notícia chegou para Aws não muito tempo depois. O marido dela, Abu Muhammad, também tinha se matado numa operação suicida.Dua, incapaz de suportar mais um casamento forçado, foi a primeira a partir.

Quando Aws decidiu ir embora quatro meses mais tarde, foi mais difícil atravessar a fronteira porque a Turquia tinha começado reforçar a segurança. No início da primavera, Asma estava indecisa se deveria fugir também.

Quando ela e uma prima tramaram a fuga, não contaram a ninguém, nem mesmo às suas famílias, e não levaram nada além de suas bolsas. Depois de anos de vergonha e decepção, as três disseram que nem imaginam voltar um dia, mesmo que o Estado Islâmico caia. A Raqqa onde viviam só existe em suas memórias.

"Quem sabe quando a luta vai acabar?", disse Asma.

A Síria vai virar uma Palestina; todos os anos, as pessoas pensam: 'no ano que vem, isso vai acabar. Nós seremos livres.' E décadas se passam. A Síria é uma selva agora.

Asma