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Cremadores de mortos por ebola sofrem com o preconceito nas comunidades da Libéria

Samuel Aranda/The New York Times
Imagem: Samuel Aranda/The New York Times

Helene Cooper

Em Marshall (Libéria)

10/12/2015 06h00

Era por volta de 3h da tarde quando Sherdrick Koffa notou, de forma bem escrita, o nome no saco de corpos que estava se preparando para cremar.

Era o nome de um colega de classe. Os dois cresceram juntos, brincaram juntos quando eram crianças. Agora, passados poucos dias de seu trabalho de cremar os mortos por ebola, um trabalho que já tinha separado Koffa de sua família, ele teria que cremar o corpo de seu amigo.

Ele o fez. Primeiro, ele borrifou o corpo com óleo para ajudar a pegar fogo. Depois colocou o corpo, juntamente com vários outros, sobre a lenha no altar do crematório. Ele colocou mais lenha em cima. Finalmente, enquanto a lenha era acesa com uma tocha, Koffa retirou seu traje protetor e se afastou do campo, para longe do cheiro acre da carne queimando.

Ele não parou de caminhar até chegar em casa, e assim que chegou lá, abriu primeiro uma garrafa, depois outra, de um potente aguardente de cana-de-açúcar liberiano. Ele bebeu a noite toda, até desmaiar.

Quinze meses depois, Koffa ainda bebe muito.

Já se passou mais de um ano desde que este país profundamente religioso abraçou um de seus maiores tabus –a cremação de corpos– para conter a epidemia de ebola. Naquela época, a maioria dos liberianos seguiu em frente com suas vidas.

Mas esse não é o caso para cerca de 30 homens jovens, que foram convocados no auge da crise no ano passado.

Enquanto corpos se acumulavam nas ruas e as autoridades internacionais de saúde alertavam que as antigas tradições fúnebres do país estavam ajudando a disseminar a doença, esses homens fizeram o que poucos liberianos tinham feito antes: cremado os mortos. E o fizeram repetidamente por quatro meses, cremando perto de 2 mil corpos.

Aldeões protestavam perto do local, xingando os homens de "cremadores de ebola". O governo posicionou policiais e soldados ao longo da estrada de terra que levava ao campo de cremação, para manter os cidadãos locais furiosos longe dos homens.

Suas famílias os excluíram por realizarem seu trabalho desagradável. Um homem jovem –Matthew Harmon– que vivia não distante do local de cremação daqui, disse que sua mãe ainda se recusa a vê-lo, lhe dizendo para nunca lhe telefonar de novo.

"Minha mãe disse: 'Você está queimando corpos? Então não quero mais ver você perto de mim'", disse Harmon.

O ostracismo agravou o que já tinha sido um período terrível para os homens, tanto que agora, passado um ano inteiro após o país cessar as cremações, suas vidas permanecem virtualmente destruídas.

Eles passam suas noite com álcool ou drogas –hábitos que adquiriram para suportar a cremação em massa. Um cremador, William Togbah, disse não que passa uma noite sem sonhar com carne queimada. Vários dos homens, afastados pela família e amigos, agora vivem juntos, dividindo o mesmo quarto em uma casa não distante do local de cremação.

"Minha vida não é boa agora", disse Togbah.

Em grande parte, a Libéria saiu de seu longo pesadelo nacional. Casos de ebola surgem esporadicamente, com três novas infecções relatadas no mês passado, e especialistas alertam que a doença pode continuar surgindo ainda por muitos anos.

Mas as crianças estão de volta à escola, lotando as calçadas em seus uniformes enquanto voltam à tarde para casa. As partidas de futebol foram retomadas, com um lotado Estádio Antoinette Tubman recebendo 10 mil torcedores para assistir sua adorada seleção Estrela Solitária enfrentar e perder para os gigantes africanos da Costa do Marfim. Os bancos das igrejas voltaram a ficar ocupados, com as pessoas se dando as mãos e trocando abraços durante a parte "que a paz esteja com você" da cerimônia, uma enorme mudança em comparação à regra de não tocar adotada por muitos durante a epidemia.

Mas os homens continuam atormentados pelo que viram e fizeram. Inicialmente, os homens usavam um incinerador para cremar os corpos, geralmente à noite. Mas esse método deixava ossos humanos, que eles encontravam ao retornarem de manhã, vestígios sombrios das pessoas antes vibrantes que viviam neste país da África Ocidental.

Togbah e vários outros continuaram usando a palavra "apagar", já que apagavam de seu país os traços dos mortos por ebola. Por sua vez, o país agora "apagou" esses homens jovens.

Muitos liberianos ainda os culpam pela cremação dos mortos. Apesar de terem recebido certificados de agradecimento do Ministério da Saúde, eles não participaram da cerimônia de reconhecimento realizada pela presidente para agradecer aos trabalhadores de saúde por seus esforços durante a epidemia, uma omissão que os homens jovens levaram a sério.

"Nós esquecemos algumas pessoas", disse a presidente Ellen Johnson Sirleaf em uma entrevista, acrescentando que eram pessoas demais para agradecer, e que ela espera realizar outro evento para reconhecimento desses homens.

Mesmo assim, eles permanecem em grande parte excluídos pela sociedade liberiana.

Para entender como a cremação é vista pelos liberianos, é preciso considerar que este é um país com um feriado nacional destinado exclusivamente às pessoas irem limpar os túmulos de seus entes queridos. Todo ano no feriado, os liberianos seguem para os cemitérios e sepulturas por todo o país munidos de vassouras, água sanitária, sabão e água.

Os velórios podem durar dias. As pessoas com pouco ou sem dinheiro mendigarão ou tomarão empréstimos para enterrar seus mortos em caixões pretos de mogno. Elas constroem sepulturas de mármore e compram terrenos inteiros apenas para enterrar seus mortos. Muitos liberianos acreditam que se o morto não for enterrado de modo apropriado, ele voltará para assombrar os vivos.

As pessoas aqui lavam os corpos e os vestem para assegurar que cheguem ao pós-vida em estilo. Um corpo morto é para muitos liberianos, de certa forma, ainda um ser vivo, a ser cuidado e enviado amorosamente adiante.

"Não faz parte de nossa cultura cremar pessoas", disse Sampson Sayway, que ajudou a organizar o grupo de homens para cremar os corpos.

Assim, quando uma fila de carros do governo apareceu em Marshall no ano passado ao campo indiano que é o único crematório do país –antes usado exclusivamente para cremação de pessoas de nacionalidade indiana mortas– Sayway, que vive ali perto, saiu imediatamente para investigar. Era o início de agosto de 2014, no auge da epidemia, e o governo sitiado de Ellen Johnson Sirleaf tomou uma decisão de último minuto de seguir o conselho das autoridades internacionais de saúde, que diziam que os corpos dos mortos por ebola –os transmissores mais infecciosos da doença– tinham que ser cremados.

As autoridades liberianas sabiam que o público se revoltaria. O governo posicionou policiais e soldados ao longo da rota para manter os aldeões distantes. As autoridades do governo negociaram com Sayway sobre quanto os trabalhadores receberiam, cerca de US$ 250 (cerca de R$ 935) por semana. Em um país pobre como a Libéria, era dinheiro suficiente para atrair cerca de 30 homens jovens para o trabalho.

"Não foi fácil", disse Frederick Roberts, um dos cremadores, lembrando a primeira noite em que caminhões chegaram com os primeiros 12 corpos. Com medo de se aproximarem dos mortos por ebola, todos inicialmente saíram correndo pela mata quando alguém no caminhão gritou por um megafone para manter distância.

"Eu não tinha ideia no que estava me metendo", disse Ciata Bishop, que foi encarregado pela presidente de montar a operação de cremação.

Naquela primeira noite, os homens vestiam macacões azuis e luvas de plástico, mas as autoridades do governo posteriormente lhes deram trajes protetores, luvas e botas. Dia após dia, noite após noite, os caminhões chegavam com corpos. Os cremadores os descarregavam, os borrifavam com óleo e os empilhavam em um altar.

"O cheiro era muito ruim", disse Koffa. "Como carne, mas diferente." Sua voz ficou embargada e ele parou de falar. Ele e outros cremadores se reuniam perto do crematório. Agora nunca ficam longe dele. O local que tanto odeiam se transformou em uma espécie de lar. Em nenhum outro local eles são aceitos.

"Eles nos traziam 30, 60, 100 corpos por dia", disse Koffa.

Como o incinerador era incapaz de transformar os corpos em cinzas, os homens passaram a cremar os corpos em piras montadas sobre dois altares no campo. Tomava mais tempo, mas ao menos no final só restavam cinzas.

Certo dia, os caminhões trouxeram 137 corpos. "Foram necessários dois dias e meio", disse Burdgess Willie, outro cremador. "O cheiro era tão ruim que precisávamos constantemente nos afastar e voltar."

Então de repente, tudo acabou. Em dezembro, sob intensa pressão popular e com o declínio das mortes por ebola, o governo anunciou o fim das cremações. Um novo terreno com 10 hectares foi destinado, segundo as autoridades do governo, para enterro dos mortos por ebola. Para os 30 homens jovens que realizaram a tarefa de cremar mais de 2.000 mortos por ebola, a provação parecia ter chegado ao fim.

Mas não chegou. "As pessoas ainda zombam de nós", disse Roberts. "Quando nos veem, dizem 'olha o cremador de ebola'".

Durante a provação, os homens jovens disseram que achavam que receberiam bolsas de estudo do governo quando tudo terminasse. Achavam que seriam saudados como heróis, que as pessoas se desculpariam por aliená-los. Eles ainda estão esperando.