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O que define o combatente moderno? O ano em que milhares se juntaram ao EI

Simon Pemberton
Imagem: Simon Pemberton

Phil Klay*

16/12/2015 06h00

Há vários anos Ashley Gilbertson vem fotografando os quartos dos mortos, mais especificamente dos participantes das guerras no Iraque e Afeganistão; são quartos nos EUA, Inglaterra, Escócia, Holanda, Itália, Alemanha e França. Alguns pais mantêm os objetos pessoais dos filhos exatamente como estavam quando partiram, e é isso que Gilbertson procura registrar. Em um, vemos tacos de hóquei e a bandeira do Toronto Maple Leafs; em outro, um golfinho de pelúcia que enfeita uma estante lotada de anjos de plástico. São retratos da ausência, revelações silenciosas da personalidade de um(a) soldado que nunca mais vai voltar –fotos de uma ferida que não cicatrizará, a dor de uma família preservada em forma física.

Gilbertson queria que o público sentisse que as mortes recentes “não eram apenas nomes e cargos de gente que morreu em outro país” –e conseguiu, de forma inquietante, alcançar seu objetivo. Admirar seu trabalho incomoda, nos faz sentir transgressores, como se fosse um olhar íntimo a uma dor insuportável. Os espaços, mantidos com carinho, me lembram do epitáfio na lápide do túmulo de um soldado britânico da Primeira Guerra Mundial: “Se o amor pudesse salvá-lo, ele não teria morrido”. E, no entanto, mais estranha que as próprias fotos é a necessidade de sua existência, o fato de termos que ser lembrados que nossos militares mortos eram mais que nomes. E me parece que a principal característica das guerras modernas não é nenhum avanço tecnológico –por mais surpreendente que seja o uso dos drones ou o das redes sociais pelos combatentes–, mas sim o nível no qual o cidadão médio de uma democracia ocidental consegue se distanciar da responsabilidade pelos conflitos travados em seu nome –e com o dinheiro de seus impostos.
       
Quando estive no Iraque, em 2007, temia que os norte-americanos não estivessem prestando a devida atenção às nossas guerras e a volta para casa não fez muito para mudar essa impressão. Eu me lembro de alguém ter me ligado em um bar do Brooklyn para me dizer que um cara que eu conhecia tinha sido morto no Afeganistão. A informação transformou a cena que tinha diante de mim, de certa forma, em algo obsceno. Eu sabia que as decisões políticas tomadas nos EUA é que, no fim das contas, determinavam quem morria ou vivia no Iraque –e, no entanto, a população parecia completamente distanciada do que se passava lá fora. Eu fazia parte do que Andrew Bacevich chama de "exército do um por cento", a força de voluntários do país. Na época, isso parecia explicar a minha sensação de deslocamento e alimentava a fantasia de que a volta do recrutamento resolveria todos os nossos problemas.
       
Porém, analisando hoje, percebo que o tempo que passei no Oriente Médio foi marcado pelo debate público acirrado sobre o plano de ação do Exército. Quando o general David Petraeus depôs no Congresso, em setembro de 2007, para falar sobre o resultado do aumento das tropas, houve uma série de atitudes exibicionistas –como a de uma organização contra a guerra que colocou um anúncio inflamado de página inteira no "New York Times", os noticiários de TV oferecendo análises (quase sempre sofríveis) e vários senadores, de ambos os partidos, achacando os arquitetos da política militar norte-americana.
       
A principal estratégia da época era a da contra-insurgência, que o guia do governo dos EUA descreve como “a combinação de esforços abrangentes, civis e militares, designados para, simultaneamente, conter a insurgência e anular suas causas básicas”. Porque essa era a nossa filosofia e porque tínhamos um número significativo de forças terrestres defendendo várias regiões do Iraque, a métrica discutida era toda relacionada à estabilidade –Petraeus alegando que os incidentes relativos à segurança tinham diminuído, as mortes civis tinham caído e as forças de segurança iraquianas estavam se destacando, enquanto os senadores questionavam implacavelmente se as divisões na sociedade do Iraque fariam desses ganhos apenas uma ilusão, se as conquistas limitadas dos militares valiam o esforço extra, se com aquilo os EUA estavam mais seguros (e o general admitiu que não sabia).
 
       
Esse tipo de debate parece cada vez mais raro hoje em dia, na era do contraterrorismo. Não mandamos mais tropas para preservar o território; promovemos ataques aéreos, enviamos drones ou forças especiais para matar ou capturar nossos inimigos. Na melhor das hipóteses, colocamos alguns representantes no local, como fizemos durante o início dos anos 60, no Vietnã. Em vez de tentarmos melhorar as sociedades, nós nos concentramos em perseguir e matar os inimigos. O que antes era uma tática que fazia parte dos esforços civis e militares mais amplos da contra-insurgência se tornou a coisa em si, mesmo que pareça estar alienando segmentos imensos do planeta.
       
Não é que as metas ambiciosas da contra-insurgência tenham se tornado menos essenciais na repressão do extremismo; é que simplesmente percebemos que não somos bons ou pacientes o bastante para alcançá-las –então por que não substituí-las por algo que podemos fazer? Como John Amble, oficial da inteligência do Exército disse: "Embora o envolvimento das populações vulneráveis para diminuir o apoio popular a al-Qaeda continue sendo uma necessidade estratégica, mesmo os registros mais generosos de nossos esforços nesse sentido se resumiriam a um desempenho medíocre."
 
Basta comparar esse detalhe à alteração revolucionária no ritmo das operações especiais. De acordo com Marc Ambinder e D.B. Grady, no início da Guerra do Iraque, em abril de 2004, o Comando de Operações Especiais Conjuntas conduzia menos de uma dúzia de missões por mês, mas, em julho de 2006, esse número tinha subido para 250; com o aumento no uso de drones, nossa capacidade de projetar uma força militar concentrada disparou. O tenente-coronel da reserva John Nagl descreve o comando das nossas operações especiais como "uma máquina de matar do contraterrorismo em escala industrial".
       
Talvez ainda melhor para os políticos –já que os drones e invasões das forças especiais não colocam as tropas em posição de proteger o território–, uma missão para matar ou capturar um alvo pode ser definida como um sucesso injustificado independentemente de ter um impacto positivo na segurança da região em que ocorre. Nossas intervenções atuais custam menos (para nós); acontecem longe dos olhos do público (não dá para encaixar um jornalista entre as forças de operações especiais, muito menos em um drone) e na base do caso a caso de ataques com alvo, há mais chances de alcançarem os resultados prometidos (no caso, matar ou capturar gente altamente perigosa e desagradável). A impressão é a de que há muito menos a se discutir, mesmo que a violência e a instabilidade fiquem totalmente fora de controle.
       
Assim, o combatente moderno opera em um espaço cada vez mais distante da atenção pública séria. Eu me senti isolado como membro da fração dos que servem o país de uniforme; agora a nossa política militar é executada por apenas uma fração daquela fração.
 
       
Ainda mais problemático é o fato de os EUA ainda operarem sob a Autorização de Uso de Força Militar, de mais de dez anos –e tirando os senadores Tim Kaine e Jeff Flake, que propuseram uma nova AUFM, o Congresso mostra pouco interesse em debater uma nova versão com fins mais objetivos. Ao pedir aos colegas uma iniciativa, Kaine citou James Madison: “A Constituição supõe o que o histórico de todos os governos demonstra: que o Executivo é a divisão do poder mais interessada na guerra e mais inclinada a se envolver nela. Assim, como deveria ser, com cuidado calculado, embutiu a questão do conflito na legislatura.” E usando essa mesma cautela, a maioria dos membros do Congresso avalia como o voto em relação à política militar pode forçá-los a assumir uma posição sobrepensada sobre uma questão incrivelmente complexa que mais tarde pode se tornar um peso –e devolveu a questão da guerra ao Executivo.
       
Não é à toa que a primeira questão bélica mais polêmica na atual campanha presidencial dos EUA não é sobre a estratégia que deveríamos seguir no Iêmen, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Paquistão, Filipinas, no Chifre da África, na Nigéria ou... bom, você entendeu. Andamos bem ocupados. A discussão é para saber se deveríamos ou não ter invadido o Iraque em 2003. Para o soldado que se interessa em saber se seu país leva sua política militar a sério ou não, a resposta é óbvia.
       
Os homens e mulheres com quem servi, em 2007, estavam mesmo tentando criar um Iraque melhor e arriscaram as vidas por isso. Tivemos sucessos retumbantes e nos permitimos crer que conquistáramos uma estabilidade mais duradoura do que a que existia na realidade. A saúde e a segurança da sociedade iraquiana nos eram importantes e continuam sendo. Muitos criaram laços emocionais com o lugar e sua gente; muitos também voltaram para casa com uma percepção completamente diferente da própria cidadania.
       
A garotada de 18, 19, 20 anos que se alista não tem garantias que, dois anos depois, quando tiver concluído o treinamento e a preparação para o envio ao combate, seu país lhes entregue uma estratégia militar bem bolada para ser executada. Garantir que ele tenha esse plano é um trabalho de todos nós. Se tomarmos a decisão errada após o vigoroso debate público, sabemos que é uma questão de fracasso coletivo; se tomarmos a decisão errada sem debate nenhum, aí é outra coisa bem diferente.
       
O que me leva a outra foto, também de Gilbertson, também totalmente diferente. É de um caminhão que foi encontrado abandonado em uma estrada perto da fronteira austríaca com a Hungria. Vi a imagem sentado em um café em Viena. Como seria de se esperar do retrato de um caminhão parado no acostamento, ele é bem sem graça, com poucos detalhes visuais que chamam a atenção. Para mim, o que impressiona não é nada na imagem em si, mas o fato de saber que ali dentro estavam os cadáveres de 59 homens, oito mulheres e quatro crianças, provavelmente refugiados sírios querendo chegar à Alemanha. Morreram sufocados. Quando foram encontrados, seus corpos estavam em um estado de decomposição tão adiantado que a identificação foi quase impossível. 
       
Isso foi antes dos atentados em Paris, antes de começarem a usar a expressão “terrorista em potencial” para se referirem a essas pessoas. Ingênuo, achei que a reação humanitária seria clara, mas, em vez disso, tive que temer pela nossa capacidade de lidar com a crise de que estão fugindo. Com tantas formas de esconder a ação militar do público, os políticos se veem isentos da responsabilidade de apresentar um plano coerente ao público. Alguém se surpreende em saber que o resultado é um verdadeiro caos?
 
O plano de ação que não supera o crivo público provavelmente não sobrevive aos testes mais difíceis impostos por sua prática na realidade. Entretanto, essas são as características da guerra moderna: violência, sofrimento e uma falta inerente de atenção moral séria.
 
*Phil Klay é veterano do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e autor da coletânea de contos "Redeployment".