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Êxodo de médicos cubanos para os EUA amplia a tensão nas negociações

Victoria Burnett e Frances Robles

22/12/2015 06h00

Ao concluir o ensino médio, José Angel Sánchez se matriculou na escola de medicina de Cuba pelos motivos habituais: ajudar os doentes e ter uma vida melhor do que a maioria em sua cidade pobre no leste do país. Mas ele também tinha outro motivo.

"Também era uma forma de sair de Cuba", disse Sánchez, 29 anos, que se mudou para os Estados Unidos em setembro, quatro anos após se formar como clínico geral.

A rota de fuga de Sánchez foi aberta pelo governo americano, sob um programa de 2006 que oferece residência americana a profissionais de saúde cubanos que trabalham no exterior. É uma porta pela qual milhares de trabalhadores de saúde cubanos emigraram e uma que o presidente Raúl Castro está determinado a fechar.

Um ano após Cuba e Estados Unidos terem anunciado um degelo nas relações, políticas como essa, que se originaram em uma era mais hostil, mostram que a diplomacia após cinco décadas de tensões não será tão fácil quanto o hasteamento das bandeiras nas embaixadas. O número de profissionais de saúde cubanos que desertaram para residir nos Estados Unidos atingiu um número recorde neste ano, afetando negativamente as relações recém-restauradas entre os dois países e forçando Cuba a encontrar modos de deter o êxodo.

O Departamento de Segurança Interna acelera a concessão de visto de residência para os profissionais médicos cubanos que desertam, mas o processo desacelerou devido ao grande aumento de requerimentos, acusações de fraude e atrasos que deixaram centenas de pessoas como Sánchez retidas na Colômbia por meses neste ano.

Em abril, passados 18 meses do período de dois anos de prestação de serviços médicos na Venezuela, Sánchez viajou para Bogotá, na Colômbia. Lá, ele se registrou no Programa para Profissionais Médicos Cubanos na embaixada americana. Mas o processo, que normalmente leva de quatro a seis semanas, se estendeu para cinco meses.

"Eu sempre planejei partir de alguma forma", disse Sánchez, agora um assistente de saúde em Paterson, Nova Jersey.

Cuba condenou o programa nas últimas semanas quando os dois países se reuniram para discutir as regras de imigração americanas, que dão aos cubanos oportunidades especiais para entrar nos Estados Unidos e se tornarem residentes.

Com tantos cubanos preocupados com a possibilidade do status cobiçado desaparecer com a retomada das relações diplomáticas com Havana, há uma onda de pessoas de todas as profissões deixando a ilha ao longo do último ano.

Isso criou uma crise migratória, argumenta o governo Castro, retendo milhares de imigrantes cubanos na América Central enquanto tentam chegar por terra aos Estados Unidos.

Segundo os analistas, a questão é um potente lembrete das diferenças persistentes que continuam dividindo os dois governos apesar do degelo. Robert Muse, um advogado baseado em Washington que é especializado nas leis americanas para cubanos, chamou o programa para os profissionais médicos de "um charuto explosivo deixado pelo governo Bush" que o presidente Barack Obama precisa eliminar.

"Nenhum país aceitará um programa orquestrado para deserção de seus cidadãos", disse Muse. Ele disse que os Estados Unidos "não estão agindo no espírito de relações normalizadas".

O sistema de saúde de Cuba é uma fonte de grande prestígio internacional para o governo, que fornece ensino gratuito para milhares de cubanos e estudantes estrangeiros pobres. O Estado oferece um sistema de atendimento de saúde gratuito, apesar de longe de perfeito, para seus cidadãos e é elogiado –mesmo pelo governo Obama– pelo envio de brigadas médicas para ajuda no exterior.

A diplomacia médica também é uma fonte indispensável de renda: Cuba aluga os serviços de dezenas de milhares de médicos, enfermeiros e dentistas para outros países em desenvolvimento em troca de bilhões de dólares em dinheiro e petróleo.

Essas recompensas, entretanto, são obtidas em cima dos profissionais médicos, que trabalham por pouco dinheiro e em condições precárias, dizem os médicos.

O dr. Lino Alberto Neira, um cirurgião ortopedista que exerceu sua profissão em Cuba por 23 anos antes de partir para Miami em 2013, disse que seu salário mensal de US$ 25 (cerca de R$ 100) em casa mal durava quatro dias. Ele se sustentava com as gorjetas dos pacientes que trabalhavam no turismo, ele disse.

"Uma pessoa que limpa o chão em um hotel está sustentando você", disse Neira, falando de Miami. "Isso é muito humilhante."

Cuba mais que dobrou os salários de alguns médicos no ano passado, para cerca de US$ 70 (cerca de R$ 280) por mês. Mas diante de salários tão pequenos em casa, muitos médicos aceitam trabalhar no exterior para ganhar um dinheiro extra.

Mesmo assim, eles ganham apenas uma fração do que o país anfitrião paga a Cuba pelo trabalho deles.

A dra. Mara Martínez, uma dentista que é noiva de Sánchez, disse que era uma ferrenha defensora da revolução cubana, mas ficou desiludida ao chegar na Venezuela e descobrir que tinha que trabalhar seis dias por semana e dividir um quarto com três por um salário de US$ 210 (cerca de R$ 845) por mês. A Venezuela, segundo lhe disseram seus supervisores, estava pagando US$ 7 mil (cerca de R$ 28 mil) por mês pelos serviços dela.

"É uma escravidão moderna", disse Martínez, 25 anos, que deixou a Venezuela junto com Sánchez.

Muitos dos médicos na Venezuela ficam em alojamentos apertados sem ar condicionado, além de serem afetados pela alta da inflação e deterioração econômica do país.

"Era pior do que em Cuba", disse a dra. Dailanis Barbara Martínez Peralta, uma clínica geral que após deixar a Venezuela aguardou por sete meses na Colômbia para vir para os Estados Unidos.

Mais de 7 mil cubanos tiveram sua residência aprovada desde que o programa teve início há quase uma década, segundo os Serviços de Cidadania e Imigração dos Estados Unidos.

Segundo estatísticas da Segurança Interna, 1.663 profissionais médicos cubanos posicionados no exterior foram aceitos para entrar nos Estados Unidos no ano fiscal de 2015, um aumento de 32% em relação ao ano anterior. O número de médicos admitidos no programa mais que triplicou desde 2011, quando 386 pessoas foram aprovadas.

As autoridades cubanas atacam repetidamente o programa americano para os profissionais de saúde como uma "prática repreensível" visando "roubar" talentos cubanos. Um funcionário do Departamento de Estado, que falou sob a condição de anonimato, disse que os Estados Unidos "não recrutam profissionais médicos cubanos", apenas lhes dá uma rota voluntária para residência.

Desde o segundo trimestre deste ano, as aprovações americanas de médicos requerendo asilo na embaixada americana na Colômbia desaceleraram consideravelmente, no que os analistas entendem como um sendo um gesto de boa vontade enquanto os Estados Unidos se preparam para abrir uma embaixada em Havana. O Departamento de Estado negou qualquer ligação entre a desaceleração e o degelo nas relações, dizendo que não há "planos imediatos" para suspensão do programa.

O Departamento de Segurança Interna sugeriu que a demora se deve ao aumento do número de requerentes. Martínez disse que dentre um grupo de cerca de 250 profissionais médicos que estavam retidos, além dela e Sánchez, todos, com exceção de uma dúzia, acabaram obtendo residência.

Um funcionário americano que não estava autorizado a discutir o assunto publicamente disse que o programa desacelerou devido a alguns requerentes terem apresentado credenciais falsas, o que obrigou o governo a checar rigorosamente os documentos.

O governo cubano disse que levantou a questão do programa durante as negociações de imigração com as autoridades americanas no mês passado, mas as autoridades cubanas não responderam aos e-mails e telefonemas pedindo comentários adicionais.

Segundo as Nações Unidas, Cuba conta com um dos maiores números de médicos per capita. Mas com tantos enviados para o exterior, há menos profissionais médicos, além de serem menos experientes, do que antes dos grandes envios para o exterior terem começado no início dos anos 2000, se queixam os profissionais de saúde e cubanos comuns.

Os profissionais médicos de qualquer país que emigram para os Estados Unidos com frequência descobrem que suas credenciais são inadequadas e que os empregos disponíveis pagam muito mal.

Em Miami, Neira está cuidando de um idoso cubano e estudando para ser enfermeira, porque suas qualificações cubanas não são reconhecidas. Em Paterson, Sánchez, que trabalha em centro comercial decrépito no centro em um emprego que paga US$ 15 (R$ cerca de R$ 60) por hora, disse que planeja fazer o mesmo. Primeiro, entretanto, Martínez, sua noiva, tentará obter sua licença de odontologia.

Segundo Sánchez, há dias, especialmente nos fins de semana, em que Paterson o desanima.

"Você começa a pensar na família", ele disse. "A pensar no seu bairro. No que todos estariam fazendo no domingo. No jogo de beisebol."

Mesmo assim, ele aprecia sua liberdade e a forma como os americanos cuidam da própria vida. Ele gostaria de se mudar para Miami, onde há sol o ano todo e uma grande população cubana.

"Nós dependemos de nossos próprios esforços para fazer nossas carreiras decolarem", ele disse. "Nós conseguiremos."