Topo

Propaganda do Estado Islâmico na internet é desafio à liberdade de expressão

Militantes do Estado Islâmico, na Síria - Raqqa Media Center via AP/Arquivo
Militantes do Estado Islâmico, na Síria Imagem: Raqqa Media Center via AP/Arquivo

Erik Eckholm

01/01/2016 00h01

Um dos mais consagrados preceitos da lei constitucional moderna é que a liberdade de expressão não pode ser restringida, a menos que represente "um perigo claro e presente", uma ameaça real e iminente, não a mera defesa de atos ou ideias nocivos. Mas, reagindo ao sucesso do Estado Islâmico (EI) em recrutar jihadistas pela internet, alguns estudiosos do direito estão perguntando se está na hora de reconsiderar esse artigo da Constituição dos Estados Unidos.

Os apelos por uma reação mais dura aos esforços de recrutamento online do EI vieram do reino político, o que não causou surpresa. Donald Trump disse que o governo deveria pedir a Bill Gates e outros que fechem de alguma forma sites perigosos na internet, e chamou de besteiras as preocupações da Primeira Emenda da Constituição.

Hillary Clinton disse que o governo deveria trabalhar com as companhias de hospedagem para fechar os sites e salas de bate-papo jihadistas. Isso seria constitucional se fosse voluntário, segundo especialistas em direito, mas não se o governo exercesse pressão contra empresas privadas para cooperarem na censura.

Alguns especialistas em segurança pediram que o YouTube proibisse vídeos de palestras de Anwar al-Awlaki, que ajudaram a radicalizar os atacantes em San Bernardino, na Califórnia, e muitos outros.

Recentemente, porém, alguns estudiosos de direito também se envolveram no que outros chamam de heresia da Primeira Emenda. O que significa perigo claro e presente, quando terroristas incitam à violência pela internet? O governo não deveria ter uma maneira, perguntam eles, de bloquear mensagens que facilitam atos terroristas?

O padrão existente é muitas vezes ilustrado pelo exemplo clássico de gritar "Fogo!" em um teatro lotado onde não há perigo. Esse não é um discurso protegido pela lei porque poderia causar uma situação de pânico mortal. Mas um artigo que elogia os méritos de se causar pânico, e até propõe frases para se gritar, não está ligado estreitamente a uma ameaça real e iminente para ser proibido.

Em novembro, Cass R. Sustein, um professor de direito de Harvard e ex-membro do governo Obama, abordou o assunto em um artigo na Bloomberg View. Ele chamou o teste do perigo claro e iminente de "a maior contribuição dos EUA à teoria e prática da livre expressão". Em vista do uso bem-sucedido pelo EI da internet para alimentar terroristas, disse ele, "vale a pena se perguntar se o teste pode estar maduro para reconsideração".

Um caso mais forçoso e uma proposta legislativa foram apresentados por Eric Posner, professor de direito na Universidade de Chicago, em um artigo para a revista eletrônica Slate. "Nunca antes em nossa história inimigos externos dos EUA foram capazes de propagar ideias genuinamente perigosas em território americano de maneira tão eficaz", escreveu Posner. A capacidade do EI de disseminar "ideias que levam diretamente a ataques terroristas", disse ele, "pede um novo pensamento sobre limites à liberdade de expressão".

Posner apoiou o uso de companhias como Facebook e YouTube para reprimir a propaganda do EI, mas disse que isso talvez nunca entre em vigor. Ele também propôs aprovar uma lei para dissuadir consumidores potenciais de ver sites perigosos. Enquanto a lei se aplicaria a todos os usuários da internet, seu objetivo, embora limitado, é evitar a radicalização daqueles que ele descreve como "pessoas ingênuas" que pesquisam o EI por curiosidade, "e não terroristas sofisticados".

Sua proposta tornaria ilegal entrar em sites que glorificam o EI ou ajudam em seu recrutamento, ou distribuir links para esses sites. Ela imporia penas graduais, começando com uma carta de advertência, depois multas ou prisão para infratores reincidentes, para transmitir que "olhar sites ligados ao EI, assim como olhar sites que exibem pornografia infantil, é estritamente proibido".

David G. Post, um ex-professor de direito constitucional que é bolsista sênior no Instituto Aberto de Tecnologia da Fundação Nova América em Washington, foi um de muitos juristas que condenaram a ideia de Posner.

"Acho que é uma encosta escorregadia", disse Post em uma entrevista. Em um blog de direito, The Volokh Conspiracy, ele escreveu que os esforços para suprimir opiniões radicais "podem ser com grande facilidade distorcidos em uma proibição de pontos de vista dissidentes".

Geoffrey R. Stone, um especialista em direito constitucional na Universidade de Chicago, disse em uma entrevista que Posner e Sustein "foram provocativos, que é o que os acadêmicos fazem".

"Mas acho que estavam errados", acrescentou. "Aprendemos com mais de 200 anos de história que o que parece uma abordagem sensata no calor do momento, em termos de restringir a expressão, tem alta probabilidade de ser uma má opinião".

Ele disse que a Lei de Sedição de 1798, que proibiu falsas declarações sobre o governo, foi usada pelos federalistas para processar seus adversários, os apoiadores de Thomas Jefferson.

A ideia de um teste de perigo claro e presente foi adotada pelo juiz Oliver Wendell Holmes em um parecer de 1919 no caso Schenck x EUA, mas somente meio século depois adquiriu o atual significado constitucional de proteção aguçada. Em Schenck, na verdade, Holmes e um tribunal unânime mantiveram a condenação de uma pessoa que defendeu a resistência ao recrutamento durante a Primeira Guerra Mundial.

Mais tarde naquele ano, porém, Holmes escreveu um parecer dissidente que depositou as bases para proteções mais fortes à expressão. No caso Abrams x EUA, um tribunal dividido manteve condenações por distribuir folhetos contra a participação dos EUA na guerra e seus esforços para conter a revolução russa. Holmes, em uma dissensão apoiada pelo juiz Louis Brandeis, escreveu que os panfletos incendiários não representavam risco específico, acrescentando: "Devemos ser eternamente vigilantes contra tentativas de conter a expressão de opiniões que desprezamos".

Mas foi só em 1969 que o caso marcante Brandenburg x Ohio, derrubando a condenação de um membro da Ku Klux Klan, que a Suprema Corte estabeleceu o atual significado de perigo claro e presente. Ela decretou que o governo não poderia punir o discurso inflamatório a menos que o discurso tivesse a probabilidade de incitar a "ação ilegal iminente".

Posner, em uma entrevista, reconheceu que suas opiniões não eram amplamente compartilhadas na comunidade jurídica. Mas o significado moderno da Primeira Emenda, disse ele, reflete centenas de anos de pensamento jurídico e compromissos e "devemos repensar esses compromissos conforme a tecnologia e a sociedade se modificam".

Jeremy Waldron, um professor de filosofia do direito na Universidade de Nova York, levantou questões sobre a proteção do discurso de ódio sob a Primeira Emenda. "Eu afirmei, na área adjacente do discurso de ódio, que o teste do perigo claro e presente é inadequado", disse Waldron em uma entrevista. "Você pode envenenar a atmosfera sem um perigo imediato, mas às vezes esperar por um perigo iminente é esperar demais."

O livro de Waldron, "The Harm in Hate Speech", foi publicado em 2012. Nos EUA, segundo ele, "foi recebido geralmente com uma hostilidade uniforme". Mas alguns países europeus, comentou, ficam à vontade com controles mais fortes ao discurso incendiário.

Todos esse juristas, incluindo Posner, concordam que se a Suprema Corte de hoje considerasse sua proposta de lei ela seria derrubada. Mas se mais americanos que foram doutrinados por vídeos da jihad se envolverem em ataques terroristas, também concordam eles, o pensamento do tribunal poderia mudar. "Daqui a cinco anos, quem sabe?", disse Stone. "Podemos imaginar um cenário em que as coisas ficam tão terríveis que você começa a diluir as proteções."

"Não acho que estejamos sequer perto desse ponto hoje", disse.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves