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Opinião: Por que a prevenção do câncer não é prioridade da indústria farmacêutica

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Imagem: Shutterstock

Austin Frakt*

03/01/2016 00h01

A maioria das pessoas concordaria que seria melhor prevenir o câncer, se pudéssemos, do que tratá-lo depois que ele se desenvolve. No entanto, os incentivos econômicos estimulam os pesquisadores a se concentrarem no tratamento e não na prevenção.

A forma como o sistema de patentes interage com o processo de aprovação de medicamentos da Food and Drug Administration (FDA, órgão regulador de alimentos e medicamentos nos EUA) determina o tipo de testes clínicos que são feitos para o câncer. Há mais retorno financeiro para investimentos em medicamentos que estendem em alguns meses a vida dos pacientes com câncer do que em medicamentos que preveniriam o câncer.

Essa é uma das conclusões do trabalho de Heidi Williams, professora de economia do MIT e vencedora recente da bolsa “gênio” da Fundação MacArthur, que estudou o problema junto com Eric Budish, professor de economia da Universidade de Chicago, e Ben Roin, professor-assistente de inovação tecnológica, empreendedorismo e gestão estratégica no MIT.

“A pesquisa e o desenvolvimento sobre prevenção e tratamento nos primeiros estágios do câncer têm um grande valor social”, disseram os autores por e-mail, “mas nosso trabalho mostra que a sociedade oferece às empresas privadas --talvez sem se dar conta-- pouquíssimos incentivos para realizar este tipo de pesquisa.”

Para garantir a aprovação da FDA, depois de patentear um medicamento, as indústrias farmacêuticas correm contra o relógio para mostrar que seu produto é seguro e eficaz. Quanto mais rápido elas conseguem concluir esses estudos, mais tempo elas têm para aproveitar a duração da patente, que é o período no qual as margens de lucro são mais altas.

Desenvolver medicamentos para tratar os estágios finais da doença é geralmente muito mais rápido do que desenvolver medicamentos para tratar os estágios iniciais da doença, porque no estágio final, o câncer é mais agressivo e progride rapidamente. Isso permite que as empresas vejam os resultados dos testes clínicos mais rápido, mesmo que esses resultados sejam melhorias pequenas para a sobrevivência.

Esta lição é ensinada em alguns livros didáticos de química medicinal. Um deles, por exemplo, observa que “alguns compostos nunca são desenvolvidos [e transformados em medicamentos], porque o tempo de produção protegido por patente disponível para recuperar o custo de desenvolvimento é muito curto.”

Os testes clínicos necessários para a FDA aprovar medicamentos para a comercialização levam anos. Embora uma patente dure 20 anos (antes de qualquer extensão), um medicamento típico chega ao mercado com cerca de 12,5 anos restantes de vigência da patente. Mas os inovadores têm algum controle sobre o tempo entre o recebimento de uma patente e a aprovação da FDA --“o atraso da comercialização”.

Ao estudar pacientes nos quais a segurança e eficácia [de um medicamento] pode ser demonstrada de forma mais rápida, os inovadores podem reduzir essa defasagem. (Estudos recentes sugerem que o tempo até a comercialização pode estar diminuindo para alguns tipos de medicamentos.)

Um número muito maior de testes está focado em tratamentos para pacientes com câncer em estágio final do que em tratamentos para pacientes com câncer em estágio inicial, de acordo com o estudo. Entre 1973 e 2011, houve cerca de 12 mil testes para pacientes em estágios relativamente mais tardios, com 90% de chance de morrer em cinco anos.

Mas houve apenas cerca de 6.000 voltados para pacientes nos estágios iniciais, com uma chance de 30% de morrer. E houve mais de 17 mil testes com pacientes com a menor chance de sobrevivência (aqueles com cânceres recorrentes), mas apenas 500 para a prevenção do câncer, que confere as maiores chances de sobrevivência. O viés para os estudos focados em pacientes com menor sobrevida é mais prevalente entre os testes financiados pelo setor privado do que entre os financiados com dinheiro público.

O estudo de Williams estima que o atraso na comercialização, que incentiva o investimento em drogas de benefício mais curto, levou a uma perda de 890.000 anos de vida para os pacientes norte-americanos que descobriram ter câncer em 2003.

Existem várias maneiras possíveis de resolver o atraso na comercialização. Uma ideia, incluída num projeto de lei que tramita no Congresso, é conferir a aprovação do FDA com mais frequência, baseada nos indícios de melhoria da saúde que podem ser medidos de forma mais rápida do que a sobrevivência --os chamados “desfechos substitutos”, como a contagem de glóbulos brancos cancerosos e características de medula óssea em estudos sobre leucemia. Estas métricas estão bastante correlacionados com a sobrevivência, por isso são uma forma confiável de acelerar os testes de medicamentos para leucemia.

De acordo com a análise do estudo, esta abordagem pode funcionar. Para medicamentos contra o câncer aprovados com base em alguns tipos de desfechos substitutos validados, os pesquisadores não encontraram nenhuma diferença no número de testes clínicos quanto à taxa de sobrevivência. Isto sugere que os desfechos substitutos podem desfazer o preconceito que surge a partir do atraso da comercialização. Até hoje, os únicos medicamentos com financiamento privado para prevenir o câncer --cujos benefícios de sobrevivência não serão aparentes por muitos anos-- foram aprovados pela FDA com base em desfechos substitutos.

O uso de desfechos substitutos sem uma ligação forte ou conhecida com a sobrevivência é controverso. Por exemplo, o teste do nível de antígeno prostático específico --avaliado por um exame de sangue-- está correlacionado com a quantidade de câncer na próstata, mas tem um valor limitado na previsão de sobrevida para o câncer de próstata. Assim, embora possam ser lucrativos para as indústrias farmacêuticas, a pessoa teria pouca confiança de que os medicamentos aprovados com base nos resultados do teste pudessem oferecer benefícios para a sobrevivência.

Uma revisão sistemática recente concluiu que a maioria dos desfechos substitutos examinados em testes de medicamentos para o câncer têm pouca relação com a sobrevivência. Embora a maioria dos medicamentos contra o câncer nos últimos tenha sido aprovada com base em desfechos substitutos, a maioria deles têm efeitos desconhecidos ou nenhum efeito benéfico para a sobrevivência.

Outra abordagem é aumentar o período de exclusividade de mercado de um medicamento para compensar o atraso na comercialização. A Lei Hatch-Waxman, de 1984, já autoriza uma extensão parcial --meio ano para cada ano de teste clínico, até um máximo de cinco anos adicionais.

A análise de Williams sugere que esta é a ideia certa, mas que ainda há muitos medicamentos potenciais que recebem períodos muito curtos de exclusividade de mercado. A Lei da Saúde Acessível tem um artigo que concede 12 anos de exclusividade de mercado a partir da aprovação da FDA --um ano e meio a menos do que os típicos 12,5 anos restantes de uma patente-- mas só se aplica aos medicamentos biológicos.

As patentes de medicamentos incentivam a inovação, e aprovação da FDA verifica a segurança e a eficácia dos medicamentos. A maneira como elas funcionam em conjunto afeta o investimento em pesquisa e pode reduzir uma coisa que muitos veem como muito valiosa: a prevenção do câncer.

*Austin Frakt é economista da área de saúde ligado a organizações governamentais e acadêmicas. Ele escreve para o blog The Incidental Economist. 

Tradução: Eloise De Vylder