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Repressão no Burundi eleva tensão étnica e preocupa Ocidente

Supostos combatentes e suas armas são exibidos à imprensa pela polícia do Burundi - Jean Pierre Aime Harerimana - 12.dez.2015/Reuters
Supostos combatentes e suas armas são exibidos à imprensa pela polícia do Burundi Imagem: Jean Pierre Aime Harerimana - 12.dez.2015/Reuters

Jeffrey Gettleman

Em Bujumbura (Burundi)

03/01/2016 00h02

Há pouco mais de uma semana, Benny Uwamahoro saiu para tomar uma cerveja. Ele se encontrou com alguns amigos, escutou um pouco de música e então recebeu um telefonema misterioso, por volta das 20h30, pedindo que fosse até uma loja de bairro.

Na manhã seguinte, Uwamahoro, um motorista de micro-ônibus, foi encontrado morto em uma rua de terra, com um buraco de bala na cabeça e com a língua cortada.

"Será que ele foi alvo por ter participado de alguns protestos?" perguntou sua irmã perturbada. "Ou será que foi por ser tutsi?"

No Burundi, tempos perigosos estão por vir se essa pergunta está sendo feita, e no momento muitas pessoas a estão fazendo. Rivalidades étnicas provocaram guerras devastadoras nesta parte da África, mas nenhuma chega perto do legado mortal da discórdia entre hutus e tutsis, que resultou no genocídio em Ruanda em 1994, no qual quase 1 milhão de pessoas perderam suas vidas.

Apesar dos analistas alertarem que Burundi e Ruanda são países muito diferentes, essa mesma linha divisória manipulada politicamente resultou na morte de dezenas de milhares de pessoas durante a guerra civil no Burundi, projetando uma sombra que continua pairando sobre a turbulência atual no país.

Esse é o motivo para os líderes ocidentais, incluindo o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, estarem nos últimos meses tentando assiduamente se antecipar a um conflito no Burundi e pressionar seus líderes e políticos de oposição a negociarem, antes que seja tarde demais.

Segundo testemunhas, monitores de direitos humanos e autoridades ocidentais, as forças do governo –principalmente a polícia– reagiram com violência em meados de dezembro, depois que rebeldes realizaram ataques simultâneos a várias bases militares.

O governo do Burundi é liderado pelos hutus; testemunhas disseram que a maioria das vítimas nos ataques por vingança era tutsi. Agora crescem os temores que este conflito esteja ganhando motivação étnica e que o Burundi esteja deslizando rapidamente na direção errada.

"Estamos analisando múltiplos relatos de que os mortos durante os ataques retaliatórios, supostamente pelo governo, eram desproporcionalmente de um grupo de burundineses", disse Tom Perriello, um emissário especial americano para a região dos Grandes Lagos da África.

"Alegações críveis de mortes extrajudiciais por forças do governo exigem investigações imediatas", ele acrescentou, "e os responsáveis devem responder por isso, independente de uma dimensão étnica ser ou não provada".

O governo nega qualquer preconceito étnico, dizendo que todos os que foram mortos eram "inimigos". Mas o que é inegável é que uma onda de suspeita e ansiedade está varrendo rapidamente as ruas ensolaradas de Bujumbura, a capital, onde pessoas vendiam árvores de Natal e enfeites reluzentes ao lado de homens caminhando com lançadores de granadas. Muitos tutsis estão apavorados.

Divisão no Exército

A grande preocupação agora é o que está acontecendo dentro do Exército. Os militares do Burundi são comandados por oficiais tutsis e hutus que em grande parte não se deixaram ser arrastados pelos problemas que tiveram início no primeiro semestre, quando o presidente Pierre Nkurunziza anunciou que disputaria um terceiro mandato, ignorando aqueles que diziam que a Constituição o impedia de fazê-lo.

Ele foi reeleito em julho. De lá para cá, várias centenas de pessoas foram mortas em protestos, assassinatos e em uma onda de homicídios macabros misteriosos. Todos os analistas entrevistados disseram que a receita mais certa para uma guerra total seria se os militares burundineses se dividissem de acordo com linhas étnicas, algo que parece estar começando a acontecer.

Na quarta-feira, um tenente-coronel tutsi do Exército anunciou que estava formando um novo grupo rebelde –o sexto. Essa é precisamente a preocupação: que oficiais tutsis comecem a se voltar contra o governo caso a verdade, ou mesmo a percepção, seja de que forças policiais do governo estejam visando tutsis inocentes.

Poucos ficaram surpresos quando o coronel, Edouard Nshimirimana, alegou que sua missão era "proteger a população".

Segundo vários analistas, Nkurunziza agora está alterando os quadros militares, afastando os oficiais tutsis nos quais não confia de posições vitais e desarmando outros. Um membro dos serviços de segurança disse que muitos policiais tutsis agora estão sendo impedidos de sair em patrulha e sendo designados para tarefas de menor importância, como guardas de banco.

Depois que os rebeldes atacaram várias bases militares em 11 de dezembro, o que representou a ação rebelde mais organizada e letal já realizada, as forças do governo invadiram sua própria academia militar, matando vários estudantes suspeitos de terem colaborado com os rebeldes e prendendo outros. Alguns suspeitos eram hutus, disseram duas pessoas com conhecimento da operação; a maioria era tutsi.

O governo também encontrou forte resistência armada em vários bairros predominantemente tutsis em Bujumbura e então foi de porta em porta nessas áreas, disseram testemunhas, arrastando vários homens jovens para a rua e então atirando em suas cabeças.

Alguns políticos de oposição foram rápidos em acusar o governo de genocídio, invocando deliberadamente Ruanda em 1994. Os dois países apresentam muitas semelhanças: tamanho, divisão étnica de cerca de 85% de hutus e 15% de tutsis, um legado de assassinato em massa. Mais de 100 mil vidas foram perdidas no Burundi durante sua guerra civil nos anos 90.

Etnias vivem juntas

Mas o enigma do Burundi é que não é tão binário quando Ruanda já foi ou talvez ainda seja, apesar do rápido desenvolvimento do segundo nos últimos 10 anos. No Burundi, a população, mesmo em meio à crescente política étnica, não se voltou contra si mesma nesta crise.

Hutus e tutsis continuam vivendo juntos, trabalhando juntos e casando-se entre si. Há poucos relatos, se é que há algum, de civis matando civis por razões étnicas, que é o que tornou o genocídio em Ruanda tão terrível e o que ocorreu em certo grau no Burundi nos anos 90. Muitos burundineses culpam as políticas coloniais europeias pela exacerbação das divisões entre os dois grupos, que falam a mesma língua e compartilham uma longa história comum.

Para complicar ainda mais, no Burundi a política e etnia se sobrepõe, mas não completamente. Mais de uma dúzia de tutsis entrevistados recentemente disseram ser contrários à decisão de Nkurunziza de concorrer ao terceiro mandato. Ao mesmo tempo, muitos dos rebeldes armados são hutus, aguardando em pequenas casas nos pântanos nos arredores de Bujumbura, prontos para atacar. E foi um general hutu que liderou uma fracassada tentativa de golpe em maio.

Ainda assim, as principais áreas de resistência antigoverno são bairros predominantemente tutsis de Bujumbura. Logo, é possível que a polícia não estivesse visando tutsis, mas apenas homens jovens que viviam nos redutos de oposição e que a polícia acreditava serem rebeldes. Mas parte da conversa recente levanta bandeiras vermelhas.

Um morador de Bujumbura que se escondeu em seu quarto durante uma recente varredura policial, espiando por uma saída de ar, disse que assistiu policiais arrastarem para a rua um de seus vizinhos, um homem tutsi que não se envolvia em política e que ganhava a vida vendendo leite.

"Isso é o troco por 1972", a testemunha disse que ouviu os policiais dizerem, uma clara referência às mortes de hutus por tutsis no Burundi em 1972. A testemunha disse que os policiais então atiraram na cabeça do vendedor de leite.

Outra testemunha disse que os policiais disseram a um homem tutsi que detiveram, "Chame seu amigo Paul Kagame para salvá-lo", referindo-se ao presidente de Ruanda, um tutsi, antes de matá-lo a plena luz do dia.

Negociação e reformas

A esperança é de que as negociações políticas que tiveram início na segunda-feira (28) desarmarão esta crise e apresentarão uma saída, apesar de poucos esperarem que Nkurunziza renuncie ou mesmo mude significativamente a composição de seu governo.

Segundo analistas, o melhor que a oposição pode esperar é um compromisso de reforma da polícia e dos serviços de segurança; o debandar da milícia jovem do partido do governo, que é acusada de muitos abusos de direitos humanos; e a suspensão às restrições à mídia de notícias. Essas ações nivelariam o campo de jogo para a próxima eleição presidencial, em 2020.

Mas cinco anos é um longo tempo. Especialmente em um lugar onde a quase todo amanhecer, mais corpos são encontrados estirados pelas ruas de Bujumbura, muitos mutilados como o de Uwamahoro, o homem cuja língua foi cortada. A União Africana propôs o envio de 5 mil tropas de força de paz, apesar das autoridades burundinesas terem rejeitado a ideia e as autoridades da União Africana terem reconhecido que seria muito difícil posicionar milhares de soldados em Bujumbura diante da oposição do governo.

Os países ocidentais impuseram sanções contra alguns burundineses, tanto autoridades do governo quanto membros da oposição. Mas alguns analistas disseram que a atenção do Ocidente é uma espada de dois gumes. Com todo o foco nas negociações que se aproximam, grupos rebeldes podem intensificar seus ataques, como fizeram em meados de dezembro, para chamar a atenção. O recente anúncio por Nshimirimana de seu novo grupo rebelde pode ser simplesmente um estratagema para conseguir um assento à mesa de negociação, enquanto ainda é possível.

"É um pesadelo", disse uma autoridade da União Africana. "Esta coisa adquiriu um tom étnico. E agora temos muitas facções diferentes, de modo que se as negociações não derem certo, podemos acabar com outra Somália."

Tradução: George El Khouri Andolfato