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Desesperados para dormir, sem-teto se apoiam em "mafiosos do sono" na Índia

Grupo de sem-teto forma fila para receber doação de alimentos em Nova Déli - Manish Swarup/Associated Press
Grupo de sem-teto forma fila para receber doação de alimentos em Nova Déli Imagem: Manish Swarup/Associated Press

Ellen Barry e Ravi Mishra

Em Déli (Índia)

20/01/2016 06h00

Quando se aproxima a meia-noite na Velha Déli, e uma neblina espessa e gelada se espalha sobre a cidade, Farukh Khan senta-se numa esquina e observa o mercado para seus serviços ganhar vida.

Um a um, eles aparecem: homens desesperados para dormir. Condutores de bicicletas-riquixás puxam de uma pilha suas mantas de 20 rupias, ou US$ 0,30 (R$ 1,20), e dobram seus corpos em ângulos estranhos nos assentos de um metro de seus veículos. Trabalhadores diaristas se encolhem na calçada gélida, às vezes abraçando-se a outros para se aquecerem.

Os que não podem pagar a Khan montam fogueiras, com plástico se necessário, e se agacham ao redor esperando que a noite passe.

Alguma cidade tem uma economia do sono mais estratificada que Déli no inverno? O cineasta Shaunak Sen, que passou dois anos pesquisando os vendedores de sono da cidade para um documentário, "Cities of Sleep" [“Cidades do Sono”], descobriu um mercado paralelo extenso que se formou devido à ampla procura por abrigo na cidade. Em alguns lugares, ele gera o que o cineasta chama de "máfia do sono, que controla quem dorme onde, por quanto tempo e com que qualidade de sono".

A história do sono privatizado segue um padrão conhecido nesta cidade: depois de décadas de crescimento descontrolado, a incapacidade do governo local de oferecer serviços como saúde, água, transporte e segurança deu origem a indústrias privadas prósperas, eficientes o bastante para suprir as necessidades dos que podem pagar.

Mas, diante dos extremos de calor e frio em Déli, um abrigo é muitas vezes uma questão de sobrevivência. A polícia declara que recolhe mais de 3.000 corpos não identificáveis das ruas todo ano, geralmente homens cuja saúde se deteriorou após anos de vida sob a intempérie. O inverno apresenta opções especialmente duras para os trabalhadores sem-teto, que não têmlugares para proteger os cobertores de ladrões durante o dia. Alguns tentam guardá-los no alto de árvores.

O dilema moral de transformar isto em um negócio está no centro do filme de Sen, que estreou em um festival de cinema em Mumbai em novembro. Um de seus retratados, Ranjit, adota uma atitude protetora com seus "dormidores" habituais, como ele os chama, permitindo que adormeçam assistindo a filmes de Bollywood por 10 rupias por noite. Outro, um empresário arrogante chamado Jamaal, aumenta seu preço de 30 para 50 rupias quando a temperatura cai.

Em uma cena, quando um homem suplica: "Senhor, sou um homem pobre, vou morrer", Jamaal ri e responde: "Você não pode morrer. Vai custar 1.250 rupias".

"O sono é o senhor mais exigente que existe; ninguém pode detê-lo quando ele decide chegar", diz Jamaal no filme. "Fomos os primeiros a reconhecer o puro poder econômico do sono."

Como muitas empresas nesta cidade, os comerciantes de sono são ao mesmo tempo altamente organizados e oficialmente inexistentes. No bairro de Khan, quatro vendedores de mantas dividiram as calçadas e os espaços públicos, e quando a noite cai seus clientes se acomodam em colônias de formas arredondadas. Alguns voltam ao mesmo lugar todas as noites durante anos.

Um homem bêbado, com o cabelo desgrenhado, aproximou-se de Khan e suplicou: "Irmão, por favor", e Khan murmurou um xingamento. Depois agarrou uma manta e a atirou para ele. "Se eu não a der, ele vai congelar e morrer."

No início da semana isso aconteceu a apenas um quarteirão do ponto de Khan. O varredor de rua tentou acordar um homem adormecido de manhã, mas puxou a manta e viu que seus pés estavam rígidos.

O homem, de cerca de 35 anos, havia passado cambaleante na noite anterior, embriagado. Ninguém o conhecia; um policial pediu que outros homens vasculhassem seus bolsos, esperando encontrar alguma identificação, mas estavam vazios. Ele cobriu o corpo com um lençol e ele ficou ali na rua, até que os funcionários do necrotério vieram, ao anoitecer.

Uma série de mortes de "moradores de rua" levou a Suprema Corte da Índia a decidir em 2010 que as grandes cidades do país devem oferecer abrigo para 0,1 % da população. Neste inverno, Déli expandiu seu sistema de abrigos para acomodar mais de 18 mil pessoas, mas os índices de ocupação são altos e o número de sem-teto é enorme, provavelmente mais de 100 mil, segundo Ashwin Parulkar, que pesquisa desabrigados no Centro de Pesquisas Políticas de Déli. Os vendedores de sono, segundo Parulkar, prosperam onde o governo falhou.

"Eles os exploram", disse. "Existe uma série de políticas públicas para estas pessoas que deveriam contornar esse tipo de exploração."

Khan, que está aqui há oito anos, disse que oferece crédito para alguns de seus clientes regulares até 100, às vezes 200 rupias. (Vários homens trêmulos, que tinham passado a noite ao redor de um monte de brasas, zombam com descrença ao ouvir isso.) Ele considera sagrados os limites entre os vendedores, e não os ultrapassa. Faz pagamentos regulares à polícia e aos varredores de rua para que não perturbem seus clientes, e mantém relações estreitas com os batedores de carteira locais para lhes dizer quem não devem roubar.

"É difícil", explicou, "mas o que aconteceria se eu não estivesse aqui? Mais gente morreria." E acrescentou: "Tenho a sensação de que estou fazendo caridade".

Entre seus clientes estão os ébrios e os insanamente esperançosos. Mohammad Sajid, com uma perna afetada pela poliomielite, dividia um cobertor com um amigo, também deficiente físico, que ele tinha conhecido lavando pratos em uma barraca de comida. Os dois tinham perdido o emprego uma semana antes, e todos os dias seu estoque de dinheiro diminuía: 2 rupias (R$ 0,12) para usar banheiros públicos, 5 (R$ 0,30) para tomar banho, 5 por meia xícara de chá, 10 (R$ 0,60) por meia manta.

Seu amigo pensa em voltar para sua aldeia, pelo menos até que o frio passe, mas Sajid balança a cabeça. "Eu voltarei", disse. "Mas primeiro quero ser alguém na vida."

Khan sabe como é. Volte em cinco anos, disse-me ele, e a metade destes homens continuará aqui. "Todo mundo tem uma história triste", continuou. "Por que uma história feliz viria dormir aqui?" Ele se serviu de uísque em um copo plástico. "Eles acordam de manhã, usam o banheiro e estão prontos para trabalhar", disse Khan. "O sistema não para."