Topo

Oposição usa casas construídas por Chávez para conquistar eleitores na Venezuela

Moradores do complexo habitacional Omar Torrijo, em Caracas, formam fila para comprar comida subsidiada pelo governo federal - Meridith Kohut/The New York Times
Moradores do complexo habitacional Omar Torrijo, em Caracas, formam fila para comprar comida subsidiada pelo governo federal Imagem: Meridith Kohut/The New York Times

Nicholas Casey e Patricia Torres*

Em Ciudad Miranda (Venezuela)

28/01/2016 06h00

Vinte mil pessoas vivem neste bastião de concreto construído pelo ex-presidente Hugo Chávez. Ele lhes deu as casas, e eles lhe deram seus votos. Mas houve uma coisa que Chávez prometeu e nunca entregou à massa: os títulos de propriedade que permitiriam a seus eleitores vender suas casas.

Agora que os antigos adversários de Chávez dominaram o Parlamento da Venezuela, eles estão adotando a mesma tática e aperfeiçoando-a. Querem dar as escrituras de centenas de milhares de moradias que Chávez e seu movimento construíram, para conquistar a lealdade dos pobres do país pelos próximos anos.

Essa entrega é tão grande quanto qualquer outra já orquestrada pelo governo de linha socialista de Chávez, e tem um viés irônico. Durante anos, a oposição criticou a tendência de Chávez a usar os espólios da riqueza do petróleo da Venezuela para distribuir moradias, denunciando-a como uma trama óbvia para ganhar votos.

Agora os novos líderes estão aproveitando o mesmo manual populista que criticavam, um sinal revelador de que a estratégia de ganhar confiança por meio da generosidade do governo não desapareceu.

"A oposição está tentando imitar os aspectos populares do chavismo", disse Francisco Rodríguez, um economista do Bank of America Merrill Lynch, referindo-se ao movimento políticode Chávez.

Depois de conquistar este mês a maioria na Assembleia Nacional pela primeira vez em 16 anos, os adversários de Chávez rapidamente retiraram seus retratos do Congresso, esboçaram uma proposta de libertar os políticos presos pelo governo e até ameaçaram destituir o presidente Nicolás Maduro, o leal sucessor de Chávez.

Mas a economia desastrosa do país aumenta a pressão para que os legisladores façam algo popular. O FMI (Fundo Monetário Internacional) prevê uma inflação anual de 720% na Venezuela, e a escassez de alimentos gera filas de horas diante das lojas. O preço do petróleo, a linha vital do país, despencou. Com Maduro na Presidência, o Congresso não tem o controle da política econômica.

E assim os legisladores recorreram às centenas de milhares de casas construídas por Chávez e seus seguidores.

A questão de quem controla os títulos das casas vai muito além de um presente isolado. Chávez, que morreu de câncer em 2013, transformou os dólares do petróleo em concreto, lançando uma experiência de mudar os pobres da Venezuela de favelas para arranha-céus. Maduro seguiu as pegadas de seu antecessor, mas os governos anteriores a Chávez já cortejavam os eleitores com moradias.

"Isto vai ao cerne do que deveria ser o modelo econômico da Venezuela", disse David Smilde, um sociólogo na Universidade Tulane que vive em Caracas, a capital venezuelana. "Os pobres devem decidir o que fazer com suas propriedades, ou é o governo central que deve tomar as decisões?"

Julio Borges, o legislador que está redigindo a lei, afirma que as casas darão capital aos pobres pela primeira vez, conduzirão a atividade para ajudar a reduzir a crise econômica da Venezuela e permitirão que os pobres determinem seu próprio destino a partir de agora.

"As pessoas foram tratadas como crianças", disse ele. "Com esta lei, você pode fazer uma venda e dar uma herança, algo que hoje é impossível."

Os seguidores de Maduro veem qualquer proposta de transferir os títulos como uma panaceia, uma tentativa evidente de reivindicar o crédito por uma enorme quantidade de residências construídas como propriedade pública.

"Nós demos à população moradia digna", disse Darío Vivas, um deputado do Partido Socialista Unido, de Maduro. "Julio Borges e a oposição não construíram uma só casa."

Vivas afirmou que o governo já tinha cumprido sua promessa de entregar as escrituras, posição amplamente defendida pelos esquerdistas. Mas muitos especialistas alegaram que se o governo entregou os títulos das casas foi provavelmente em apenas alguns casos e que a maioria dos moradores não os possuem.

Em um discurso incendiado sobre o Estado da União diante do Congresso este mês, Maduro prometeu fazer o possível para bloquear o trabalho de seus oponentes.

"Vocês terão de me derrubar primeiro para aprovar uma lei de privatização", disse ele sob aplausos da esquerda.

Aqui em Ciudad Miranda, a cerca de uma hora de carro de Caracas, Coromoto Carmona, 40 anos, desempregada, olhava por uma janela protegida por grades. Ela contou a história de como conseguiu sua casa aqui e como ela se tornou um lugar onde se sente enjaulada.

Carmona perdeu sua primeira casa em um deslizamento de terra mortal em 1999 e passou cinco anos mudando entre abrigos do governo. Em 2004 recebeu um telefonema emocionante do governo: ela participaria de uma reunião com Chávez na mansão presidencial, La Casona, onde ele pessoalmente lhe entregaria uma nova moradia.

Carmona mudou-se para sua nova casa de dois quartos com nove membros de sua família. Mas logo surgiram problemas. Carmona percebeu que não havia lugar para comprar alimentos, poucas escolas e nenhum espaço público para os moradores. Hoje em dia, só recebe água durante quatro horas uma vez por semana.

O governo de Chávez havia prometido a ela e a outros as escrituras de suas casas. Mas Carmona só recebeu um papel dizendo que tinha permissão para morar ali. Se ela sair, não está claro se poderá encontrar outro lugar para viver. "Aqui é como uma prisão", disse ela.

Franco Micucci, um arquiteto que trabalhou em Ciudad Miranda, diz que seus problemas sociais não são únicos e serão um desafio tão grande para os novos líderes venezuelanos quanto foram para o movimento chavista. Ele diz que ele e seus colegas originalmente projetaram espaços públicos e serviços como escolas e mercados para os moradores de Ciudad Miranda. Mas o governo só construiu as casas.

"Não me surpreende que os moradores queiram deixar o lugar", disse ele. "Eu e muitos arquitetos fomos otimistas", mas afinal "Ciudad Miranda é como a Cidade de Deus", acrescentou, referindo-se ao filme brasileirosobre a favela tomada pela droga no Rio de Janeiro.

Os moradores de Ciudad Miranda dizem que a área hoje é controlada por gangues armadas, conhecidas localmente como "colectivos", que são alinhadas ao partido de Maduro. Apesar de perder a maioria no Legislativo, o partido do presidente ganhou em Ciudad Miranda.

Marquesa Alcendra, uma avó de 68 anos, quer vender sua casa. Depois de perder sua moradia anterior em um deslizamento de terra e oscilar durante anos entre abrigos temporários --e morar por algum tempo em um arranha-céu chamado Torre de Davi que foi ocupado por sem-teto--, ela recebeu uma casa em Ciudad Miranda, projeto habitacional que Chávez ergueu em uma enorme base militar em Caracas.

À primeira vista, os prédios parecem maravilhosos: novas torres com apartamentos de dois quartos, elevadores e áreas comuns. Do lado de fora, moradores jogavam futebol com trabalhadores da construção da China que executam contratos para uma série de novos edifícios em obras.

Mas Alcendra diz que o único lugar para comprar comida é uma loja de "mercado negro" que vende produtos básicos por preços muito acima dos tabelados pelo governo. Ela fechou suas janelas com tábuas, temendo roubos. E apesar de soldados da base guardarem a entrada do complexo ela diz que teme seus vizinhos.

"Minha vida era melhor antes", afirma.

*Meridith Kohut e María Eugenia Díaz colaboraram na reportagem

Venezuela rejeita decreto de emergência econômica baixado por Maduro

Band Notí­cias