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Candidato à presidência do Peru, general responde por assassinato de jornalista

Daniel Urresti e Susana Villaran - Ernesto Arias/Efe
Daniel Urresti e Susana Villaran Imagem: Ernesto Arias/Efe

Sonia Goldenberg*

Em Lima (Peru)

02/02/2016 00h01

Nos anos 80, Hugo Bustios era um repórter fotográfico que trabalhava em Ayacucho, uma província no Peru que estava na época sob lei marcial. O Exército travava uma campanha brutal de contrainsurreição contra os rebeldes maoístas conhecidos como Sendero Luminoso. O trabalho de Bustios como repórter o tornava uma testemunha inconveniente das atrocidades cometidas por ambos os lados, de modo que recebia numerosas ameaças de morte.

Em 1988, ele foi emboscado em plena luz do dia por uma patrulha militar. Ele foi morto a tiros e seu corpo foi desfigurado por uma explosão de granada, visando intimidar outros.

Mais de 50 jornalistas foram assassinados no Peru desde que o país voltou à democracia em 1980. Quase nenhum caso foi levado à Justiça. Mas o assassinato de Hugo Bastios se recusava a desaparecer; o caso foi assumido pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas, com sede em Nova York, e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

O progresso na investigação foi glacial, mas passado mais de um quarto de século de sua morte, um julgamento está em andamento. Mas isso é o fato menos extraordinário a respeito, porque o homem no banco dos réus pode vir a ser o próximo presidente do país.

O general Daniel Urresti, conhecido na época da morte de Bustios pelo pseudônimo de capitão Arturo, era o chefe de inteligência da base do Exército em Huanta, Ayacucho. O general Urresti foi acusado no ano passado pela morte do jornalista. Se condenado, poderá passar 25 anos na prisão.

Ao mesmo tempo, o general Urresti foi escolhido como candidato à presidência pelo partido da situação, o Partido Nacionalista del Perú, nas eleições gerais marcadas para 10 de abril.

Se isso já não fosse bizarro o bastante, a companheira de chapa do general Urresti é Susana Villaran, uma proeminente ativista de direitos humanos. Entre 2002 e 2005, ela serviu como comissária da Comissão Interamericana de Direitos Humanos –a mesma organização que ajudou a levar o caso de Urresti à Justiça.

Chapas como essa são menos incomuns do que se pensa: os partidos são fracos no Peru e os políticos têm pouco pudor em trocar de lado. Mas mesmo para os padrões peruanos, a candidatura de Villaran à vice-presidência é vista como descaradamente oportunista. A viúva de Bustios, Margarita Patino, acusou Villaran de uma traição que "insulta, irrita e ultraja as famílias das vítimas de graves violações de direitos humanos".

Eu conhecia bem Hugo Bustios. Nós trabalhamos juntos em Huanta, em meados dos anos 80.

Logo após a morte de meu colega, eu me tornei diretora-executiva do Comitê para a Proteção dos Jornalistas e, em 1990, juntamente com a organização Human Rights Watch e o Centro para Justiça e Lei Internacional, nós levamos o caso de Bustios à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 1997, a comissão exigiu que o governo peruano desse início a uma investigação independente, imparcial, para que os responsáveis fossem levados a julgamento.

O caso permaneceu estagnado porque o governo do presidente Alberto Fujimori aprovou uma lei de anistia dando imunidade aos militares envolvidos em abusos de direitos humanos durante a emergência. Apenas em 2001, quando uma comissão da verdade foi nomeada, é que o governo peruano finalmente concordou em investigar 165 casos, incluindo o assassinato de Bustios. Em 2007, um tribunal sentenciou dois oficiais pelo crime; mas em 2009, um dos condenados implicou o general Urresti como tendo participado da morte.

O general Urresti nega as acusações e insiste que o processo tem motivações políticas –visando impedir suas ambições presidenciais. Villaran disse que, apesar de dúvidas no passado, ela está convencida da inocência de seu companheiro de chapa.

Eu nunca tinha visto o general pessoalmente até dezembro passado, quando testemunhei em seu julgamento, mas ele é uma figura pública controversa no Peru há algum tempo. Em 2014, ele foi nomeado ministro do Interior pelo presidente Ollanta Humala –que também foi oficial do Exército durante a "guerra suja"– apesar de o general já estar sob investigação pelo assassinato de Bustios. Ele durou apenas oito meses no cargo– forçado a renunciar após críticas de brutalidade policial durante protestos no ano passado.

Por uma coincidência perversa, o tribunal deverá proferir seu veredicto no caso de Urresti ao mesmo tempo em que os peruanos estiverem indo às urnas no primeiro turno das eleições, em abril. Logo, os eleitores enfrentam não apenas a perspectiva bizarra de um candidato à presidência alternando campanha com aparições televisionadas em um tribunal, mas também a possibilidade teórica de um presidente eleito governando da prisão.

É improvável que ele vença, mas esse pode não ser o principal objetivo de sua candidatura. Ao indicar o general Urresti como seu sucessor político, Humala pareceu absolver um suspeito indiciado. Os juízes no Peru não são conhecidos por sua independência e integridade; o endosso presidencial pode certamente ser visto como uma tentativa de influenciar o andamento do caso –e pode, de fato, comprometer a imparcialidade do julgamento.

O esforço para colocar um aliado na presidência pode ser um "toma lá, dá cá" para o presidente de saída. A primeira-dama, Nadine Heredia, está sob investigação por promotores por possíveis acusações de lavagem de dinheiro envolvendo fundos de campanha não declarados e pela transferência de milhões de dólares para contas bancárias pessoais secretas no exterior. (O próprio presidente estaria protegido contra um processo por acusações semelhantes após deixar o cargo, a menos que sua imunidade seja suspensa por uma comissão do Congresso.) Humala deixará a presidência com um índice de aprovação miseravelmente baixo. Seu endosso à candidatura do general Urresti pode ser visto como uma tentativa final desesperada de escorar sua posição política.

Não é preciso dizer que aqueles que aspiram a um alto cargo público deveriam estar isentos de suspeita de conduta criminosa. Claramente esse não é o caso de Urresti, e isso mina a frágil democracia do Peru. Pior, a candidatura do general Urresti interfere seriamente na condução da justiça. Isso subverte a luta de décadas do Peru para chegar a termos com seu passado sombrio de crimes contra a humanidade.

*Sonia Goldenberg, uma ex-diretora-executiva do Comitê para a Proteção dos Jornalistas, é uma jornalista e documentarista