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Condição íntima torna mulheres os "leprosos" do século 21

Mulher que sofrem com fístula vão a centro de saúde em Niamey, Níger - Issouf Sanogo/AFP
Mulher que sofrem com fístula vão a centro de saúde em Niamey, Níger Imagem: Issouf Sanogo/AFP

Nicholas Kristof

Em Adis Abeba (Etiópia)

27/03/2016 06h01

Uma das piores coisas que podem acontecer a uma mulher ou menina ao redor do mundo é uma fístula, um lesão interna causada pelo parto (ou ocasionalmente por estupro), que a deixa com incontinência, humilhada e, às vezes, com cheiro ruim.

As vítimas são os leprosos do século 21 e apesar de a condição ser quase totalmente evitável, centenas de milhares de mulheres sofrem dela em todo o mundo.

A condição é invisível, porque desagradavelmente envolve sexo, odor e partes íntimas do corpo, e porque as vítimas tendem a viver em países pobres e já contam com três pontos negativos contra elas: são pobres, rurais e mulheres, portanto sem voz e marginalizadas.

Elas fazem parte do mesmo grupo ao qual, de modo rotineiro, é negado educação, o direito de ter uma propriedade, emprego ou qualquer recurso após serem espancadas, estupradas ou casadas contra sua vontade, e isso é o motivo para que a igualdade de gênero em todo o mundo esteja no topo da agenda de justiça social.

E também na agenda presidencial. A corrida presidencial americana provocou alguma discussão sobre o que "direitos da mulher" significam em 2016. Mas essa discussão se concentra internamente nos Estados Unidos, quando os desafios mais terríveis são enfrentados por mulheres e meninas no exterior, como Marima, que suportou uma fístula aqui na Etiópia.

Marima era uma estudante colegial que planejava se tornar professora quando se apaixonou e se casou com outro estudante. Ela não queria engravidar, mas nunca ouviu falar de contraceptivos, de modo que logo sua barriga começou a crescer.

Em grande parte do mundo, uma das coisas mais perigosas que uma mulher pode fazer é ficar grávida. Marima tentou parir em casa, e após dias de trabalho de parto obstruído, o feto morreu e ela ficou com uma fístula obstétrica (ou vaginal).

Uma fístula é um buraco entre o canal vaginal e a bexiga ou o reto. Marina sofreu ambos, deixando com um vazamento constante de urina e fezes pela vagina. Além disso, como é comum, ela sofreu um dano nos nervos chamado pé caído, de modo que não podia andar.

O marido de Marima a abandonou e arrumou outra esposa. Marima ficava deitada em um plástico no chão da casa de seu irmão, incapaz de se mover, totalmente desamparada e sozinha, já que seus familiares a censuram por seu constante mau cheiro.

"Minha cunhada dizia: 'Você fede demais. As pessoas não gostam de vir à nossa casa'", lembrou Marima, com lágrimas aos olhos. Ela parou de comer comida sólida para que vazasse menos fezes, e por quatro meses permaneceu imóvel no chão, sobrevivendo de chá e leite de camelo.

O peso de Marima caiu para apenas 25 Kg. Ela tinha escaras nas nádegas e úlceras em suas coxas e genitália por causa do gotejamento constante de urina. Aos 17 anos, ela queria morrer.

"As pessoas diziam que Deus me amaldiçoou", disse Marima. "Eu sentia que era melhor morrer do que ter este problema."

Então um parente a levou a uma filial da Hamlin Fistula Ethiopia, uma organização sem fins lucrativos que trata casos de fístula. Hoje, ela está caminhando de novo, recuperou peso e o buraco com o reto foi reparado. O dr. Fekade Ayenachew, o diretor médico, disse que ainda está estudando como melhor tratar o vazamento de urina.

Fístulas costumavam ser comuns no Ocidente e havia um hospital especializado em fístula em Manhattan, no local onde agora se encontra o hotel Waldorf Astoria. Mas assim que cesarianas se tornaram disponíveis, elas em grande parte desapareceram.

A forma de prevenir fístulas também é a forma de prevenir a morte da mãe durante o parto: maior investimento em saúde reprodutiva, incluindo contraceptivos e cesarianas. Isso funciona: a Etiópia reduziu sua taxa de mortalidade em mais da metade ao longo de 20 anos e agora busca uma nova redução pela metade em pouco mais de cinco anos.

Organizações como a Hamlin Fistula Ethiopia, Fistula Foundation e EngenderHealth mostram que onde as vidas das mulheres são uma prioridade, elas podem ser salvas. Propostas a respeito de fístula foram apresentadas na Câmara americana pelas deputadas Rosa DeLauro e Carolyn Maloney, mas estão paradas.

Um passo simples seria ajudar as mais de 200 milhões de mulheres em todo o mundo que não desejam engravidar, mas não têm acesso a formas confiáveis de contracepção. "Se eu soubesse sobre anticoncepcionais, eu os teria usado", disse Marima.

Para seu crédito, Hillary Clinton destacou as questões globais da mulher quando foi secretária de Estado, e Michelle Obama tem promovido a educação das meninas em todo o mundo, mas essa desigualdade de gênero global não recebeu atenção nesta campanha presidencial. E falando francamente, não funcionará se apenas mulheres falarem a respeito. Os homens também precisam se envolver.

Este sem dúvida parece ser um assunto sombrio ou mórbido, mas não há visão mais feliz do que a de uma mulher cujo problema de fístula foi resolvido. Jamila, 31 anos, outra mulher tratada no Hamlin Fistula Ethiopia, estava radiante. "Estou seca!" ela declarava de forma triunfante. "Não há vazamento há seis dias!"

"Antes, eu tinha perdido a esperança", acrescentou Jamila, que suportou uma fístula por quatro anos. "Eu era como uma pessoa morta. Mas agora renasci!"