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Opinião: Tenho culpa, já que faço parte da mídia dos EUA que ajudou a criar Trump

Rhona Wise/AFP
Imagem: Rhona Wise/AFP

Nicholas Kristof

29/03/2016 06h00

Alguns de nós na mídia de notícias às vezes atribuímos a ascensão de Donald Trump à manipulação tóxica pelo Partido Republicanos dos ressentimentos raciais ao longo dos anos. Mas também deveríamos reconhecer outra força que empoderou Trump: nós.

Eu entrevistei uma série de jornalistas e acadêmicos, e há um amplo entendimento (apesar de não universal) de que nós da mídia erramos feio. Nosso primeiro grande erro foi o de a televisão, em particular, ter dado o microfone a Trump sem checar adequadamente os fatos ou examinar de modo rigoroso seu retrospecto, em uma simbiose covarde que aumentou a audiência de ambos.

"Trump não é apenas uma mina de ouro instantânea de audiência/circulação/cliques; ele é o veio principal", me disse Ann Curry, a ex-âncora do programa "Today". "Ele subiu ao palco da campanha presidencial no momento exato em que a mídia estava lidando com as inseguranças profundas de seu futuro financeiro. A verdade é que a mídia precisava de Trump da mesma forma que um viciado em crack precisa de uma dose."

Curry diz estar embaraçada pela injustiça cometida contra os outros candidatos republicanos, que não receberam o mesmo tempo no ar.

Uma análise pelo "The New York Times" apontou que a mídia de notícias americana deu a Trump US$ 1,9 bilhão em publicidade gratuita nesta campanha eleitoral. Isso é 190 vezes mais do que ele pagou em propaganda, e muito mais do que qualquer outro candidato recebeu. Como colocou meu colega Jim Rutenberg, algumas pessoas se queixam de que a "'CNN' entregou sua grade de programação para Trump", mas a '"CNN" teve muita companhia.

Larry Sabato, um professor de política da Universidade da Virgínia, diz que as emissoras de televisão "têm muito a responder".

"Nós sabemos que trata-se de audiência, e Trump a gera", diz Sabato. "Você não consegue tirar os olhos dele. Quando Trump aparece na TV, eu paro o que estou fazendo e fico aguardando pela batida de carro."

Sabato critica particularmente os programas de notícias matinais de domingo, que permitiram a Trump "aparecer" por telefone, em vez de pessoalmente.

Apesar de muitos de nós jornalistas termos ridicularizado Trump, a verdade é que, de modo geral, ele foi mais esperto do que nós (com muitas exceções, pois houve realmente um esforço sério para contê-lo e investigar a Universidade Trump e seus vários negócios fracassados). Ele manipulou a televisão fazendo declarações ultrajantes que atraíam ainda mais câmeras, sem enfrentar questionamentos posteriores céticos o bastante.

Não se trata de que não deveríamos ter dado cobertura à loucura de Trump, mas sim que deveríamos ter fornecido de forma agressiva um contexto, na forma de checagem dos fatos e exame robusto das políticas propostas. Um candidato que alega que sua sagacidade nos negócios lhe permitirá administrar o país, mereceria um maior escrutínio de suas falências e investimentos medíocres.

Todos os políticos distorcem a verdade, é claro. Mas nunca encontrei um político nacional nos Estados Unidos tão mal informado, evasivo, pueril e enganador quanto Trump.

Quando o site de checagem de fatos PolitiFact estava pronto para escolher sua "mentira do ano" de 2015, ele descobriu que as únicas candidatas reais eram as mentiras de Trump. Assim, ele as reuniu e concedeu o título para "as muitas distorções de campanha de Donald Trump".

Esse padrão de prevaricação é que nós da mídia, especialmente a televisão, não acentuamos de modo adequado, deixando muitos eleitores com a percepção de que Trump é uma pessoa franca e honesta.

O motivo para essa passividade se deve, no meu entender, à segunda falha: nós tratamos Trump, de forma equivocada, como uma farsa. "A mídia cometeu o erro de cobrir no início a candidatura de Trump como algum tipo de piada ou pegadinha", nota Danielle S. Allen, uma cientista política de Harvard. "O uso repetido de referências a 'o Donald' em todas as plataformas estruturou a conversa em torno da afeição irônica por uma celebridade, em vez de em torno de uma conversa séria a respeito do caráter e políticas."

"Trump era literalmente uma piada", disse Ralph Begleiter, um ex-correspondente da "CNN" e professor de comunicação da Universidade de Delaware. Begleiter nota que Sarah Palin recebeu uma checagem muito mais séria como candidata à vice-presidente em 2008 do que Trump como candidato presidencial.

Eu, pessoalmente, cometi o erro de considerar a candidatura de Trump como um golpe publicitário, zombando da ideia de que pudesse ser escolhido. Mea culpa.

Nós fracassamos em levar Trump a sério por causa de uma terceira falha da mídia: nós em grande parte ignoramos a dor sentida pelos americanos de classe trabalhadora e, consequentemente, não avaliamos o quanto sua mensagem repercutia. "A mídia está fora de sintonia com esses americanos", nota Curry.

As elites da mídia falam de forma acertada sobre nossa insuficiente diversidade racial, étnica e de gênero, mas também carecemos de diversidade econômica. Nós habitamos um mundo de classe média e não cobrimos de forma adequada a parte dos Estados Unidos que está enfrentando dificuldades. Nós passamos tempo demais conversando com senadores, mas não o suficiente com os desempregados.

Dito tudo isso, preciso acrescentar que não sei se uma maior checagem de fatos teria importado. Tom Brokaw, da "NBC", fez um trabalho notável de contestação de Trump, mas diz que quando os jornalistas de fato questionam as declarações mentirosas de Trump, nada acontece: "Seus seguidores criticam as perguntas, não suas respostas incompletas, erradas ou fracas."

Igualmente, Bob Schieffer, da "CBS", me diz: "Não sei ao certo se uma maior checagem de fatos teria mudado algo. Estamos em um novo mundo, onde a atitude parece pesar mais que os fatos".

Isso pode ser verdade. Mas ainda acho que erramos feio e este deveria ser um momento de autorreflexão no jornalismo.

Apesar de alguma cobertura notável a respeito de Trump, no geral, nós na mídia empoderamos um demagogo e falhamos com o país. Fomos cãezinhos de colo, não cães de guarda.