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Pós-graduação polêmica forma terapeutas para ajudar gays em autoafirmação

J.D. Fuller ensina curso de saúde mental multicultural, que faz parte da especialização para formar psicoterapeutas "de afirmação de LGBT" - Kendrick Brinson/The New York Times
J.D. Fuller ensina curso de saúde mental multicultural, que faz parte da especialização para formar psicoterapeutas "de afirmação de LGBT" Imagem: Kendrick Brinson/The New York Times

Casey Schwartz

Em Culver City, Califórnia (EUA)

18/07/2016 06h00

“Estamos prontos para nos expor?” perguntou J.D. Fuller, na metade da aula de pós-graduação que ela leciona nas noites de terça-feira na Universidade de Antioquia.

Os alunos de Fuller não precisaram de estímulo adicional. Eles começaram a remover as camadas de roupa, revelando o que estavam vestindo por baixo: camisetas nas quais rabiscaram nomes, rótulos e insultos em tinta de pincel marcador.

Por toda a sala, a coleção era variada: “Maricas”, “Aids”, “pedófilo”, “pervertido”, “bicha”, “socialite”, “gordo”, “emocionalmente branco”, “imigrante”, “americano estúpido”.

Bem-vindo ao Aconselhamento Multicultural e de Saúde Mental LGBT, uma das aulas obrigatórias do curso de treinamento especializado da Antioquia. Os alunos, de idades que variam da faixa dos 20 anos à faixa dos 50, estão a caminho de se tornarem psicoterapeutas afirmativos LGBT.

“É assim que seu cliente entra na sala”, disse Fuller. “Plenamente exposto. Todos os medos deles à frente sobre os estereótipos que vocês ouviram. Tudo o que temem que você pense a respeito deles.”

Fuller, uma assistente social clínica, iniciou a aula uma hora antes esclarecendo que é uma “lésbica afro-americana que se identifica como masculina”. Na camiseta dela, ela escreveu: “preguiçosa”, “ruidosa”, “furiosa”.

Por toda a sala, os alunos olhavam para o trabalho uns dos outros com curiosidade acanhada, aguardando por alguém quebrar o silêncio.

“Permitam-me falar primeiro”, disse Bradlisia Dixon, uma mulher miúda com cabelo com corte rente e grandes brincos de argola. “Não fiz a camiseta porque ela fez com que me sentisse mal. Eu levei a camiseta para o trabalho comigo, mas ela ficou na minha bolsa, e fiquei pensando, tipo, tenho que fazer essa camiseta, mas não quero fazer essa camiseta. E permaneceu assim por dias, até que finalmente disse, não vou fazer a camiseta.”

“Aprecio sua honestidade a respeito disso”, Fuller lhe disse. “Obrigado. Eu apoio isso.”

Iniciado em 2006, o programa de Antioquia é, até onde seus líderes sabem, a primeira e única especialização em psicologia clínica afirmativa LGBT de nível de pós-graduação. Mas ele faz parte de uma crescente tendência em psicoterapia altamente especializada, que nos últimos anos se tornou especialmente pronunciada em relação a pacientes lésbicas, gays, bissexuais e transgênero.

“Nossa hipótese de trabalho é que as pessoas LGBT nascem dessa forma, com sua própria psicologia, sua estrutura própria, suas próprias necessidades”, disse Doug Sadownick, que é um dos fundadores e foi o diretor do programa até este ano. “Talvez haja algo na composição das pessoas gays, lésbicas, bi e trans que seja único delas, isto é, psicologicamente gay, bi, trans. Isso não será entendido por nenhum prisma, exceto por esse prisma.”

Ele chama essa posição de “essencialista”: que a diferença entre gay e hétero é profunda e arraigada, permeando cada nível do ser, do biológico ao psicológico. É a convicção filosófica que levou Sadownick a ajudar a criar o curso de especialização LGBT há 10 anos, acreditando que esses pacientes precisavam de algo mais do que a maioria dos psicoterapeutas não especializados pode oferecer.

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Douglas Sadownick (à dir) lidera uma classe na Universidade de Antioquia. Sadownick é um dos fundadores do programa de pós-graduação de psicologia da Antioquia em que alunos aprendem a se especializar no tratamento de clientes que são lésbicas, gays, bissexuais ou transgêneros
Imagem: Kendrick Brinson/The New York Times


“Somos pessoas LGBT. Somos profundamente quebradas”, ele disse.

O programa cresceu e passou a incluir de 35 a 45 estudantes por ano, que têm aulas de especialização além das exigências gerais para um mestrado em psicologia clínica. As aulas de afirmação LGBT visam realizar duas tarefas centrais.

Na aula obrigatória de História e Mito, os alunos leem textos considerados ícones da cultura gay, como “O Banquete”, de Platão, os poemas de Safo e Walt Whitman, assim como “O Poder do Mito”, de Joseph Campbell, e antologias sobre a homossexualidade através do tempo, no Japão, entre os samurais, entre os nativo-americanos, na África.

A atribuição desses trabalhos não é nada menos que um grito de batalha em Antioquia. A meta: instilar nas mentes dos alunos que “talvez haja um propósito superior em ser gay para uma humanidade que perdeu seu rumo”, disse Sadownick. “Essa é a minha visão controversa.”

O outro aspecto não menos central que os terapeutas afirmativos LGBT precisam aprender a fazer, ele disse, é se tornarem plenamente conscientes da “homofobia internalizada”, abrigada dentro deles mesmos, dentro de seus pacientes e dentro da sociedade em geral. Aqui, os instrutores são vigilantes em pressionar seus alunos a permanecerem sempre procurando.

“Vergonha tóxica” é uma frase invocada com frequência nas aulas em Antioquia, um bicho-papão para os alunos caçarem e destruírem. Seus resíduos estão em toda parte, se desdobrando o tempo todo.

O trabalho de Sadownick como ativista de direitos gays precede a fundação do programa de Antioquia. No mês passado, após o massacre no interior da boate Pulse em Orlando, Flórida, ele notou que apesar dos imensos avanços que ocorreram no campo dos direitos civis, “isso não fez com que décadas, séculos, de ocultação e vergonha não se manifestem psicologicamente”, ele disse. “De certo modo, estamos apenas no início do movimento de libertação. Todos os crimes de ódio contra os gays vêm da homofobia.”

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Uma colagem sobre a identidade gay no escritório de Joy Turek na Universidade de Antioquia, em Culver City, Califórnia. Turek é diretora do departamento de psicologia da entidade
Imagem: Kendrick Brinson/The New York Times


O programa de Antioquia é um empreendimento plenamente mobilizado, um cujo zelo político pode surpreender algumas das pessoas que trabalham com psicoterapia. Como colocou Sadownick, este é o modelo de “terapeuta como ativista”. “Esta é uma missão radical, uma missão revolucionária”.

Ian Jensen, um estudante de Antioquia concluindo as aulas obrigatórias de afirmação LGBT, disse: “O que acontece com frequência com um cliente gay ou trans é que procuram um terapeuta, mas o terapeuta não sabe nada sobre as questões gays”.

Jensen iniciou carreira como ator, mas decidiu mudar de direção após trabalhar com um terapeuta afirmativo LGBT.

“Ter um terapeuta afirmativo gay realmente mudou minha vida de muitas formas”, ele disse. “Sempre pensei, ‘Sou como meus amigos héteros, apenas tenho atração por homens’. Mas o que descobri é que há um nível mais profundo em experimentar o que significa ser uma pessoa gay do que apenas minha identidade sexual. Ao descobrir isso, e perceber que há muito mais a ser descoberto, eu pensei, eu realmente quero fazer isso por outras pessoas. Quero ser um agente de mudanças.”

Mas para outros na profissão, psicoterapeutas que não se especializam em um único tipo de pessoa, as próprias alegações nas quais o programa de Antioquia se baseia são carregadas.

“O problema com o essencialismo é que ele cria uma categoria muito grande de diferença entre pessoas LGBT e todas as demais”, disse Michael Garfinkle, um psicanalista em Nova York. “Trata-se de um fenômeno exclusivos dos LGBT? Ele vale para judeus? Vale para muçulmanos? Vale para os britânicos em comparação com a população do Alasca?”

“É de forma estranha uma posição incrivelmente cínica”, ele disse, “já que priva os terapeutas e pacientes da possibilidade de que nós como pessoas possamos fazer melhor, sem uma intervenção de mão tão pesada”.

Jamieson Webster, uma psicanalista de Nova York que, como Garfinkle, não se considera uma especialista, tem uma preocupação diferente. “Freud era incrivelmente preocupado com qualquer ideia de tentar buscar um resultado político com seus pacientes”, disse Webster. “E acho que se trata de uma cautela que ainda é realmente válida. Se você tem uma meta específica em mente com um paciente, então você perderá qualquer outra que esteja ali para ser descoberta.”

A especialização em Antioquia é, de certo modo, uma reação à longa história problemática de como a profissão de saúde mental abordou o tratamento de pacientes gays e lésbicas nos Estados Unidos e em outros lugares. O problema não era inerente à psicanálise em si. Freud famosamente argumentou que a sexualidade humana é fluida, existindo em um contínuo.

Foi apenas em 1973 que a Associação Americana de Psiquiatria removeu a homossexualidade de seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais que muda constantemente. A remoção desse diagnóstico foi um marco e foi seguido por uma enxurrada de teorias sobre como velhas ideias podem ser aplicadas de formas agora esclarecedoras à psicologia de ser gay.

Mas apesar do florescimento dessas novas ideias ao longo dos anos 70 e 80, seria preciso outro quarto de século para que a Associação Americana de Psicologia emitisse diretrizes para o tratamento ético de clientes lésbicas, gays e bissexuais, descartando tentativas terapêuticas de “curar” pacientes de serem gays. Essas técnicas, chamadas de terapia de conversão ou reparativa, ainda são praticadas por todo o país.

Diretrizes equivalentes para o tratamento ético de pacientes transgênero apareceram mais de uma década depois, mas muitos sentem que muito pouco foi feito para esclarecer esse assunto. O próprio fato de as letras L, G, B e T serem rotineiramente reunidas é visto por muitos como problemático e impreciso.

Cadyn Cathers, um instrutor em Antioquia (e ele próprio um estudante de pós-graduação da especialização) que está em processo de se tornar um psicólogo plenamente licenciado, cuida quase exclusivamente de pacientes transgênero em seu trabalho.

Para Cathers, uma das questões mais óbvias específicas ao se trabalhar com esses pacientes é o componente médico: com frequência, o que traz os pacientes transgênero à psicoterapia é discutir a cirurgia de mudança de gênero, para a qual muitos planos de saúde exigem uma carta de recomendação de um profissional de saúde mental.

Mas apesar de Cathers, Sadownick e outros acreditarem que é urgente para os pacientes LGBT serem tratados por terapeutas que foram treinados especificamente para ajudá-los, ou arriscarem o ferimento psíquico de não serem realmente vistos, eles também acreditam que os benefícios potenciais dessa terapia de modo nenhum se restringem a apenas esses pacientes.

A sensibilidade transmitida pela terapia afirmativa LGBT é de imenso valor também para clientes heterossexuais, eles dizem, por estar construída em torno da necessidade urgente de despertar para as suposições sociais que moldam todas as nossas vidas, independente de querermos que elas o façam.

“Uma mulher heterossexual está saturada em todas essas normas sobre como deveria ser com um homem, como deve passar seu tempo, como deve se casar”, disse Sadownick. “Há muito pouco espaço para manobra. E é aí onde a terapia afirmativa LGBT pode ser de ajuda.”

Matthew Silverstein, um psicoterapeuta em West Hollywood, Califórnia, que também esteve envolvido na criação do programa de Antioquia, descreveu a partir de sua própria prática o quão libertador pode ser a sensibilidade da afirmação LGBT, tanto para pacientes héteros quanto gays. Na questão da fidelidade, por exemplo: “Não é que não acreditemos em comunicação e confiança”, disse Silverstein, “mas tenho muitos modelos diferentes do que significa estar em um relacionamento, e posso agradecer à comunidade gay por abrir meus olhos para isso”.