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Será que o Japão mudará a Constituição para permitir a aposentadoria do imperador?

Shizuo Kambayashi/ AP
Imagem: Shizuo Kambayashi/ AP

Jonathan Soble

Em Tóquio (Japão)

09/08/2016 06h00

Era uma espécie de segredo aberto no Japão o fato de o imperador Akihito desejar um privilégio que a maioria das pessoas tem como certo: aos 82 anos, ele quer se aposentar. A pergunta é se os japoneses e seus líderes eleitos permitirão.

Em um discurso extraordinário televisionado na segunda-feira, o popular imperador falou publicamente sobre a questão pela primeira vez. Apesar de suas palavras terem sido caracteristicamente vagas (ele discutiu sua idade, sua agenda diária rigorosa e o que chamou de limitações físicas cada vez maiores), a mensagem foi clara.

"Quando considero que minha forma física está gradualmente declinando, temo que possa se tornar difícil para mim exercer meus deveres como símbolo do Estado com todo meu ser, como tenho feito até agora", disse o imperador em um discurso pré-gravado que durou cerca de 10 minutos e foi transmitido por múltiplas emissoras de televisão japonesas.

Se Akihito abdicar, a ação poderia redefinir a família real do Japão, a monarquia hereditária mais antiga do mundo. Apesar de o imperador agora só ter poder simbólico, uma abdicação também poderia ressuscitar uma questão contenciosa no Japão: o debate sobre permitir que uma mulher ocupe o trono.

Noticiado primeiro em grandes manchetes pela imprensa japonesa em julho, Akihito, que já passou por tratamento para câncer e problemas cardíacos, deseja passar o título ao seu filho, o príncipe herdeiro Naruhito, 56 anos. Naruhito tem o mesmo comportamento discreto de seu pai e, segundo todas as indicações, deseja manter a monarquia apolítica.

Mas a lei japonesa, que diz que o imperador deve servir até a morte, não prevê uma abdicação. O Parlamento teria que mudar a lei para que Akihito abdicasse ao Trono de Crisântemo, que é mantido por sua família há quase 2.700 anos, segundo a genealogia oficial.

Os imperadores japoneses definem as eras no país. Seu calendário singular se baseia em seus reinados: 2016 é expressado como 28º ano de Akihito no trono, e quando seu sucessor assumir, a data reiniciará como Ano Um.

O pai de Akihito, Hirohito, morreu em 1989, no 64º ano de seu reinado, quando tanto a Guerra Fria quanto o boom econômico do Japão chegavam ao fim, intensificando o senso de mudança histórica.

Akihito tem pedido ao Parlamento para mudar as regras, apesar de poder apenas fazê-lo de forma indireta. Seu circunlóquio visa evitar parecer estar interferindo na política, o que é proibido aos imperadores japoneses desde a derrota do país na Segunda Guerra, travada em nome de Hirohito.

Após a guerra, Hirohito chocou seus súditos ao declarar que não era um Deus, derrubando décadas de propaganda do governo e séculos de uma tradição mantida livremente. Uma nova Constituição, imposta pelos vitoriosos Estados Unidos, o destituiu do poder político e relegou a monarquia a um papel puramente cerimonial.

Se o Parlamento atender o desejo de Akihito de abdicar, seria a maior transformação da monarquia japonesa desde a guerra.


Imperador japonês diz que idade torna "difícil" desempenhar suas funções

"Historicamente, era extremamente comum os imperadores abdicarem", disse Takeshi Hara, uma autoridade em família imperial da Universidade Aberta do Japão.

Mais da metade dos monarcas do Japão deixou o trono, com frequência por uma aposentadoria tranquila em mosteiros budistas. Apenas no século 19, quando os líderes do Japão criaram o culto ao imperador é que a abdicação deixou de ser possível.

O primeiro-ministro Shinzo Abe, em uma breve resposta após o discurso, sugeriu que seu governo está aberto a mudar a Lei da Casa Imperial, apesar de não ter chegado a se comprometer em fazê-lo. Os comentaristas disseram que sua resposta vaga também visava contornar a proibição pela Constituição do envolvimento real na política.

"Considerando a idade de Sua Majestade, o fardo de seus deveres oficiais e suas ansiedades, devemos pensar cuidadosamente no que pode ser feito", disse Abe.

Akihito mantém uma agenda com frequência exaustiva, apesar do tratamento para câncer de próstata em 2003 e uma cirurgia cardíaca em 2012. Ele e sua mulher, a imperatriz Michiko, a primeira plebeia a ingressar por casamento na família imperial, se tornaram consoladores das vítimas de desastres naturais, como o terremoto e tsunami que devastaram partes do norte do Japão em 2011.

Em fevereiro, eles visitaram as Filipinas, uma de numerosas viagens ao exterior visando reparar as depredações causadas pelo Japão durante a guerra. Akihito foi o primeiro monarca japonês a visitar a China, outra adversária da época da guerra, em 1992.

Nos últimos anos, algumas pessoas passaram a ver Akihito como um guardião discreto, porém poderoso, da identidade pacifista pós-guerra do Japão, mesmo enquanto o governo conservador de Abe buscavam relaxar restrições legais de décadas às Forças Armadas.

Em seu discurso, Akihito referiu-se várias vezes à Constituição do pós-guerra e à natureza simbólica da monarquia moderna. Ele disse desejar assegurar o futuro dessa monarquia, "em meio a uma sociedade que está envelhecendo rapidamente" e "em uma nação e em um mundo que estão constantemente mudando".

Apesar de não ter usado a palavra abdicação, ele apresentou argumentos específicos para permiti-la. Sob a lei existente, o príncipe herdeiro poderia servir como regente caso seu pai ficasse enfermo demais, servindo como imperador para todos as finalidades, exceto em nome. Mas Akihito indicou que não deseja ser um monarca que "continua sendo imperador até o final de sua vida, apesar de não ser mais capaz de cumprir seus deveres".

Ele citou a última transição imperial há quase três décadas. Seu pai sofreu de câncer de intestino nos últimos anos de sua vida, e seu declínio lento e doloroso foi foco de intensa atenção por parte do público e da mídia.

Akihito disse que deseja evitar uma situação onde a "sociedade pare" até sua morte, e os elaborados ritos fúnebres exigidos desviem a atenção da entronização de seu herdeiro.

Pesquisas de opinião realizadas pela mídia japonesa sugerem que o público apoia o desejo de Akihito de abdicar. Até 85% dos entrevistados, dependendo da pesquisa, dizem ser a favor de uma emenda à lei para permitir a aposentadoria.

"Nós falamos do imperador de forma respeitosa, mas talvez o usemos como um escravo", disse Daisuke Kodaka, 34 anos, uma funcionária de uma empresa de cosméticos em Tóquio. "Ele é nosso símbolo, mas como pessoa não conta com direitos humanos. Deveríamos reconhecer seus direitos."

Apesar da pressão sobre Abe para lhe negar, um processo de emenda constitucional poderia ser desajeitado para o governo Abe.

"Isso gera outros problemas", disse Kenneth Ruoff, diretor do Centro para Estudos Japoneses da Universidade Estadual de Portland e autor de "The People's Emperor" (O imperador do povo, em tradução livre, não lançado no Brasil), uma história da monarquia japonesa pós-guerra.

Muitos veem a Lei da Casa Imperial como ultrapassada de outras formas, particularmente em relação a gênero. A lei diz que apenas homens podem herdar o trono, um artigo que é cada vez mais contestado. Há uma década, durante um debate sobre se a lei deveria ser mudada para abrir o caminho para monarcas do sexo feminino, os conservadores do Partido Democrático Liberal de direita de Abe se mostraram firmemente contrários.

Hoje, o governo de Abe abraçou a ideia do empoderamento feminino em outras áreas, notadamente no local de trabalho, mas poucos acham que esteja pronto para estender o conceito à monarquia. Naruhito tem uma filha e seu irmão tem duas filhas e um filho, o príncipe Hisahito, o único homem da geração real mais jovem. O nascimento de Hisahito, em 2006, colocou um fim no debate sobre monarcas do sexo feminino, ao menos por ora. Mas com tão poucos homens na família, especialistas dizem que a sucessão está longe de garantida no futuro.

Naruhito "representa a continuidade" com Akihito em termos de personalidade e prioridades, disse Ruoff. Assim como seu pai, ele assumiu causas sociais, notadamente o acesso a água limpa em países pobres.

Uma questão, independente do momento da sucessão, será o papel público da mulher de Naruhito, Masako, uma ex-diplomata que estudou em Harvard e Oxford que sofre de depressão crônica, o que a manteve afastada por grande parte dos últimos 15 anos.

Em 2004, Naruhito pareceu culpar as restrições da vida imperial pela doença de Masako, dizendo que antagonistas aos quais não atribuiu nomes buscaram "negar a carreira e personalidade de Masako". Como a experiência poderia inspirá-lo, na condição de imperador, a tentar mudar a monarquia altamente insular não está claro.

Ruoff disse que a maior realização de Akihito foi voltar a atenção para causas de bem-estar social. Quando o Japão foi sede da Olimpíada de 1964, Akihito se tornou apoiador da então obscura Paraolimpíada. Na época, pessoas com deficiências com frequência eram evitadas e estigmatizadas no Japão.

"Akihito e Michiko passaram um tempo tremendo oferecendo seu prestígio em prol dos membros menos privilegiados da sociedade japonesa", disse Ruoff. "Eu não chegaria tão longe a ponto de dizer que são a consciência da nação, mas eles chamam a atenção para essas questões."