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Por trás do fulgor olímpico, uma terrível guerra de drogas assola o Rio

Crianças jogam futebol no Complexo do Alemão, no Rio - Lalo de Almeida/The New York Times
Crianças jogam futebol no Complexo do Alemão, no Rio Imagem: Lalo de Almeida/The New York Times

Simon Romero

No Rio de Janeiro

12/08/2016 14h03

Os torcedores faziam fila para assistir à dupla americana de vôlei de praia enfrentar o México nas areias atraentes de Copacabana.

Mas do outro lado da cidade, longe da excitação olímpica, o espoucar das batalhas armadas ecoava pelas enormes favelas que sobem pelos morros do Rio de Janeiro.

Assim que ouviu as balas zunindo no início da terça-feira (9), Richard Conceição Dias, 9, soube o que devia fazer.

"Eu me deitei no chão, abraçado com minha mãe", disse o menino, que vive numa casa de um cômodo com sua mãe e três irmãs no extenso grupo de favelas Complexo do Alemão. "Ela me disse: 'Fique longe da janela, feche os olhos, sonhe alguma coisa bonita'."

Grande parte do Rio comemora a animação dos Jogos Olímpicos. Os festeiros abastados consomem caipirinhas ao lado de supermodelos e astronautas em noitadas elegantes patrocinadas por nomes como os relógios suíços Omega. Milhares de soldados patrulham os bairros ricos do Rio, à beira-mar, para reduzir o temor de assaltos e outros crimes.

Mas à sombra da Olimpíada ocorre uma guerra em fogo baixo entre bandos de traficantes e as forças de segurança nacionais. Enquanto crescem as baixas na favela onde Richard vive com sua família, os Jogos parecem --para eles e para os milhares de pessoas nas comunidades mais pobres do Rio-- ocorrer em uma cidade distante.

Em uma retomada das lutas na última semana, mais de 200 policiais invadiram o labirinto de becos da favela do Alemão. Chamando a operação de Germânia, a região europeia de tribos guerreiras que um dia foi amplamente dominada pelo Império Romano, a polícia matou dois homens, enquanto um oficial graduado foi ferido.

Algumas das 70 mil pessoas que vivem no Alemão, fora de vista das equipes de televisão que se concentram nas maravilhas do Rio, alimentavam a esperança de calma com o desenrolar dos Jogos. Mas então veio o tiroteio na terça-feira, seguido por mais batalhas na manhã de quarta e uma enxurrada de desespero e raiva.

4.ago.2016 - Richard Conceição Dias, 9, e sua mãe, Juciléia Dias, 35, na casa de um cômodo que divide com as três irmãs no Complexo do Alemão, no Rio - Lalo de Almeida/The New York Times - Lalo de Almeida/The New York Times
Richard Conceição Dias, 9, e sua mãe, Juciléia Dias, 35, na casa de um cômodo que divide com as três irmãs no Complexo do Alemão, no Rio
Imagem: Lalo de Almeida/The New York Times

"Nós vivemos pior que os bonitos cavalos usados nas competições do Jogos Olímpicos", disse Jucileia Silva, 35, a mãe de Richard, referindo-se à competição equestre que ocorreu na manhã de terça-feira, mais ou menos na hora em que ela e sua família se deitaram no chão para escapar aos tiros.

Especialistas em segurança que acompanham os tiroteios no Rio de Janeiro documentaram dezenas desses episódios em favelas como a do Alemão desde que começaram os Jogos na semana passada, levantando perguntas sobre a enorme operação de segurança. Em um episódio na quarta-feira, soldados da força de segurança nacional mobilizados no Rio para a Olimpíada receberam tiros na favela Vila do João. Pelo menos dois deles ficaram feridos, um deles na cabeça. 

Antes da Olimpíada, Mario Andrada, porta-voz do comitê organizador dos Jogos, havia afirmado que o Rio seria "a cidade mais segura do mundo" nesse período.

Na quarta-feira, depois da última violência, ele defendeu seu comentário. "Um atleta não se arrepende de dizer que vencerá antes de um jogo", disse Andrada a repórteres.

Em 2009, quando o Rio de Janeiro ganhou a aposta para sediar a Olimpíada, as autoridades viam a chamada "pacificação" do Alemão e outras favelas como um fator crucial em seu plano de ressuscitar as fortunas do Rio. Soldados em tanques rolaram pelo Alemão em 2010, acompanhados por policiais que começaram a construir uma rede de postos avançados.

Durante algum tempo pareceu funcionar.

Conforme a violência diminuiu, as autoridades construíram uma incrível rede de teleféricos conectando os morros densamente povoados do Alemão. Diretores escolheram locações nos morros para cenas de telenovelas. Um novo bar que servia cervejas artesanais atraiu curiosos para vislumbrar uma área que por muito tempo foi considerada proibida.

Mas em 2014 os bandos estavam de novo atacando agressivamente a polícia. Um destes é o Comando Vermelho, que teve origem nos anos 1970, quando militantes de esquerda presos se uniram a criminosos comuns. O bando formou laços duradouros com fornecedores de cocaína colombianos para exercer um poder considerável no Alemão e em outras áreas do Rio.

A luta diabólica pelo controle de muitas favelas --as áreas pobres que muitas vezes surgiram como assentamentos invasores na cidade-- ainda continua, segundo especialistas. O Comando Vermelho está em choque não só com a polícia, mas também com outros bandos e milícias paramilitares formadas principalmente por policiais na ativa e aposentados.

O resultado é um cozido distópico de conflito perpétuo.

"O Rio pressagia a nova onda de conflitos que veremos ao redor do mundo", disse Robert Muggah, diretor de pesquisa no Instituto Igarapé, um grupo de pesquisas no Brasil que se concentra em questões de segurança. Ele enfatizou a natureza prolongada das guerras das drogas na cidade, os altos índices de baixas em certas áreas e a constante mobilização de forças de segurança, que contém --mas às vezes reacende-- a violência.

"A bala entrou pelo meu ombro e saiu pelas costas", disse o policial Felipe Curi depois de ser ferido durante a luta na semana passada. "Deus estava cuidando de mim."

Para as famílias apanhadas no fogo cruzado, toda a conversa sobre o legado olímpico no Rio parece insultante.

4.ago.2016 - O teleférico que atende o Complexo do Alemão, no Rio - Lalo de Almeida/The New York Times - Lalo de Almeida/The New York Times
O teleférico que atende o Complexo do Alemão, no Rio
Imagem: Lalo de Almeida/The New York Times

As batalhas detiveram o icônico teleférico no Alemão mais uma vez esta semana, paralisando as pessoas que iam para o trabalho. No mês passado, as autoridades interromperam o serviço pelo menos nove vezes por causa de tiroteios. Em um episódio, uma mãe que leva os filhos à escola usou o celular para filmá-los pendurados com medo em um bonde suspenso.

Duas pessoas, um policial e um morador, foram feridas no tiroteio na manhã de quarta-feira no Alemão. Em outro caso que levanta preocupações sobre a violência durante os Jogos, testemunhas disseram que tiros quebraram as janelas de um ônibus que levava jornalistas na noite de terça-feira.

Uma repórter que estava no ônibus, Sherryl Michaelson, que é capitão aposentada da Força Aérea dos EUA, disse que ouviu claramente o som de uma arma sendo disparada. Mas as autoridades determinaram que o dano resultou de uma pedra atirada contra o ônibus.

As novas delegacias de polícia no Alemão, antes elogiadas como um sinal de que o Rio estava sendo consertado, hoje funcionam como um arquipélago de postos de polícia sitiados em um mar onde ressurgem os bandos do tráfego. Mesmo durante a Olimpíada, quando a paz deveria prevalecer no Rio, os moradores do Alemão estão encontrando maneiras de descrever a sensação de guerra que persiste a seu redor.

José Franklin da Silveira, autor de canções de cordel, poesia rimada que remonta aos cantadores do interior do Brasil, escreveu sete páginas de versos intitulados "A Olimpíada no Alemão".
O poema, que é vendido por cerca de R$ 5 nas favelas, descreve as reações perplexas de Josimar, um menino que confunde os fogos de artifício da cerimônia de abertura com os tiros que ainda se ouvem no Alemão.

Saltando de uma laje para outra, Josimar exibe uma proeza atlética que nunca será aproveitada fora da favela. Mas as habilidades do menino chamam a atenção de bandidos que querem recrutá-lo.

"Nas minhas histórias, escrevo sobre nosso maior medo", disse Silveira, 56. "O medo de sair de casa."