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Uma questão psiquiátrica: é justo analisar a personalidade de Trump de longe?

Donald Trump durante campanha em Fredericksburg, Virgínia, EUA - Carlo Allegri/ Reuters
Donald Trump durante campanha em Fredericksburg, Virgínia, EUA Imagem: Carlo Allegri/ Reuters

Benedict Carey

22/08/2016 09h22

Em meio a uma campanha presidencial profundamente conflituosa, mais de mil psiquiatras declararam que o candidato republicano não é apto para o governo, citando graves distúrbios de personalidade, incluindo paranoia, mania de grandeza e uma autoimagem divina. Um médico o chamou de "lunático perigoso".

O ano era 1964 e, depois de perder de lavada, o candidato, o senador Barry Goldwater, do Arizona, processou a editora da revista "Fact", que publicou a pesquisa, ganhando US$ 75 mil por danos.

Mas os médicos também atacaram a pesquisa devido à sua linguagem, sem suporte clínico, e o partidarismo óbvio. Em 1973, a Associação Psiquiátrica Americana adotou o que ficou conhecido como a Regra Goldwater, declarando antiético que qualquer psiquiatra diagnostique a condição de uma figura pública "a menos que ele/ela passe por um exame e dê autorização apropriada para uma declaração".

E eis que surge Donald Trump.

Os pronunciamentos incendiários e inconscientes de candidato republicano de 2016 trouxeram esse acordo a um ponto de ruptura, expondo as divisões da área. Será que a restrição é apropriada hoje?

Psiquiatras e psicólogos desrespeitaram publicamente a Regra Goldwater para apontar uma série de problemas de personalidade de Trump, incluindo a grandiosidade, a falta de empatia e o "narcisismo maligno". Os insultos clínicos são tantos que, neste mês, a associação reiterou que quebrar a Regra Goldwater "tem potencial estigmatizante, é irresponsável e definitivamente antiético".

Impor um rótulo psiquiátrico a um candidato ao qual se opõem pode ser um recurso aparentemente irresistível para alguns. Este ano, talvez mais do que em outros, eles estão convencidos de que estão salvando a nação de um destino terrível" Dr. Paul Appelbaum, professor de Psiquiatria, Medicina e Direito da Universidade de Columbia, que desaprova a prática

William Doherty, psicólogo da Universidade de Minnesota, acredita nisso. Em junho, Doherty publicou um manifesto online contra o "Trumpismo", assinado por mais de 2.200 especialistas em saúde mental.

"Para mim, essa é uma exceção. O que temos aqui é uma ameaça à democracia", disse Doherty.

Defensores da Regra Goldwater citam três justificativas para aderir a ela: a maioria dos diagnósticos feitos à distância está errada; rótulos podem causar danos reais à pessoa e à sua família; a prática mina a credibilidade da área e particularmente seu compromisso de confidencialidade. Sem mencionar, dizem outros, que há a possibilidade de expor um viés esquerdista do setor.

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Mas a análise de figuras públicas por comentaristas, colunistas e psicólogos populares tem uma história bipartidária: as preocupações sobre grandiosidade e narcisismo estão associadas à presidência de Lyndon B. Johnson; as suspeitas de paranoia, cada vez mais fortes, conturbaram o final da presidência de Richard Nixon. Acusações de manipulação, trapaça e um senso de direito seguem os Clintons há anos, gerando uma especulação sobre problemas de personalidade mais profundos.

O próprio Trump recentemente tentou virar a mesa, acusando Hillary Clinton de ser "instável" e "indomável".

Enquanto a grande maioria dos comentários dos terapeutas se concentra em Trump, muitos desses profissionais dizem que, se uma análise pública for feita, ela deve ser dirigida a ambos os candidatos.

Essas coisas estão em um nível diagnosticável? Não sei. Mas se formos diagnosticá-lo, devemos fazer o mesmo com ela" Don Sizemore, terapeuta de família em Lexington, Kentucky

No entanto, a história mostra que nenhuma dessas análises deve ser feita. Os psiquiatras apontam para o próprio Goldwater como exemplo do que pode sair errado: quando morreu, em 1998, Goldwater era considerado "um dos estadistas mais respeitados do seu partido", segundo o jornal "The Washington Post" no obituário.

Na esteira do escândalo Monica Lewinsky, muitas pessoas esperavam um diagnóstico que explicasse ou denunciasse o comportamento do presidente Bill Clinton, disse a Dra. Nada Stotland, psiquiatra do Rush Medical College, em Chicago. "Lembro-me de receber telefonemas da mídia perguntando se ele era um narcisista ou viciado em sexo. Bem, vício em sexo não era um transtorno reconhecido na época. E se fosse, então o comportamento não era culpa dele? Evitei responder a essas questões porque a ideia de que temos que sair por aí aleatoriamente, diagnosticando as pessoas, é errada", disse ela.

Mas aqueles que usam a linguagem clínica para descrever o comportamento de Trump afirmam que essa eleição presidencial é um pouquinho diferente, por um grande motivo: a proliferação de comentários e vídeos em mídias sociais, que proporcionam acesso direto e improvisado aos candidatos, algo que simplesmente não estava disponível em disputas anteriores. Alegam que a profundidade desse material cria uma figura pública completa o suficiente para uma análise.

Doherty disse que ele e os terapeutas que assinaram o manifesto não estavam diagnosticando traços pessoais de Trump, mas de sua figura pública. O manifesto caracteriza o "Trumpismo" como uma coisa que reinventa a história, sem se desculpar, humilhando críticos e incitando a violência. "É possível falar sobre seu comportamento público sem saber se ele de fato age assim com seus filhos, sua mulher, seus amigos", disse Doherty.

O Dr. Steven Buser, psiquiatra que, com o Dr. Leonard Cruz escreveu o livro, "A Clear and Present Danger: Narcissism in the Era of Donald Trump" (Perigo claro e imediato: narcisismo na era de Donald Trump), salientou:

Tomamos cuidado para não fazer um diagnóstico clínico aqui, dizendo que Donald Trump sofre de transtorno de personalidade narcisista"

Os escritores incluem psicólogos e psiquiatras, mas Buser disse: "Estamos voltados para a imagem que ele projeta na TV, em tuítes, em citações".

Appelbaum considera essa distinção conveniente. "Um terapeuta qualificado leva meses, às vezes até mais, atendendo uma pessoa regularmente e fazendo perguntas de sondagem para determinar a presença de um distúrbio", disse Appelbaum.

O estigma da vulnerabilidade mental é especialmente prejudicial na política. Na campanha presidencial de 1972, o senador Thomas F. Eagleton, do Missouri, retirou-se da chapa de seu companheiro George McGovern após 18 dias, a pedido de McGovern, quando surgiram revelações de que passara por aconselhamento psiquiátrico e terapia de eletrochoque. Em 1988, o candidato democrata, Michael S. Dukakis, divulgou seus registros médicos para acabar com rumores de que havia se submetido a tratamento psiquiátrico, o que não era verdade.

Durante o julgamento de seu processo, Goldwater ficou confuso com alguns comentários de psiquiatras sobre sua personalidade, incluindo um que o chamou de "personagem anal". "Não sei o que seria um personagem anal. Tentei procurar no dicionário, mas não achei nada", testemunhou ele, de acordo com reportagens.

Criticou especificamente o comentário de um psiquiatra que disse que ele era "uma falsa figura masculina". "Uma acusação dessas pesa várias toneladas e tem um efeito bastante deprimente", disse.

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Se existem exceções à Regra Goldwater, aparentemente os psiquiatras não concordam com elas. Parece não haver problemas com figuras históricas; "Lincoln's Melancholy" (A Melancolia de Lincoln), livro de Joshua Wolf Shenk que defende a ideia de que Lincoln sofria de depressão, foi bem recebido.

Líderes de nações hostis podem ou não ser candidatos a uma análise, dependendo do ponto de vista. Um psiquiatra que forneceu uma avaliação de personalidade de Saddam Hussein, a pedido da administração Bush, foi criticado por alguns membros da comunidade psiquiátrica, mas não formalmente censurado.

Políticos aposentados estão em uma posição dúbia. Terapeutas escreveram livros sobre George W. Bush e Bill Clinton. Nem todos seus colegas aprovaram.

Mas em uma época em que situações e comentários particulares estão cada vez mais disponíveis para o consumo público, alguns acreditam que a Regra Goldwater está precisando de uma atualização.

"Há outra perspectiva nisso tudo. Os especialistas em ética que escreveram a regra estavam totalmente focados no lado negativo dos comentários, mas há um lado positivo e adaptável a cada traço de personalidade", disse John D. Mayer, psicólogo da Universidade de New Hampshire que escreveu extensamente sobre a regra.

"Se você chamar alguém de mentiroso, seja Hilary ou Trump, é preciso que se diga que, para um bom político, há razões pelas quais você nem sempre pode dizer tudo o que sabe ou exatamente o que pensa", concluiu Mayer, referindo-se aos indicados deste ano.

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