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Opinião: Anne Frank hoje é uma menina síria

Anne Frank em foto sem data definida - AFP
Anne Frank em foto sem data definida Imagem: AFP

Nicholas Kristof

Em Amsterdã (Holanda)

29/08/2016 06h02

Em 30 de abril de 1941, um morador judeu de Amsterdã escreveu uma carta desesperada a um amigo americano, suplicando que o ajudasse a emigrar para os EUA. "Os EUA são o único país aonde poderíamos ir", escreveu ele. "É pelo bem das crianças, principalmente."

Uma voluntária encontrou essa súplica em 2005, quando examinava velhos arquivos de refugiados da Segunda Guerra Mundial na cidade de Nova York. Ele se parecia com inúmeros outros arquivos, até que ela viu os nomes das crianças.

"Meu Deus", disse ela. "Este é o arquivo de Anne Frank."

Juntamente com a carta, havia muitas outras de Otto Frank, que buscava freneticamente ajuda para escapar da perseguição nazista e conseguir um visto para os EUA, o Reino Unido ou Cuba --mas que não foi a lugar nenhum por causa da indiferença pelos refugiados judeus.

Todos sabemos que as crianças Frank foram assassinadas pelos nazistas, mas o que é menos conhecido é o modo como o destino de Anne foi selado por um medo insensato dos refugiados, entre as pessoas mais desesperadas do mundo.

Parece conhecido?

O presidente Barack Obama prometeu admitir 10.000 refugiados sírios-- um número pequeno, apenas um quinto de 1% do total--, e Hillary Clinton sugeriu aceitar mais. Donald Trump os atacou repetidas vezes pela disposição a receber os sírios e pediu a proibição dos muçulmanos. Temores de terrorismo deixaram os refugiados muçulmanos malvistos no Ocidente, e quase ninguém os quer, assim como não queriam uma adolescente alemã-holandesa chamada Anne.

"Ninguém leva sua família a se esconder no centro de uma cidade ocupada a menos que não tenha outra opção", comenta Mattie J. Bekink, uma consultora na Casa de Anne Frank em Amsterdã. "Ninguém leva seus filhos para um barco frágil para cruzar o Mediterrâneo se não estiver desesperado."

Como filho de um refugiado da Segunda Guerra Mundial, tenho pesquisado a histeria contra os refugiados nos anos 1930 e 40. Como sugere Bekink, os paralelos com os dias atuais são marcantes.

Para a família Frank, uma nova vida na América parecia possível. Anne tinha estudado taquigrafia em inglês e seu pai falava a língua; tinha morado em Manhattan, na Rua 71 Oeste, e era um velho amigo de Nathan Straus Jr., um funcionário do governo Franklin Roosevelt.

O obstáculo era o temor dos americanos em relação aos refugiados, que superava a simpatia. Depois do ataque aos judeus na Noite dos Cristais (Kristallnacht), em 1938, uma pesquisa revelou que 94% dos americanos reprovavam o tratamento dado pelos nazistas aos judeus, mas 72% ainda eram contra receber um grande número de judeus.

Os motivos da oposição na época eram os mesmos de hoje para rejeitar os sírios ou os hondurenhos: não podemos pagar, devemos cuidar primeiro dos americanos, não podemos aceitar todo mundo, eles vão tirar os empregos dos americanos, eles são perigosos e diferentes.

"Se os EUA continuarem sendo o asilo do mundo, em breve arruinarão sua atual vida econômica", advertiu a Câmara de Comércio de Nova York em 1934.

Alguns leitores contestam: "Mas os judeus não eram uma ameaça como os refugiados sírios!" Nos anos 1930 e 40, porém, havia uma guerra mundial, e os judeus eram amplamente considerados potenciais comunistas ou mesmo nazistas. Havia temores generalizados de que a Alemanha infiltrasse espiões e sabotadores nos EUA sob o disfarce de refugiados judeus.

"Quando a segurança do país é posta em risco, parece plenamente justificável resolver qualquer dúvida possível em favor do país, e não em favor dos estrangeiros", instruiu o Departamento de Estado em 1941. Em 1938, o jornal "The New York Times" citou a neta do presidente Ulysses S. Grant, que advertiu sobre "os chamados refugiados judeus" e sugerindo que eles eram comunistas "vindos para este país para se unir às fileiras dos que odeiam nossas instituições e querem derrubá-las".

Organizações noticiosas não fizeram o suficiente para humanizar os refugiados; ao contrário, ajudaram tragicamente a espalhar a xenofobia. O "Times" publicou um artigo de primeira página sobre o risco de os judeus se tornarem espiões nazistas, e ""The Washington Post" publicou um editorial agradecendo ao Departamento de Estado por manter distantes os nazistas disfarçados de refugiados.

Nesse ambiente político, autoridades e políticos perderam toda a humanidade.

Que a Europa cuide de sua gente", afirmou o senador Robert Reynolds, um democrata da Carolina do Norte que também denunciou os judeus. O deputado democrata Stephen Pace, da Geórgia, foi um passo além, apresentando legislação que pedia a deportação de "todo estrangeiro dos EUA".

Um membro do Departamento de Estado, Breckinridge Long, endureceu sistematicamente as regras sobre refugiados judeus. Nesse clima, Otto Frank não conseguiu vistos para seus familiares, que foram vítimas em parte da paranoia, demagogia e indiferença dos americanos.

Como afirmei periodicamente, a relutância de Obama em fazer mais para tentar acabar com a chacina na Síria projeta uma sombra sobre seu legado, e simplesmente não há desculpa para o fracasso coletivo do mundo em garantir que as crianças sírias refugiadas em países vizinhos pelo menos possam estudar.

Hoje, para nossa vergonha, Anne Frank é uma menina síria.

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