Topo

A conversão de um ex-recrutador da Al Qaeda para informante do FBI

Como bots pornôs estão sabotando o 'Estado Islâmico'

BBC Brasil

Rukmini Callimachi

Em Washington (EUA)

01/09/2016 08h02

Nos quatro anos em que ele dirigiu o site Revolução Muçulmana, de seu apartamento sem elevador no Brooklyn, Nova York, Jesse Morton tornou-se um dos mais prolíficos recrutadores da Al Qaeda, atraindo numerosos americanos para a ideologia violenta do grupo.

Os homens e as mulheres que ele inspirou com suas postagens e tutoriais na rede mundial foram acusados de tramas como pilotar um avião por controle remoto cheio de explosivos e derrubá-lo sobre o Pentágono e tentar matar um desenhista sueco que satirizou o profeta Maomé. Um de seus colaboradores foi morto em um ataque de drone no Iêmen, onde havia se unido à Al Qaeda na península Arábica. Vários deles combatem hoje pelo grupo Estado Islâmico.

"Nós procurávamos os leões", disse ele, explicando que muitas vezes recrutava diante das mesquitas, "e deixávamos para eles os cordeiros."

Morton, 37, hoje está na vanguarda de uma experiência para conter o avanço de grupos como o EI e a Al Qaeda. Após um período como informante do FBI e de ser libertado da prisão no ano passado, Morton foi contratado como instrutor no programa sobre extremismo da Universidade George Washington, onde pesquisará a própria ideologia que um dia ele pregou.

Países como o Reino Unido colocam antigos extremistas para trabalhar em grupos de pensadores para fornecer vozes autênticas contra a ideologia radical, mas Morton é o primeiro jihadista a ocupar esse papel público nos EUA.

Isso não evitou certa ansiedade de seu novo patrão, disse Lorenzo Vidino, diretor do programa de extremismo no Centro para Segurança Cibernética e Nacional da George Washington. Vidino conheceu Morton após a libertação deste, em fevereiro de 2015, iniciando um processo de sabatina de um ano que incluiu entrevistas com sete autoridades policiais diretamente envolvidas em seu caso.

"Não houve uma única voz dissidente", disse Vidino.

Em uma entrevista a "The New York Times" neste mês, depois de ser perguntado sobre por que alguém deve acreditar que ele realmente mudou, Morton insistiu que está tentando se reparar.

"Espero que eu possa dissuadir o mesmo número de pessoas que viajaram ou cometeram atos criminosos por causa de minhas palavras", disse ele. "Talvez eu nunca possa reparar os danos que causei, mas acho que pelo menos posso tentar."

Estado Islâmico recruta estrangeiros qualificados no mundo todo

Band News

Procurando uma causa

Perguntado sobre quando ele havia se voltado para o extremismo, Morton estendeu a mão e a colocou a cerca de 30 cm do chão. "Quando eu era mais ou menos deste tamanho", disse.

Nascido na Pensilvânia, EUA, Morton disse que suas primeiras lembranças são de sofrer agressões de sua mãe, que, segundo ele, espancou, mordeu e arranhou seus filhos durante anos.

Quando ele não aguentava mais, contou para um orientador. A escola chamou sua mãe, que segundo Morton negou as agressões, então o levou para casa e o espancou.

"Não era apenas em minha família disfuncional que eu não podia confiar, era na sociedade como um todo", disse ele. "É daí que vem toda a personalidade 'nós-contra-eles', com a percepção de que a sociedade --a sociedade americana-- não está me protegendo."

Aos 16, ele fugiu de casa e seguiu uma turnê da banda Grateful Dead, subsistindo com a venda de drogas à porta dos shows.

Seu primeiro contato com o islamismo foi em 1999, quando ele e outro traficante entraram em um prédio abandonado para escapar da polícia, segundo narrou. Conforme os policiais se aproximavam, seu parceiro o instruiu a repetir uma série de palavras árabes. Só mais tarde Morton percebeu que tinha recitado a declaração de fé muçulmana. Quando a polícia recuou, o jovem de 21 anos considerou isso um sinal e se converteu.

Não muito tempo depois ele foi preso, acusado de vender narcóticos, e recolhido a uma prisão em Richmond, na Virgínia. Um marroquino idoso que dividia a cela com Morton e mais 40 homens tornou-se seu amigo e seu primeiro imame.

Ele deu a Morton um nome muçulmano: Younus, em homenagem a um profeta que foi engolido por uma baleia e de dentro do estômago do animal chamava os outros para o islamismo. "Você está no ventre de uma fera agora", disse-lhe o homem.

Era nós contra eles, e isso atraiu Morton, especialmente quando seu professor começou a compartilhar as profecias da destruição que cairia sobre os EUA. Ele citou escrituras que previam que um Estado islâmico seria estabelecido quando a bandeira preta se erguesse sobre o Afeganistão.

"Isso é perfeito para mim, porque agora o mundo é preto e branco", disse Morton. "Estou imediatamente motivado a contribuir para esta causa. Eu saio e transformo completamente minha vida."

Em 2006 ele se formou como primeiro da classe no Metropolitan College de Nova York. No ano seguinte, matriculou-se na Universidade Colúmbia, onde recebeu o mestrado em estudos internacionais.

Fora do campus, Morton gravitou para grupos que usavam como símbolo a bandeira preta, primeiro na Sociedade de Pensadores Islâmicos, uma filial do grupo britânico dirigido por Anjem Choudary, que foi condenado este mês e acusado de usar palestras online para incitar ao apoio ao Estado Islâmico. Logo Morton foi apresentado ao extremista jamaicano preso Abdullah al Faisal, mentor de um dos homens-bombas de Londres em 2005, e passou a se corresponder com ele.

Juntos, com a ajuda de outro convertido em Nova York, os três decidiram iniciar a Revolução Muçulmana, que ganhou vida na saída de Natal de Morton em 2007.

O site promovia controvérsia e foi usado para atrair os que flertavam com o extremismo. Às sextas-feiras, Morton se posicionava diante de mesquitas em Nova York e fazia discursos criticando o "islã mole" pregado lá dentro. Vídeos dos confrontos seriam mostrados no site ao lado de gravações em áudio de Osama Bin Laden. O site se ligou a um canal no YouTube.

"Revolução Muçulmana foi uma luz que atraiu aspirantes a jihadistas com sua mensagem", disse Mitch Silber, ex-diretor de análise de inteligência para o Departamento de Polícia de Nova York, cuja equipe investiu forte em rastrear as atividades online de Morton.

Estado Islâmico existe há mais de 10 anos e foi rejeitado pela Al Qaeda; saiba mais

AFP

Acolhendo os recrutas

O site Revolução Muçulmana capturou rapidamente um grupo de recrutas. "Quando você vê que eles estão se conectando de forma consistente, não precisa realmente conduzi-los o tempo todo", disse Morton.

"O que você precisa fazer é enquadrar seus problemas pessoais", acrescentou ele, "fazê-los pensar que eles podem contribuir para uma causa maior. E você faz isso por meio da ideologia, porque, acredite ou não, o islã pode ser emoldurado de uma maneira incrivelmente revolucionária."

Morton disse que era crítico instilar um tipo de islamismo inflexível e literal. O primeiro conceito é que Deus é o único que dispensa a lei. "Você usa esse princípio para dizer que todos os governantes muçulmanos, como não implementam a lei xaria em sua totalidade, não são muçulmanos, por isso podemos nos rebelar contra eles."

Depois, ele ensinava aos recrutas que sua fidelidade devia ser somente com amigos muçulmanos, buscando afastá-los dos amigos e da família.

Quando esses princípios estavam incrustados, disse Morton, "você podia basicamente fazer o que quisesse com eles".

O tempo todo, Morton calibrava até onde podia ir, e seu sócio consultava um advogado para estudar os limites externos da livre expressão.

"E nós íamos até o limite", disse ele.

A linha foi finalmente cruzada em 15 de abril de 2010, quando Zachary Adam Chesser, um instável associado de Morton, de 20 anos, publicou os endereços residenciais dos criadores do desenho animado "South Park", depois de um episódio que zombou do profeta Maomé.

Quando Chesser foi preso, ao tentar embarcar em um voo internacional para se unir ao grupo militante Al Shabab na Somália, Morton fugiu para o Marrocos. Um ano depois ele também foi preso e inicialmente detido em um presídio marroquino.

Os americanos foram buscá-lo em 27 de outubro de 2011. Ele relatou que foi levado a um aeroporto deserto, onde se agarrou ao Corão enquanto uma equipe de agentes americanos o algemou, uniu seus tornozelos e o vendou. Antes de colocar fones de ouvido nele, retiraram seu Corão.

Morton ficou surpreso quando um dos agentes removeu a venda de seus olhos durante o voo e lhe devolveu o livro sagrado muçulmano. Foi o primeiro de vários gestos que, segundo ele, o tocaram, um passo na direção do que descreveu como um longo e gradual caminho para fora do radicalismo.

De volta aos EUA, ele aguardou sua sentença em regime solitário, onde uma guarda quebrou as regras e permitiu que ele saísse da cela e passasse a duração de seu turno na biblioteca.

Morton disse que o primeiro livro que pegou foi o volume 35 dos Grandes Livros do Mundo Ocidental, da Enciclopédia Britânica. Nas semanas seguintes ele se perdeu nos textos do Iluminismo, começando pela "Carta sobre a Tolerância", de John Locke (1689). O filósofo afirmava que a fé não pode ser comprada por meio da violência, levando Morton a refletir sobre como seus captores lhe haviam devolvido seu Corão.

À noite, disse ele, sonhava que estava sentado em frente a Osama Bin Laden.

"Eu lhe fazia perguntas: 'Estou me tornando um descrente? Irei para o inferno?'", contou Morton. "Ele não fala. Não tem nada a dizer."

Mudando de lado

Foi na biblioteca da prisão que um guarda puxou Morton de lado e o levou a uma sala onde dois agentes do FBI aguardavam.

Eles tinham entrado em sua antiga conta de e-mail e localizaram seus ex-recrutas, vários dos quais haviam se unido ao Estado Islâmico. Agora eles queriam que Morton se tornasse um informante. Debatendo-se com a ideia, e cada vez mais desiludido com o fundamentalismo, ele afinal concordou.

Em um dia quente de verão, dois anos atrás, pouco depois que o EI declarou seu califado, Morton recebeu uma carta da Síria. Era de um de seus ex-alunos, que descrevia de forma entusiástica que havia passado a manhã nadando no rio Tigre, pouco depois que o EI derrotou os militares iraquianos em Mosul e pendurou em uma cerca as cabeças de seus inimigos.

Em vez de compartilhar o entusiasmo do recruta, Morton vomitou em sua cela.

"Esta é uma pessoa que foi meu aluno, literalmente me chamava com todas as dúvidas que tinha, e eu disse: 'Vá para a Síria'", lembrou ele. "É como Frankenstein. Eu não o criei, mas certamente contribuí para isso."

Morton continuou trabalhando sob disfarce até que foi revelado como informante pelo jornal "The Washington Post". Então o juiz havia reduzido sua pena de 11 anos para 3 anos e 9 meses. Ele saiu em 27 de fevereiro de 2015.

Hoje ele vive na Virgínia, e os termos de sua libertação impedem que viaje para fora da área do Distrito de Colúmbia. Na segunda-feira (29), quando as aulas recomeçaram na Universidade George Washington, Morton deveria estar lá na função de pesquisador.

Mas à noite ele é dominado pelo medo, disse.

Os extremistas a quem ele deu as costas podem tentar prejudicá-lo --o EI considera a espionagem uma forma de apostasia, punível com a morte. Principalmente, porém, ele se preocupa com as ideias que disseminou pelo mundo.

"Tenho medo --não porque eu pense que voltarei, mas do que está vindo", explicou. "Eu estava tão dedicado a destruir o mundo em que eu vivia, e agora, por motivos racionais, percebo que a ordem internacional precisa ser protegida."