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"A forma como as pessoas nos olham mudou": muçulmanas falam sobre a vida na Europa

Nawal Afkir, 25, cujo hobby é fotografar, em Bruxelas, na Bélgica. "Sou uma assistente social e faço o melhor que posso para lutar por uma sociedade livre e justa. Para mim, usar o véu não significa ser escravizada por um homem, mas me reapropriar do corpo e da feminilidade." - Gael Turine/The New York Times
Nawal Afkir, 25, cujo hobby é fotografar, em Bruxelas, na Bélgica. "Sou uma assistente social e faço o melhor que posso para lutar por uma sociedade livre e justa. Para mim, usar o véu não significa ser escravizada por um homem, mas me reapropriar do corpo e da feminilidade." Imagem: Gael Turine/The New York Times

Lillie Dremeaux

06/09/2016 14h22

A comoção sobre a proibição do burquíni em mais de 30 cidades costeiras da França não abafou as vozes das mulheres muçulmanas, para quem os trajes de banho de corpo inteiro foram idealizados.

O “New York Times” pediu a elas que dessem seus depoimentos, e as respostas —foram mais de mil comentários vindos da França, da Bélgica e outros lugares— foram muito além da questão dos trajes de banho.

O que emergiu foi um retrato da vida de uma mulher muçulmana, que use o véu ou não, em partes da Europa onde o terrorismo tem deixado as pessoas em estado de tensão.

Um termo francês foi usado dezenas de vezes: “un combat”, ou “uma luta”, para se viver um dia de cada vez. Muitas das que nasceram e foram criadas na França descreveram um sentimento de confusão ao ouvirem que deveriam voltar para seus países.

Alguns tribunais anularam as proibições aos burquínis —a de Nice, local do terrível ataque terrorista no Dia da Bastilha, foi derrubada em 25 de agosto— mas a polêmica está longe de encerrada.

“Durante anos tivemos de aguentar cara feia e comentários ameaçadores”, escreveu Taslima Amar, 30, uma professora de Pantin, subúrbio de Paris. “Já me falaram para voltar para casa (embora eu esteja em casa).” Agora, disse Amar, ela e seu marido estavam pensando em deixar a França.

Laurie Abouzeir, 32, disse que estava considerando abrir um negócio cuidando de crianças em sua casa em Toulouse, no sul da França, porque isso lhe permitiria usar o véu islâmico, mal visto e até mesmo proibido em alguns locais de trabalho.

Muitas mulheres escreveram que o preconceito contra muçulmanos se intensificou depois dos ataques contra o “Charlie Hebdo” em janeiro de 2015 e em Bruxelas, Paris e Nice, mais recentemente.

Halima Djalab Bouguerra, uma estudante de 21 anos de Bourg-en-Bresse, na França, disse que isso na verdade começou muito antes, com o massacre executado por Mohammed Merah, no sudoeste do país em 2012.

“A forma como as pessoas olham para nós mudou”, escreveu Bouguerra. “As pessoas perderam o pudor. Ninguém mais tem medo de dizer para um muçulmano ‘voltar para seu país’.”

A seguir, alguns trechos dos comentários que recebemos. Eles foram condensados e editados para maior clareza, e traduzidos no caso dos que foram escritos em francês.

31.ago.2016 - Siam Ferhat-Basset, 29, próximo a sua casa em Drancy, na França. - Ed Alcock/The New York Times - Ed Alcock/The New York Times
Siam Ferhat-Basset, 29, próximo a sua casa em Drancy, na França. “Apesar de ter um mestrado, não consegui achar um emprego na minha área. Não vejo esperança no futuro e, como muitos outros, pretende ir embora. Meu coração é 100% francês (...) mas estou cansada de justificar minha identidade."
Imagem: Ed Alcock/The New York Times

“Isso me lembra dos meus primeiros dias no colegial depois que uma lei francesa proibiu o hijab nas escolas. Meu professor me obrigou a tirar meu véu na frente de todos os outros alunos. Fui humilhada... Hoje, senti meu coração apertado novamente. Vi essa mulher tirando suas roupas e me perguntei, até quando?”
— Hajer Zennou, 27, designer, Lyon, França, referindo-se à mulher que foi cercada por policiais em uma praia de Nice, na França.

“Sou insultada e cospem (literalmente) em mim todos os dias no metrô, no ônibus, na escola. Mas eu nunca insultei nem bati em ninguém. Não, sou simplesmente muçulmana. Estou pensando seriamente em viver em outro lugar, onde os olhares das pessoas não vão me fazer chorar todas as noites na cama.”

“Tenho medo de ter que usar um crescente amarelo nas minhas roupas algum dia, como a Estrela de Davi que os judeus tiveram de usar até pouco tempo atrás.”
— Charlotte Monnier, 23, estudante de arquitetura, Toulouse, França.

“Eu estava curiosa para ver se, nas cidades onde eles proibiram as mulheres de usar o burquíni, cachorros podiam nadar. A resposta era sim para algumas delas. Pessoalmente, fico chocada que cachorros possam ter mais direitos do que uma mulher de véu.”
— Samia Fekih, 36, gerente de projetos digitais, Paris.

“Toda vez que visito o Marrocos, eu sinto e vejo mais liberdade do que aqui no Ocidente.”
— Souad el Bouchihati, 26, assistente social, Gouda, Holanda.

“Não me importo de tirar meu véu para trabalhar. O que me incomoda é escondê-lo dos meus colegas... É claro, eu não o escondi por muito tempo. Esbarrei em uma colega minha enquanto fazia compras com uma amiga, e eu estava usando meu véu. Nós nos cumprimentamos, e sussurrei para ela que iria explicar. Eu me senti tão mal de ter mentido para ela esse tempo todo. Era um inferno! Então lhe enviei uma mensagem de texto contando-lhe a verdade. Ela me disse que entendia, e que ela não contaria para ninguém.”

— Hadjira Skoundri, 22, agente administrativa no governo local, Toulouse, França.

“Mesmo quando fazemos todos os esforços para nos ‘integrar’, somos constantemente lembradas de que para sermos adequadas e completamente integradas, devemos abrir mão de nossos princípios e de nossa religião. Em nossas casas, no trabalho ou entre amigos, existe um tipo de pressão. Não nos atrevemos a aceitar convites de amigos porque estamos cansadas de recusar bebidas alcoólicas e nos justificar educadamente, pisando em ovos enquanto tomamos o cuidado de não dizer nada que possa ser levado a mal. No trabalho, ouvi algumas piadinhas do tipo ‘Você ajudou seus primos?’, depois dos atentados terroristas. E nossas famílias, que xingam os terroristas em casa, são insultadas por essas novas leis.

1º.set.2016 - Saima Ashraf, 39, na Barking Town Hall, em Londres, onde ela é líder no governo local.  - Andrew Testa/The New York Times - Andrew Testa/The New York Times
Saima Ashraf, 39, na Barking Town Hall, em Londres, onde ela é líder no governo local. Para ela, essa conquista jamais teria sido possível como uma mulher que usa véu em sua terra natal, a França
Imagem: Andrew Testa/The New York Times

Então o que fazemos? Nós nos isolamos. E uma vez que você começa a se isolar, não está mais se integrando.”
— Mira Hassine, 27, administradora em uma construtora e muçulmana praticante que não usa o véu, Orléans, França.

“Ser uma mulher muçulmana na França é viver em um sistema de apartheid cuja mais recente encarnação são as proibições na praia... Acho que as muçulmanas francesas teriam motivo para pedir asilo nos Estados Unidos, por exemplo, considerando todas as perseguições às quais estamos sujeitas.”
— Karima Mondon, 37, professora de francês, Casablanca, Marrocos, que recentemente se mudou de Lyon, França.

“Sou enfermeira e uso o véu. No trabalho, para mim é impossível usar meu véu. Eu o tiro assim que chego. Sem nada na cabeça, sem mangas compridas, nada que possa me cobrir para seguir as regras do meu modo de vida... Temos negada a possibilidade de ir à piscina e agora de ir à praia. Qual vai ser o próximo passo? Vamos ter de usar crescentes para sermos reconhecidos?”

— Linda Alem, 27, enfermeira em um centro de hemodiálise, Paris.

“Sinto um mal-estar a ponto de ficar paranoica! Quando eu era estudante, um colega me chamou de salafista e me ameaçou de morte. Por quê? Porque ele me viu usando um véu na rua. Quando fui procurar a assistente de diretoria da escola, a única solução que ela encontrou foi expulsar nós dois se não diminuíssemos a tensão que ele havia causado. Um verdadeiro pesadelo, onde todos os caminhos levam à injustiça. Estou com lágrimas nos olhos enquanto escrevo estas palavras, e embora eu não queira nos apresentar como vítimas, estão sendo tão implacáveis que vou embora deste país cedo ou tarde. É verdade que eles terão conseguido o que querem, mas não tenho a força de Rosa Parks. Uma engenheira a menos na França, essa é a punição deles.”
— Nora Mahboub, 21, estudante de engenharia, Paris.

“Quando eu era estudante, era muito esforçada e adorava aprender. Mas fui perdendo toda minha motivação. Eu sabia que, como uma mulher muçulmana que usa o véu, eu não tinha futuro no mercado de trabalho. Eles pedem para que nós nos integremos, mas infelizmente eles não nos integram.”
— Saadia Akessour, 31, mãe e dona-de-casa que teve de tirar seu véu durante um estágio em obstetrícia e desde então abandonou seus estudos, Liège, Bélgica.

31.ago.2016 - Dina Srouji, 23, de Lebbeke, na Bélgica, em seu dormitório na universidade belga de Gent. "Como é possível que no mundo 'moderno', bronzear-se pelada é aceitável para manter suas roupas na praia não é?" - Gael Turine/The New York Times - Gael Turine/The New York Times
Dina Srouji, 23, de Lebbeke, na Bélgica, em seu dormitório na universidade belga de Gent. "Como é possível que no mundo 'moderno', bronzear-se pelada é aceitável para manter suas roupas na praia não é?"
Imagem: Gael Turine/The New York Times

“Este verão fui nadar perto de Hendaye, no sudoeste da França. Os locais me olhavam com curiosidade, mas descobri que as pessoas eram gentis. Parece que a imprensa e os políticos não estão em sintonia com o que as pessoas pensam.”
— Fadoua Hachimi, 41, assistente de compras, Les Lilas, França.

“Sinto-me como uma fora da lei, uma espécie de criminosa que está pedindo por algo ilegal, embora eu esteja somente pedindo o direito de ser livre.”
— Nadia Lamarti, 35, mãe de quatro filhas com formação em assistência social, Zellik, Bélgica.

“Acho maluco que os franceses pareçam estar descobrindo o islã e ainda estejam falando conosco sobre integração, embora estejamos agora na terceira ou quarta geração de muçulmanos de ascendência norte-africana vivendo na França.”
— Assia Boukhelifa, 22, estudante de ciências políticas, Lille.

“Sou uma mulher que usa o maiô de corpo inteiro. (“Burquíni” é um termo carregado demais.). Eu costumava me contentar em assistir aos outros desfrutando do prazer de nadar. No máximo eu entrava na água usando minhas roupas normais, o que não é nada prático. Essa peça de vestuário me libertou.”
— Ennaji Loubna, 30, mestranda em sociologia, Perpignan, França.

“Muito, muito obrigada por nos ver como seres humanos e por levar em conta nossas opiniões. Na Bélgica, assim como na França, nunca temos a chance de falar, ainda que nós muçulmanas (de véu ou não) sejamos as principais pessoas afetadas por essas recorrentes controvérsias sobre o islã e as mulheres. Somos vistas como fanáticas descerebradas que são submissas a nossos maridos e pais. Eu mesma sou muçulmana, professora, tolerante, feminista E uso o véu.”
— Khadija Manouach, 29, professora de escola primária, Bruxelas.

“Como uma jovem muçulmana, não me sinto mais segura... Estou me preparando para ir para o Reino Unido, onde eu possa trabalhar e viver normalmente. O que é triste, porque adoro meu país.”
— Sarah Nahal, estudante de economia e administração, Grenoble, França.

“Meu pai vive na França desde os 8 anos de idade, e trabalha desde os 14, mas apesar de tudo, isso não é o suficiente para a França nos ver como cidadãos comuns, já que meu véu os incomoda... O que podemos fazer? Arrumar coragem e lutar com as armas que temos à nossa disposição: conhecimento, diplomas e determinação!”
— Nadia Benabdelkader, 25, estudante, Roubaix, França.