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Unida contra o Estado Islâmico, Líbia é um país fragmentado em três governos

8.ago.2016 - Combatente das forças aliadas ao governo luta contra o EI em Sirte - Goran Tomasevic/Reuters
8.ago.2016 - Combatente das forças aliadas ao governo luta contra o EI em Sirte Imagem: Goran Tomasevic/Reuters

Rod Nordland e Nour Youssef*

No Cairo (Egito)

06/09/2016 06h00

O enviado dos EUA à Líbia, Martin Kobler, costumava brincar que o único governo que funciona na Líbia é o Estado Islâmico. Diferentemente dos outros três governos do país, ele não apenas detinha território, como dirigia os tribunais, oferecia serviços públicos e garantia a segurança --por mais duro que fosse seu regime.

Felizmente, disse Kobler há pouco tempo, sua piada hoje está defasada, com o EI reduzido a três bairros na cidade costeira de Sirte, e seu quartel-general nas mãos de milícias que apoiam o novo governo avalizado pela ONU. "Agora isso terminou", disse ele.

Os problemas de governar a Líbia, entretanto, estão longe de terminados, especialmente porque muitas das facções restantes tentam descobrir o que virá agora, em uma segunda rodada de negociações presidida pela ONU este mês. O futuro de Sirte será um dos temas principais das discussões.

Desde que o antigo governante da Líbia Muammar Gadhafi foi deposto e morto em Surt em 2011, o país ficou dividido entre milícias e tribos rivais. Com uma população ligeiramente maior que a de Miami, a Líbia não tem um claro governo central e conta com poucas probabilidades de explorar suas enormes reservas de petróleo, a nona do mundo.

O governo de Trípoli, apoiado pela ONU, conseguiu enviar uma milícia para conter o EI em Sirte --a primeira notícia de boa governança em cinco anos de combates internos acirrados.

Mas até a vitória em Sirte continua preocupante. Em primeiro lugar, as milícias tiveram de eliminar os restos do EI dos três bairros da cidade. As milícias estariam perto de concluir o trabalho, que então levantará a questão sobre o que farão depois.

Elas são de Misrata, cidade costeira considerada rival de Sirte. Enquanto estavam nominalmente cumprindo ordens do novo Governo de Acordo Nacional (GAN), apoiado pela ONU, não está claro se continuarão aceitando sua autoridade.

Depois há as outras facções líbias. O governo da cidade oriental de Bayda, com seu Parlamento em Tobruk, já gozou de apoio internacional, mas hoje conta principalmente com o Egito e alguns aliados do golfo Pérsico. Ele também suspeita das intenções dos habitantes de Misrata e está irritado pelo apoio da ONU ao GAN.

O líder militar mais poderoso do país, o general Khalifa Hifter, baseado em Benghazi, liberou quase totalmente essa cidade, a maior do leste do país, dos extremistas islâmicos que a dominavam. Mas ele também desconfia profundamente das milícias de Misrata, porque são controladas por islamistas. Embora Hifter tenha sido nomeado comandante do Exército Nacional da Líbia, politicamente ele atua de forma independente.

Isso também vale para a terceira facção que reivindica o governo da Líbia, um grupo de milicianos islamistas sediado em Trípoli que tem um Parlamento separado do do GAN.

"O governo precisa implementar a autoridade do Estado sobre quem domina esta área", disse Kobler. As milícias de Misrata agiam em nome do GAN quando depuseram o EI de Surt, o que foi um sinal muito positivo, disse ele.

"Isso mostra a força do GAN", acrescentou. "Os outros dois governos não existem. Um governo deve oferecer segurança, serviços básicos. Não é o caso desses dois governos."

Milícias tentam frear avanço do Estado Islâmico na Líbia

TV Folha

É também importante, segundo ele, que um consenso internacional esteja se formando para apoiar o GAN, em que a Liga Árabe e a União Africana pedem que seus membros não apoiem as reivindicações de legitimidade de outras facções. O sucesso em Sirte reforçou esse consenso.

O mesmo não parece existir em muitas partes da Líbia. O governo baseado em Bayda denunciou o GAN. Em Benghazi, Hifter boicotou as reuniões convocadas pela ONU para juntar todas as facções, e ele é de longe o militar mais poderoso em jogo.

Quando Sirte finalmente cair, disse Ahmed el Mesmari, porta-voz dos militares líbios no leste, as milícias de lá abandonarão o novo governo de Trípoli.

"Não acreditamos que alguém possa controlar essas forças", disse el Mesmari. "São anarquistas e extremistas, mais próximos da Al Qaeda do que de qualquer outro grupo. Seria muito difícil domá-los."

Mesmo no plano internacional, a imagem pode ser confusa. Tropas especiais dos EUA e do Reino Unido estavam assessorando as milícias em Misrata na luta contra o EI, e a Força Aérea americana foi decisiva em seus avanços contra os extremistas. A Itália enviou agentes do serviço secreto a Trípoli para trabalhar com o GAN, segundo notícias na imprensa italiana.

Trípoli está fragmentada por numerosas milícias com alianças mutáveis, e nem todas apoiam o governo endossado pela ONU.

"Segundo nossa contagem, há 40 milícias e bandos em Trípoli", disse el Mesmari. "A cidade é uma bomba de fragmentos esperando para ser lançada."

Sua crítica é comum entre políticos líbios no leste.

"Ainda é um governo natimorto, destinado a fracassar", disse Abu Bakr Buera, membro do Parlamento em Tobruk. O problema seria fácil de resolver, acrescentou ele. "Precisamos só colocar todos em uma sala, e levaria apenas algumas horas", disse ele. "O problema é colocar todos em uma sala."

Na verdade, os grupos do leste foram conspícuos em sua ausência, com muitos membros se recusando a aderir às negociações de acordos políticos do ano passado, que levaram ao novo GAN em Trípoli este ano.

Ali Busitta, uma autoridade municipal de Misrata, disse esperar que quando Sirte for libertada do EI as milícias continuem apoiando o novo governo.

"Autoridades e líderes locais garantiram esse acordo com as milícias com a bênção da ONU", disse ele. "É por isso que o governo apoiado pela ONU conseguiu entrar em Trípoli sem luta."

"E precisamos parar de pensar nessas pessoas como milícias", continuou ele. "Eles deixaram de ser isso há muito tempo. Hoje estão muito mais organizados. Recebem ordens, têm uma estrutura. Têm identidades militares. Eles são um Exército. Não há motivo para se preocupar com Trípoli."

Kobler disse que a situação confusa dos militares e facções políticas da Líbia não é uma surpresa, mas um legado de sua história.

"Este país nunca teve instituições fortes, mesmo na época de Gaddafi", disse ele. "É difícil fazer isso porque está sendo feito pela primeira vez e é um processo longo e postergado."

Se o que acontece na Líbia é difícil de entender, disse Kobler, há uma explicação simples subjacente a tudo: "Tudo tem a ver com poder, petróleo e dinheiro. É só o que precisamos saber".

Suliman Ali Zway colaborou na reportagem, de Berlim*

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AFP