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O misterioso tráfico de drogas que passa pelo território do Estado Islâmico

Navio de carga Aberdeen no porto de Trapani, Itália - Gianni Cipriano/The New York Times
Navio de carga Aberdeen no porto de Trapani, Itália Imagem: Gianni Cipriano/The New York Times

Rukmini Callimachi e Lorenzo Tondo

Em Palermo (Itália)

15/09/2016 06h00

Os investigadores da unidade antidrogas da Itália estavam acostumados a medir o fluxo de haxixe vindo dos campos do Marrocos para as praias europeias pela chegada de lanchas ou jet-skis, um de cada vez.

Mas quando receberam um telefonema avisando que um enorme cargueiro carregado de haxixe estava singrando águas internacionais ao sul da Sicília --com destino à Líbia, a centenas de milhas a leste da habitual rota rápida das drogas para a Espanha--, Francesco Amico, um investigador veterano, logo percebeu que algo estranho estava acontecendo.

Não apenas estranho, mas enorme: quando dois navios de guerra italianos interceptaram o cargueiro Adam ao largo da costa líbia, em 12 de abril de 2013, os agentes encontraram uma tripulação síria aterrorizada e 15 toneladas de haxixe --quantidade muito maior do que as autoridades italianas já haviam visto.

"Era tanta droga que não sabíamos onde colocá-la", disse Amico, que esperou no porto siciliano de Trapani pela chegada do navio escoltado. "Tivemos de alugar um armazém."

As autoridades italianas haviam tropeçado em uma nova e lucrativa rota de tráfico que se estendia a leste pela costa norte da África e sempre levava à Líbia, em uma área disputada por grupos armados rivais, entre os quais o Estado Islâmico.

O Adam foi o primeiro de 20 navios que seriam interceptados nessa rota nos quase três anos seguintes, segundo as autoridades. Sua carga total chegava a mais de 280 toneladas de haxixe, avaliadas em 2,8 bilhões de euros (cerca de R$ 10,6 bilhões), aproximadamente a metade do que foi apreendido em toda a Europa continental no ano passado, segundo o Centro de Monitoramento de Drogas e Dependência de Drogas da União Europeia.

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Foto sem data divulgada pelas autoridades mostram pacotes de haxixe encontrados no navio de carga Munzur após ser interceptado em dezembro de 2015 perto da Sicília, Itália
Imagem: Guardia di Finanza di Palermo via The New York Times

Então as denúncias cessaram e as apreensões terminaram. A investigação italiana, que tinha se expandido para incluir outros países europeus e a Administração de Combate a Drogas dos EUA (DEA), não capturaram nenhum navio na rota em 2016, apesar de as autoridades dizerem acreditar que o tráfico continua.

Enquanto tentam entender o que aconteceu com as cargas enormes, os policiais se debatem com um mistério que provocou perguntas intrigantes, mas ofereceu poucas respostas.

Uma coisa que eles sabem é que as drogas não terminam na Líbia. Os produtores de droga marroquinos usam constantemente logotipos de marca individuais, como um escorpião ou um símbolo de dólar. Isso ajudou os investigadores a encontrar a trilha dos carregamentos depois que saíram da Líbia, viajando por uma rota terrestre pelo Egito e depois para a Europa através dos Bálcãs.

Mas os investigadores ainda não têm certeza do que aconteceu quando as drogas passaram. A partir de vigilância e interrogatórios, eles sabem que a rota cruzava território que até algumas semanas atrás era reivindicado pelo EI, que aplica impostos sobre as cargas de drogas e outros produtos que seguem para a Síria e o Iraque.

Isto, em particular, levou os investigadores italianos a se perguntar coisas que nunca esperaram enfrentar: o EI ou outro grupo estaria lucrando com a taxação da rota do tráfico? O caos criado pelos militantes na Líbia estaria dando oportunidade para os traficantes escolherem uma rota de que as autoridades não suspeitam, ou os grupos baseados na Líbia estariam envolvidos mais diretamente? A investigação continua.

"Quando ela chega à Líbia, perdemos a trilha", disse o tenente-coronel Giuseppe Campobasso, chefe da unidade antidrogas na Sicília da Guardia di Finanza, a força policial italiana que lidera a busca dos navios.

Durante anos os investigadores italianos detectaram pequenas cargas de haxixe do Marrocos, cerca de 100 kg por vez, que chegavam à Espanha em barcos que atravessavam o estreito de Gibraltar, uma passagem que os ferry-boats cruzam em 35 minutos. Em 2007, a Espanha começou a instalar câmeras em todo o seu litoral sul, mas pelo menos de início o tráfico de haxixe continuou como sempre.

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O navio de carga Meryem, interceptado em junho de 2015 com 20 toneladas de haxixe, permanece em Palermo, Itália
Imagem: Gianni Cipriano/The New York Times

Com os olhos da Europa treinados no tráfico voltados para pequenos barcos que vêm do sul, de início ninguém notou os navios cargueiros que faziam um grande desvio a leste.

Giacomo Catania, um inspetor da Guardia di Finanza que estava encarregado de armazenar as drogas, descreveu outro fato estranho: os enormes cargueiros que foram apreendidos --alguns do tamanho de um campo de futebol e destinados a transportar frotas de carros ou contêineres de carga-- estavam vazios, exceto pelas drogas.

"São navios com capacidade para transportar milhares de toneladas, e a carga na maioria dos casos era de cerca de 20 toneladas. Só uma parte minúscula deles era usada", disse Catania.

O fato de os traficantes agirem de modo tão ineficaz --Catania o comparou a usar uma carreta de 18 rodas para transportar um maço de cigarros-- é testemunho do valor da carga.

Considerando que o haxixe é vendido a 10.000 euros (cerca de R$ 37,4 mil) por quilo depois que chega às ruas da Europa, a carga do Adam sozinha valia pelo menos 150 milhões de euros (cerca de R$ 562 milhões). E as remessas apreendidas mais tarde eram ainda maiores, incluindo uma de haxixe no cargueiro Aberdeen, abordado no verão de 2014, estimada em 420 milhões de euros (cerca de R$ 1,57 bilhão).

Depois da apreensão do Adam, os investigadores italianos interrogaram a tripulação, que insistiu que não sabia que havia haxixe nos 591 sacos plásticos encontrados no navio.

O capitão do mesmo testemunhou que acreditava estar transportando ajuda humanitária, levada ao navio pela tripulação de uma lancha que se aproximou na costa do Marrocos e insistiu que levassem os sacos, segundo uma transcrição de seu depoimento aos investigadores.

Para saber mais, os policiais, que têm décadas de experiência com a máfia siciliana, decidiram grampear as celas onde estavam detidos os seis membros da tripulação. Após meses de vigilância, Amico começou a identificar os contornos da rota de tráfico e o mistério do enclave militante na costa da Líbia pelo qual passou.

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Mala feita de juta contém blocos de haxixe e foi encontrado no navio de carga Munzur, em dezembro de 2015
Imagem: Gianni Cipriano/The New York Times

Desde a deposição do líder líbio Muammar Gaddafi, em 2011, trechos do litoral da Líbia na região leste de Cirenaica tornaram-se um campo de batalha de grupos militantes adversários. Em 2014, estes incluíam a filial do EI na Líbia, que em várias ocasiões teve enclaves nas cidades de Benghazi, Derna e especialmente Sirte, que caiu em parte nas mãos de forças leais ao governo.

As autoridades italianas acreditam que essas cidades eram o destino de alguns navios com drogas, embora as unidades de navegação de outros navios apreendidos indiquem que rumavam para o porto líbio de Tobruk, que é controlado por um grupo rebelde que combate o EI.

Os investigadores dizem acreditar que pelo menos em alguns casos o grupo terrorista teria cobrado um imposto em troca da passagem das drogas. Isso se equipara às práticas comerciais do EI em seu enclave na Síria e no Iraque, onde, segundo um estudo de IHS Country Risk, 7% da receita do grupo no ano passado vieram da produção, taxação e tráfico de drogas.

Mas as autoridades admitem que não podem ter certeza se o EI exerce algum papel nos carregamentos de haxixe.

"Ninguém tem observadores no local que digam saber com exatidão", disse Masood Karimipour, o representante regional para o Oriente Médio e o norte da África do Escritório da ONU para Drogas e Crime. "O que podemos oferecer, ou fazer inferências racionais, é que onde os terroristas detêm terreno eles controlam tudo o que passa por lá, inclusive o tráfico de qualquer coisa, sejam armas ou drogas."

Examinando os vídeos de vigilância da tripulação presa do cargueiro Adam, Amico e os membros da equipe de investigação começaram a se perguntar se as drogas fazem parte de um esquema maior, talvez envolvendo armas.

Eles souberam que o Adam começou sua viagem pelo Mediterrâneo em Chipre, onde apanhou contêineres de "móveis" destinados a Benghazi. Depois de desembarcar a carga, o navio continuou para o Marrocos, apanhando 15 toneladas de haxixe e retornando à Líbia.

De outros comentários dos tripulantes, Amico passou a acreditar que os "móveis" eram um carregamento de armas, disse ele, ideia apoiada por dois dos promotores envolvidos no caso.

"A Líbia não é uma terra onde as pessoas consomem haxixe", disse o vice-promotor Maurizio Agnello. "Por isso a carga de drogas é de fato um meio de pagamento, uma espécie de moeda."

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Blocos de haxixe que foram encontrados no navio de carga Munzur são avaliados pela Guardia di Finanza
Imagem: Gianni Cipriano/The New York Times

Nos últimos meses, porém, a investigação italiana parou. A maioria das pistas vinha de autoridade francesas, que nos últimos meses enfrentaram uma onda de ataques terroristas, e quando as pistas cessaram as apreensões também. Nenhum navio foi interceptado na rota em 2016, mas os investigadores dizem acreditar que ainda seja usada.

Eles manifestaram preocupação pela incerteza sobre os atores que controlam a nova rota.

"Se fosse controlada pela máfia, saberíamos lidar com ela, porque conhecemos bem a máfia", disse Agnello, cujo escritório fica em um edifício imponente em Palermo, um enclave da máfia siciliana, que durante anos controlou o haxixe que chegava do Marrocos via Espanha.

Quando se trata do possível envolvimento de grupos terroristas, disse ele, "nos assustamos porque eles não têm limites. Fazem coisas que seriam impensáveis para um mafioso".