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Opinião: Como Michelle Obama demonstrou seu poder diante de Trump

Ben Wiseman/NYT
Imagem: Ben Wiseman/NYT

Frank Bruni

18/10/2016 06h00

Não é uma delícia que, depois de dar declarações racistas, promover o machismo e usar uma mentira sobre o local de nascimento de Barack Obama para ganhar relevância política, Donald Trump possa receber seu golpe final de uma mulher negra, no caso, a mulher do presidente?

E não é interessante que, após tantos anos mantendo uma estudada distância da feiura da arena política, a primeira-dama esteja se jogando com tanto entusiasmo nessa campanha grotesca?

Isso diz tudo sobre a ameaça singular que Trump representa, e ela está emergindo como a mais intensa força contra ela: Michelle Obama, matadora de polvos. Ela é eficiente porque nunca saiu por aí procurando briga, sabemos disso. Ela age quando tem algo a defender e, assim como ela tornou claro em um discurso inspirador e intenso no final da semana passada, isso é mais do que o legado de seu marido, que uma vitória de Trump destruiria. É sua dignidade como mulher. É a dignidade de todas as mulheres.

Michelle Obama chama de 'intoleráveis' comentários de Trump sobre mulheres

AFP

Não tenho a intenção de exagerar seu impacto. Trump já estava em sua derrocada antes que ela se juntasse ao coro da condenação. Mas sua eloquência está solidificando o fato. Primeiro, na Convenção Democrata no final de julho, e, depois, em New Hampshire, na quinta-feira (13), ela incorporou a consciência da nação e mostrou que acredita ser a guardiã mais sincera de nossos mais importantes valores.

Hillary Clinton não pode fazer esse papel. Ela já fez concessões complicadas demais e revelou muitos cálculos elaborados. Esses e-mails hackeados de John Podesta sugerem que ela não pisca até que um enorme comitê de conselheiros de Hillary tenha discutido sobre o bom senso de se fazer determinada coisa.

Barack Obama não pode fazer esse papel, não neste exato momento ou neste exato clima. Em sua passagem por Ohio na semana passada, ele basicamente pediu aos eleitores que não somente rejeitassem Trump, como também punissem o GOP, e seu deleite óbvio e justificado com as atribulações do partido tinha um tom de acerto de contas e de “eu avisei”.

Ele condenou os republicanos pelo “lamaçal de insanidade que foi alimentado tantas e tantas vezes”. Ele lhes disse que Trump é o candidato que você recebe quando sua agenda é “baseada em mentiras, baseada em enganações”. Ele não estava meramente salvaguardando o futuro dos Estados Unidos. Ele estava se divertindo com sua vingança.

Michelle Obama, provavelmente, também quer vingança pelo pior de tudo pelo qual seu marido e ela mesma passaram, mas você não ouve isso em suas palavras.

Isso se dá em grande parte pelo fato de que ela tem o luxo de não ser uma política. Ela não está concorrendo nem vai concorrer a nada. Ela não foi forçada a falar sobre uma série de questões, possivelmente afastando eleitores que discordem, ou a esgotar sua munição em diversas frentes. Quer altos índices de popularidade? Deixe um cargo eletivo, ou senão nunca assuma um.

Mas, além disso, ela aprimorou um talento, raro em Washington, em se manter acima de mesquinharias, e ela e seus redatores de discursos conseguiram uma alternativa sutil e tocante para uma simples repreensão ou um rancor banal. Penso na incrível passagem de seu discurso feito na convenção, sobre se mudar para Washington e observar suas filhas acordarem todas as manhãs em uma casa branca construída por escravos negros. Essa observação advertia os Estados Unidos por seus pecados, mas também abundava em elogios, reconhecimento e parabenizações ao país por seu progresso. Ele atingiu algo que a política e os políticos raramente conseguem: uma verdade intrincada e irrefutável.

O discurso dela na semana passada foi igualmente excepcional, pois foi menos uma convocação para as barricadas do que um desabafo, e ela havia planejado fazer comentários nessa linha mesmo antes de ouvir a gravação da conversa de Trump com Billy Bush em 2005.

Então essa gravação vazou, intensificando sua determinação. “Isso magoa”, ela disse, referindo-se ao tipo de direito que Trump acredita ter, o tipo de linguagem que ele usa e sua crença óbvia de que as mulheres existem basicamente para seu prazer, que prevaleceria sobre a autonomia delas. “É como aquela sensação horrível e incômoda que você tem quando está andando na rua, cuidando de sua própria vida, quando algum cara grita palavras vulgares a respeito do seu corpo.”

Ela acrescentou que as mulheres, muitas vezes ,“fingem que isso não nos incomoda de fato, talvez porque achemos que admitir o quanto isso nos magoa faz com que nós, como mulheres, pareçamos fracas”.

“Talvez tenhamos medo de ser tão vulneráveis assim”, ela teorizou, mas ela deixou que sua própria vulnerabilidade transparecesse, em uma voz trêmula. Era sua ponte para cada americano que ela tinha qualquer esperança de alcançar.

Não se parou de falar durante essas eleições sobre autenticidade. Houve muitos mal-entendidos, especialmente entre eleitores de Trump, sobre o que isso realmente significa.

Insultos não são distintivos de autenticidade. São prova de grosseria e muitas vezes de crueldade. Xingamentos não tornam você autêntico, só provam que você é infantil.

Sabem o que me pareceu autêntico? A forma como a primeira-dama e George W. Bush se aproximaram e deram as mãos em um funeral para policiais em Dallas em julho. Ou a forma como eles se abraçaram mês passado em Washington na abertura do Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana.

Olhar essas imagens é entender o poder de Michelle Obama. Ela não está talhando seu comportamento de acordo com temas de campanha. Ela não está filtrando suas emoções através de qualquer agenda partidária. Ela, provavelmente, se tornou a autoridade moral de 2016 sobre questões de raça, e é por isso que Hillary, no último debate, repetiu sua afirmação mais citada de que “quando eles se rebaixam, devemos nos elevar”. Isso certamente não vale para todos no Partido Democrata, na campanha de Hillary ou na administração Obama, mas é uma descrição clara o suficiente de como a primeira-dama se comporta.

É um contraste e tanto em relação a outras figuras políticas. É um antídoto e tanto para a insana manipulação que vemos. Kellyanne Conway, diretora de campanha de Trump, está jogando uma espécie de jogo para ver o quão longe ela consegue se distanciar da realidade, ou com quanta criatividade ela consegue inventar distrações e com quão sutil -ao mesmo tempo perplexa e feliz- pode ser sua expressão. Meu conwayismo favorito foi o de que certos membros do Congresso não deveriam repreender Trump porque eles mesmos são culpados de dar beijos de língua à força em mulheres. Ou seja: que atire a primeira pedra aquele que não tem língua.

Vocês conseguem acreditar que uma vez ela chegou a se vender como uma estrategista que poderia ajudar os republicanos a acabarem com a desigualdade de gênero? Trump está 15 pontos atrás de Hillary entre as eleitoras mulheres, de acordo com uma análise de pesquisas de outubro feita por Nate Silver na semana passada. A essa altura, em 2012, Mitt Romney estava 8 pontos atrás de Obama. “Parece justo dizer que, caso Trump perca a eleição, será porque as mulheres votaram contra ele”, escreveu Silver.

Que perfeito. A misoginia ajudará a fazer História. Depois de serem tratadas por Trump como se fossem descartáveis, as mulheres o descartarão -a pedido da primeira-dama e a serviço da primeira mulher presidente. Elas farão com que ele saiba que, não importa o quanto de dinheiro ele tenha ou o quão famoso ele seja, existem lugares onde seus tentáculos não conseguem alcançar.

Nem todos os TicTacs do mundo poderiam adoçar sua sorte.