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Cidade siberiana quer disputar o posto de berço da Humanidade

Tatyana Belikova, curadora e guia do Museu Regional de Soloneshnoye, na Rússia, próximo a uma instalação de um dos primeiros colonos russos na região  - Brendan Hoffman/The New York Times
Tatyana Belikova, curadora e guia do Museu Regional de Soloneshnoye, na Rússia, próximo a uma instalação de um dos primeiros colonos russos na região Imagem: Brendan Hoffman/The New York Times

Andrew E. Kramer

Em Soloneshnoye (Rússia)

21/10/2016 06h02

A fumaça da lenha paira como uma névoa sobre essa cidade, aninhada em um vale nas profundezas da Sibéria. As casas de madeira são estilosamente inclinadas, os cães latem nos quintais e as vacas andam pelas ruas empoeiradas, com seus sinos tilintando.

Ao mesmo tempo pitoresca e pobre, Soloneshnoye, assim como boa parte da Rússia rural, ficou de fora do boom e do declínio do petróleo da distante Moscou.

Mas, apesar de todos seus infortúnios, essa cidade pode ter tirado a sorte grande em outra forma de combustível fóssil: a pré-História humana, associada a descobertas de ossadas antigas na região.

Segundo um modelo novo de evolução, amplamente apoiado por cientistas, diferentes tipos de humanos primitivos, incluindo neandertais, teriam se reproduzido entre si e deixado seus vestígios genéticos com muitos de nós hoje. Essa é uma teoria conhecida na literatura científica como uma “mistura entre humanos arcaicos e anatomicamente modernos.”

Peça por peça, com o osso de um dedo da mão aqui, um dedão do pé ali, a caverna de Denisova tem fornecido pistas essenciais para essa narrativa científica. Ela levantou expectativas de que uma indústria do turismo e congressos científicos no local possam dinamizar as receitas da cidade.

“Todo ano encontramos algo interessante”, diz Aleksandr S. Voronov, o prefeito. No último verão mesmo a caverna produziu uma nova descoberta: a mais antiga agulha do mundo já conhecida. “Quanto mais descobrimos, mais interessante fica”, ele diz.

As descobertas sintetizam o que os cientistas dizem tornar esse lugar singular: é o único ponto da Terra onde ossos de três tipos de humanos primitivos, neandertais, denisovanos e Homo sapiens, foram todos descobertos, embora não tenham necessariamente vivido aqui ao mesmo tempo.

19.out.2016 - A entrada para a caverna Denisova, no parque natural Berço da Humanidade, em Soloneshnoye, na Rússia - Brendan Hoffman/The New York Times - Brendan Hoffman/The New York Times
A entrada para a caverna Denisova, no parque natural Berço da Humanidade, em Soloneshnoye
Imagem: Brendan Hoffman/The New York Times

A região tem um longo caminho a percorrer antes de se tornar uma concorrência para as cavernas de Lascaux, no sul da França. Até agora, a cidade inaugurou uma ala de paleoantropologia no museu local, e o governo regional pretende pavimentar a estrada até a caverna de Denisova.

E à beira da estrada surgiu uma atração turística com temática de homens das cavernas. Chamada “Berço da Humanidade”, ela mostra vários tipos de habitantes de cavernas —peludos, dentuços e de olhos arregalados— com informação sobre sua transformação de simiescos para mais reconhecidamente humanos. A exposição captura a estranha intersecção na evolução que permitiu o cruzamento entre diferentes espécies.

Uma hospedaria para visitantes e cientistas foi aberta perto da caverna. A alguns quilômetros de distância, outra hospedaria também serve como um retiro para relaxar em uma banheira de banho medicinal mongol, em água com chifre de veado fermentado. Há uma terceira hospedaria sendo construída.

Nos meses de verão, os veranistas chegam de ônibus de toda a Rússia. Recentemente, alguns turistas holandeses chegaram de trailer.

A agulha de 50 mil anos de idade encontrada este verão foi um exemplo intrigante de engenhosidade humana. Mas essa não é a principal atração da caverna de Denisova.

A caverna, com 270 m2, mais ou menos o tamanho de uma casa de subúrbio americano, se tornou um centro de estudos sobre o cruzamento entre hominídeos antigos de diferentes espécies.

O mais completo genoma neandertal decodificado até hoje veio de um osso de um dedão do pé encontrado aqui. E os ossos de um novo tipo de hominídeo, os denisovanos, até o momento só foram encontrados nesta caverna, que deu nome a eles.

O genoma do osso do dedo de uma menina sequenciado em 2010 revelou que os denisovanos mantiveram relações sexuais com humanos modernos, embora não necessariamente neste lugar. Os melanésios modernos e os aborígenes australianos carregam pequenas porcentagens do genoma denisovano.

19.out.2016 - Tatyana Belikova, curadora e guia no Museu Regional de Soloneshnoye, na Rússia, ilumina sedimentos na caverna Denisova - Brendan Hoffman/The New York Times - Brendan Hoffman/The New York Times
Tatyana Belikova ilumina sedimentos na caverna Denisova
Imagem: Brendan Hoffman/The New York Times

Todos os humanos modernos de ascendência não-africana carregam de 1% a 2% de genes neandertais. Embora seja provavelmente o resultado de encontros no Oriente Médio ou em outros lugares, o genoma do osso do dedão encontrado na caverna de Denisova deixou essa linhagem mais evidente.

“É um sítio extremamente importante”, disse em uma entrevista por telefone Svante Paabo, um geneticista do Instituto Max Planck para Antropologia Evolucionária em Leipzig, Alemanha, que sequenciou o genoma denisovano.

“Uma das lições é que os grupos humanos sempre se encontraram e se misturaram uns com os outros”, ele disse. “Do ponto de vista antropológico, esse é o lugar mais importante do mundo.”

O museu da cidade, um prédio de um andar sem nada de especial, acrescentou uma exposição paleolítica a uma apertada sala que já continha o boneco de um ameaçador homem das cavernas. Ao seu redor, estão artefatos humanos neandertais e denisovanos.

Tatyana G. Belikova, a curadora, apontou para miçangas decorativas que, segundo ela, eram acessórios para as mulheres das cavernas.

“Uma mulher quer ficar bonita”, explica Belikova. “Olha só o que ela fazia. Ela fazia miçangas!”

“Eu digo: ‘Homens, se vocês amam suas mulheres, por que não levam umas pedras para polir e depois dar para suas mulheres?’”, ela diz, referindo-se a ornamentos de pedras encontrados na caverna, que foram esculpidas em mármore rosa.

“Talvez fosse uma era de ouro, quando todos esses tipos viviam juntos de forma pacífica”, ela disse.

19.out.2016 - O parque natural Berço da Humanidade, em Soloneshnoye, na Rússia - Brendan Hoffman/The New York Times - Brendan Hoffman/The New York Times
O parque natural Berço da Humanidade, em Soloneshnoye
Imagem: Brendan Hoffman/The New York Times

Em entrevistas com residentes, essa parecia ser a visão prevalecente do que a rica produção científica de Solonehsnoye significa, embora, na verdade, a natureza dos encontros seja quase que totalmente desconhecida.

As evidências genéticas em humanos modernos são inconclusivas a respeito de detalhes, de acordo com Paabo, o geneticista, mas a ausência de vestígios neandertais no DNA materno mitocondrial sugere que neandertais machos mantinham relações sexuais com humanas fêmeas.

“Ninguém olha com horror para esse passado” da história humana, diz Voronov. “É como deve ter sido. É o que nos orgulha nesta região.”

Rima Botukayeva, uma cosmetologista, pareceu ofendida pelo fato de terem sequer levantado uma questão sobre a evidência genética do cruzamento entre espécies tanto tempo atrás.

“Se havia amor entre eles, eles devem ter se sentido atraídos uns pelos outros”, ela diz.

A caverna em si oferece poucas pistas sobre o que de fato aconteceu ali. Ela é embolorada e fria, embora talvez uma fogueira e algumas peles pudessem melhorar o ambiente.

Quem a visita vê a história humana se desabrochar: escavações arqueológicas de sedimentos a até 7 metros revelam 22 diferentes camadas culturais ao longo de 282 mil anos de habitação.

Em uma dessas tardes quentes, a luz do Sol banhava afloramentos rochosos em um brilho dourado. O aroma de pinho preenchia o ar, e um riacho borbulhava a centenas de metros de distância. No silêncio, é possível imaginar o apelo dessa terra para aqueles que viveram aqui em um passado distante.