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"Não há morte que o povo sírio já não tenha experimentado", diz líder dos Capacetes Brancos

Raed Saleh, presidente dos Capacetes Brancos na Síria - Jacky Naegelen/Reuters - Jacky Naegelen/Reuters
Raed Saleh
Imagem: Jacky Naegelen/Reuters

Raed Saleh

Em Istambul (Turquia)

23/10/2016 06h00

Eu resgatei sírios de alvos de ataques aéreos. Mas não quero mais realizar esse trabalho

Sou de uma cidade pequena no noroeste da Síria chamada Jisr al-Shughur. Antes da guerra, eu comprava e vendia aparelhos eletrônicos. Em 2013, me juntei a um pequeno grupo de sírios para formar a Defesa Civil Síria, mais conhecida como os Capacetes Brancos, um grupo de voluntários que corre até o local de bombardeios recentes para tentar salvar as pessoas presas sob os escombros. Em 2014, meus colegas, que chegavam a 3.000 homens e mulheres, me elegeram para liderar a organização.

Juntos, nós salvamos mais de 60 mil sírios. Nosso trabalho é guiado por um princípio islâmico, escrito no Alcorão: "Quem salva uma vida, é como se estivesse salvando toda a humanidade". Nós nos orgulhamos desse trabalho e todo dia arriscamos nossas vidas para salvar outras e servir nosso país.

Eu participei de dezenas de missões que pareciam o juízo final. Recordo-me de uma das primeiras, três anos atrás: um carro-bomba detonado em um mercado movimentado na cidade de Darkoush, perto da fronteira com a Turquia, enterrando muitos civis sob escombros. Na época, não tínhamos o equipamento adequado para remover os escombros rápido o bastante para resgatá-los e muitas pessoas que poderíamos ter salvo morreram. Neste ano, um ataque aéreo atingiu o mesmo mercado. Graças ao treinamento e equipamento mais novo, como britadeiras e cortadoras de concreto, pudemos resgatar muito mais pessoas.

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Imagem: Syrian Civil Defense White Helmets via AP, File

Mas também há muitas que não pudemos salvar, incluindo 142 de nossos próprios voluntários da defesa civil, que foram mortos no cumprimento do dever.

Recentemente eu passei uma semana nos Estados Unidos, me encontrando com autores de políticas e autoridades. Com frequência me perguntavam: "O que podemos fazer para apoiar a continuidade de seu trabalho?" Eu tentava explicar que, mesmo se fôssemos vistos pelas pessoas como heróis, nosso desejo não é continuar. Não quero mais retirar bebês de escombros, sem saber se a próxima criança que encontrarei será meu próprio filho ou filha.

Os Capacetes Brancos ficaram honrados em ser nomeados para o Prêmio Nobel da Paz. Ficamos felizes por nosso trabalho ter estampado a capa da revista "Time". Mas não estamos felizes com o que fazemos. Nós abominamos a realidade na qual vivemos. Não queremos apoio para continuar, mas sim apoio para colocar um fim nesse trabalho.

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Imagem: Syrian Civil Defense White Helmets via AP, File

Quando o chamado cessar-fogo acabou em Aleppo no mês passado, uma nova campanha aérea vil teve início. Aviões russos e sírios começaram a atacar a cidade como uma ferocidade e brutalidade não vista antes. Em apenas 21 dias, contamos 2.400 ataques aéreos em Aleppo. Dentre esses, mais de 20 envolveram o uso de bombas "bunker buster", armas que provocam o desmoronamento de prédios inteiros e são novas na guerra na Síria.

Essas bombas horríveis destruíram os hospitais, escolas e abrigos subterrâneos onde civis buscavam refúgio das bombas e ataques aéreos. Além disso, documentamos cerca de 200 ataques russos que usaram bombas de fragmentação e munições incendiárias.

Esses ataques mataram ou feriram mais de 2.000 sírios. Esse número crescerá, porque muitos cadáveres ainda estão presos sob os escombros. Temos agora tantos ataques aéreos que não temos tempo de chegar a todos os alvos de bombardeio.

Socorrista chora ao resgatar bebê de escombros na Síria

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Eu resgatei sírios de alvos de ataques aéreos. Mas não quero mais realizar esse trabalho.

Ouvi recentemente uma história emblemática de todo o sofrimento de Aleppo no momento. Um homem gravemente ferido chegou a um hospital e não havia mais espaço no chão para novos pacientes. O médico disse para o enfermeiro:

"Esse homem só viverá por mais duas horas. Retire ele do hospital para que possamos receber aqueles que podem ser salvos".

O homem foi colocado em um saco de corpos ainda vivo e colocado na rua para ser enterrado. Esse é o horror que enfrentamos em Aleppo.

Quando centenas de milhares de sírios tomaram as ruas em 2011, eles o fizeram por aspirarem por um futuro melhor para si mesmos e seus filhos. Eles não se manifestaram contra o governo porque queriam provar todo tipo de morte possível. Mas desde então provamos morte por armas químicas, bombas de barril, morteiros. Experimentamos morte por afogamento no Mediterrâneo, por congelamento nos campos de refugiados. Experimentamos a morte por "bunker busters", bombas de fragmentação e armas incendiárias. Não há morte que o povo sírio já não tenha experimentado.

Eu costumava caminhar pelas ruas de Jisr al-Shugour, minha cidade natal, ruas cheias de alegria, onde nos sentávamos em cafés com nossos amigos e famílias por horas. Essas ruas agora estão destruídas. Toda vez que passo por elas, me recordo de algum dos meus muitos amigos com os quais costumava tomar café, que agora foi morto ou mutilado por bombas. Quero que meus filhos experimentem como era antes, quando a vida era normal e quando as crianças podiam ir à escola.

Espero que algum dia possa resgatar civis de incêndios causados por velas ou cigarros, não por bombardeios. Quero curtir o fim de semana, me divertir com minha família e não sentir o cheiro de guerra no ar. E acima de tudo, quero viver o bastante para nunca mais ter que tirar uma criança morta de sob um prédio atingido por uma bomba que caiu do céu.

*Raed Saleh é o chefe da Defesa Civil Síria