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Hillary como advogada: "Ela me desmontou como se eu fosse um relógio de brinquedo"

2.nov.2016 - Hillary Clinton com sua filha, Chelsea, em 1983 - Hillary Clinton campaign via The New York Times
2.nov.2016 - Hillary Clinton com sua filha, Chelsea, em 1983 Imagem: Hillary Clinton campaign via The New York Times

Amy Chozick*

Em Little Rock, Arkansas (EUA)

04/11/2016 06h01

Eles o chamavam de Tiny (minúsculo), porque ele era tudo menos isso. Um guarda de uma loja de penhores daqui, o homem superava em peso a maioria dos clientes da loja e os interessados em roubá-la. Agora ele era acusado de abusar fisicamente de sua namorada.

Enquanto o juiz aguardava para ouvir o caso, uma jovem advogada chamada Hillary Rodham, sempre cuidadosa em tratar Tiny por seu nome verdadeiro, fez com que a acusadora dele se sentasse com ela para uma conversa sincera.

Em pouco tempo, a namorada desistiu das acusações, dizendo que tudo foi apenas uma briga de casal.

Ouvindo Hillary Clinton contar isso agora como candidata, o tempo entre seu trabalho de pós-graduação com o Fundo de Defesa da Criança em 1974 e seus períodos como primeira-dama em Washington mais se parece como um borrão de atividades, como a criação de sua filha, as campanhas para seu marido e o trabalho como advogada em questões como saúde infantil e educação.

Durante a primeira campanha presidencial de Bill Clinton em 1992, seus anos como advogada do (escritório de advocacia) Rose Law Firm foram examinados exaustivamente como possíveis conflitos de interesse envolvendo clientes como a Tyson Foods, Wal-Mart e Madison Guaranty, uma financeira que se tornou o foco central da investigação Whitewater.

Mas pouca atenção foi dada ao trabalho de Hillary Clinton nos tribunais.

Não foi nada glamouroso: ela representou uma empresa de mudanças cujo cliente a processou por danificar uma mesa de café, um homem que voou com seu avião borrifador perto demais de sua plantação de arroz e feriu um funcionário e uma empresa de enlatados que foi processada depois que um homem abriu sua lata de carne de porco com feijão e encontrou a traseira de um rato.

Ela pendia particularmente para casos de lei de família e disputas domésticas.

Mas uma análise do trabalho inicial de Hillary como advogada, por meio de entrevistas com alguns advogados, juízes e clientes que se recordam dela, exibe muito do que a distinguiria como política muitos anos depois: um preparo diligente e uma abordagem cirúrgica para desmontar os argumentos dos oponentes. Uma capacidade de empatia tanto com clientes como adversários. Dureza e habilidade diante da condescendência masculina. E apetite mínimo pelos holofotes, se não uma aversão a isso.

As aventuras de Hillary nos anos 1970 na ordem dos advogados de Arkansas poderiam fornecer algum tempero para um romance de John Grisham ou mesmo para uma comédia de peixe fora d'água, como "Meu Primo Vinny".

Ao chegar em Harrison, Arkansas, perto da divisa com o Missouri, para uma audiência, ela se viu retida no aeroporto. Então pegou carona para o tribunal em uma velha picape dirigida por um homem conhecido como One-Eyed Jay, por causa do tapa-olho preto que usava.

Em outra ocasião, tendo um julgamento no canto nordeste do Estado, ela planejou equivocadamente para uma viagem de apenas um dia. O juiz a poupou do embaraço de ter de enfrentar o júri com as mesmas roupas na manhã seguinte: ele emprestou para ela um dos vestidos de sua filha.

Um juiz interrompeu Hillary no tribunal dizendo: "Venha até aqui para que eu possa dar uma boa olhada em você". Outro forneceu sua opinião não solicitada sobre o plano de Bill Clinton de estar ao lado dela na hora do parto. "Não acredito que um marido tenha alguma razão para estar ali no nascimento do bebê!" o juiz disse furiosamente para ela.

Ela obteve seu diploma de direito em Yale em 1973 e então passou um ano fazendo trabalho de pós-graduação com o Fundo de Defesa da Criança e pesquisando sobre o possível impeachment do presidente Richard M. Nixon para o comitê da Câmara que investigava o caso Watergate.

Então, ao seu mudar para o Estado natal de seu futuro marido, ela assumiu um emprego na faculdade de Direito da Universidade do Arkansas, em Fayetteville, e logo fez sua primeira defesa bem-sucedida.

Isso ocorreu perante um painel da ordem dos advogados do Arkansas, composto por 25 advogados e juristas, a maioria deles politicamente conservadora e todos homens. A jovem Rodham, apresentada como a "nova professora de Direito", fez um discurso de oito minutos buscando a fundação de uma clínica de auxílio legal e um projeto de assistência a presos.

Na época, os moradores pobres de Arkansas só obtinham representação gratuita se tivessem menos de US$ 10 em bens. Qualquer pessoa que tivesse um carro ou televisor não tinha direito.

Ela saiu com um compromisso de US$ 10 mil para montagem da clínica, a primeira do Estado. Em seu primeiro ano, ela colocou 300 clientes aos cuidados de estudantes de Direito sob supervisão de membros da ordem dos advogados.

Ao superar constantemente o ceticismo do painel, um advogado, Billy Roy Wilson, que seria nomeado por Bill Clinton como juiz distrital federal quase duas décadas depois, se inclinou para o homem ao seu lado. "Essa jovem", sussurrou Wilson, usando uma frase que costuma ser aplicada a pregadores batistas carismáticos, "tem uma boca boa".

O trabalho legal de Hillary Clinton incluiu casos criminais desagradáveis. Quando um operário de fábrica de 41 anos foi acusado de estuprar uma menina de 12 anos e disse que queria uma advogada, um juiz de Fayetteville nomeou Hillary, apesar de suas objeções. A perícia descartou por engano evidências cruciais e ela conseguiu um acordo, reduzindo a acusação para carícias ilegais. Seu cliente cumpriu menos de um ano de prisão.

A vítima naquele caso, Kathy Shelton, que apoia Donald J. Trump, acusou Hillary de ter atacado seu caráter e a ter feito passar por "algo que ninguém nunca deveria fazer uma menina de 12 anos passar".

Hillary quer fazer história

AFP

O primeiro julgamento de Hillary com júri foi desagradável de um modo totalmente diferente.

Ela tinha se casado com Bill Clinton, se mudou com ele para Little Rock (ele era o procurador-geral do Estado) e se juntou ao Rose, o escritório de advocacia de maior prestígio do Estado e o mais antigo a oeste do Mississippi. Os clientes dela eram principalmente empresas, inclusive uma de produtos enlatados que estava sendo processada por um homem que encontrou a traseira de um roedor em sua lata de carne de porco com feijão.

O homem se queixava do trauma emocional e psicológico, dizendo que não conseguia parar de cuspir e que isso o impedia de beijar sua namorada.

"Ele ficou sentado durante o julgamento cuspindo em um lenço e parecendo infeliz", escreveu Hillary Clinton sobre o querelante em sua autobiografia de 2003, "Vivendo a História".

Obviamente ocorreu um problema na fábrica, ela argumentou, mas nenhum mal ocorreu, já que "os pedaços do roedor que foram esterilizados poderiam ser considerados comestíveis em certas partes do mundo".

"Apesar de estar nervosa diante do júri", escreveu Hillary, "eu me animei com a tarefa de convencê-los de que meu cliente não estava errado". Para seu alívio, o querelante obteve apenas uma indenização "nominal", ela escreveu.

Seu marido a provocou por anos pelo que chamou de caso do "traseiro de rato".

Bill Clinton tomou posse como governador em 1979, no mesmo ano em que sua esposa se tornou sócia plena do escritório de advocacia. Seu trabalho se estendia noite adentro, estudando detalhes e polindo seu trabalho. E ela exigia o mesmo dos associados mais jovens, rabiscando "RTDD" em seus resumos, as iniciais em inglês da repreensão "leia os malditos documentos".

Jerry C. Jones, outro advogado do Rose, lembrou-se de observar Hillary em um caso envolvendo lentes de contato com falhas. "Ela desmontou metodicamente o perito do outro lado", ele disse. "Foi como se pudesse ver a bola sair girando da mão do arremessador."

Ela era uma das poucas mulheres que advogavam em casos de litígio no Estado e calibrava cuidadosamente sua aparência e abordagem, lembrou Amy Stewart, outra advogada do Rose.

"Uma das primeiras coisas que aprendi a observando, quando ela estava com juízes ou na sala de depoimento ou na sala do tribunal, foi que se tratava de não chamar atenção para si mesma", disse Stewart. Em vez disso, ela acrescentou, "tratava-se de chamar a atenção para a força do caso do cliente".

Hillary Clinton adotou o sobrenome do marido depois da derrota dele na tentativa de reeleição em 1980. Ela parou de usar seus óculos de fundo de garrafa no tribunal. E aperfeiçoou um estilo eficiente.

"Não havia movimento em vão", lembrou outro advogado, William Wilson Jr., em um perfil de 1992 sobre Hillary para a revista "The American Lawyer". Ele chamou a abordagem dela de "mais como uma blitzkrieg do que a invasão da Normandia".

Pode não ter sido como ela imaginava que sua carreira se desdobraria, mas a variedade de casos mantinha as coisas interessantes para Hillary, disse outra advogada, Ellen Brantley, que agora é uma juíza aposentada. "Ela gostava, via como algo diferente e extraía o melhor daquilo", disse Brentley.
 

Em 1986, uma amiga perguntou a Hillary Clinton quem era o melhor advogado em Little Rock para cuidar do divórcio de Nancy Snyderman, uma médica e jornalista de televisão. "Sou eu", respondeu Hillary.

Ela acabou não apenas cuidando do divórcio, mas também ajudando Snyderman a adotar uma menina que nasceu na miséria. Snyderman se lembrou dos esforços de Hillary para ajudá-la, assim como sua luta pelos direitos da mãe biológica da menina, que era doente e tinha apenas 15 anos.

"Eu a vi deixar de lado a amizade e se tornar uma advogada", disse Snyderman, cuja filha, Kate, agora tem 30 anos. "Hillary disse que a lei de família partia seu coração."

"The National Law Journal" nomeou Hillary Clinton entre os advogados mais influentes do país em 1988 e 1991, mas devido ao fato de ser a primeira-dama de Arkansas e realizar trabalho sem fins lucrativos, era ela quem acumulava menos horas remuneradas dentre os sócios do Rose.

Ao representar a Maybelline, que tinha aberto uma fábrica em Little Rock, ela persuadiu um juiz a permitir que ela fosse a primeira advogada do Arkansas a inquirir um perito por vídeo via satélite.

Ela também defendeu empresas acusadas de prejudicar clientes ou comunidades.

Em 1977, ela representou uma companhia elétrica do Arkansas, a First Electric Cooperative, em um caso contra o Acorn, uma organização de comunidades de baixa renda.

A Acorn pedia pela colocação em plebiscito de uma iniciativa para redução das tarifas elétricas para clientes residenciais, especialmente os pobres, compensada por um aumento das tarifas para empresas. Hillary escreveu o argumento vencedor enquanto comia uma pizza na madrugada, argumentando que a medida afugentaria as empresas do Estado.

"Nós odiávamos vê-la do outro lado", disse Wade Rathke, fundador da Acorn.

Mesmo assim, o trabalho para empresas não estimulava Hillary, disseram seus amigos. O que a estimulava era cuidar das disputas familiares.

Ela representou um casal de El Dorado, Arkansas, que queria adotar uma criança que criaram por dois anos e que processou o Departamento de Serviços Humanos de Arkansas, em um momento inoportuno para Hillary, cujo marido era na época o procurador-geral do Estado.

Para romper o contrato dos pais com o Estado, ela pediu que um psiquiatra testemunhasse que o bem-estar da criança dependia daquilo.

Ela também representou um homem de Connecticut que buscava a custódia de sua filha de 6 anos, apesar das objeções da mãe. Thomas A. Mars, outro advogado do Rose na época, assistiu ao argumento de encerramento de Hillary, quando ela explicou por que a mãe era incapaz. "Foi de encher os olhos de lágrimas", ele disse.

A carreira dela como advogada no Arkansas provocou muitos anos dolorosos de investigações politicamente motivadas durante a presidência de seu marido. Mas também ajudou a prepará-la para buscar sua própria.

Sua habilidade de camuflar uma crítica contundente por trás de um sorriso cordial marcou Morgan E. Welch, um advogado que já a enfrentou mais de uma vez. Ele se recorda de Hillary como "uma pessoa muito agradável".

Ele também se recorda de outra coisa: "Ela me desmontou como se eu fosse um relógio de brinquedo".

* Kitty Bennett e Steve Barnes contribuíram com pesquisa

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