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Mulheres se isolam para estudar o budismo na "maior favela de monjas do mundo"

Monge observa a Yarchen Gar, uma das maiores comunidades de monjas do mundo, em Sichuan, China - Gilles Sabrie/The New York Times
Monge observa a Yarchen Gar, uma das maiores comunidades de monjas do mundo, em Sichuan, China Imagem: Gilles Sabrie/The New York Times

Edward Wong

15/11/2016 06h00

Até mesmo para os padrões das fenomenais vistas do Tibete, ela é algo extraordinário no elevado planalto: milhares de casas em ruínas agrupadas em uma península remota na curva de um rio, cada uma delas abrigando uma monja que veio para estudar o budismo tibetano.

Nessas casas apertadas, muitas delas construídas pelos residentes, as monjas rezam, meditam e dormem. Na margem oeste do rio, mais elevada, ficam as casas dos monges. Estreitas pontes de madeira conectam as duas áreas.

Os residentes estimam que existam 10 mil pessoas aqui em Yarchen Gar, quase todos tibetanos com alguns Han, a etnia dominante na China. Com uma vasta maioria de mulheres, esta é uma das maiores comunidades de monjas do mundo, e certamente a maior favela de monjas.

Embora não conste em nenhum mapa, eu visitei Yarchen Gar em uma viagem de duas semanas pela região de Kham, no Tibete, em outubro. O Exército chinês invadiu Kham em 1950, e a área agora fica na parte ocidental da província de Sichuan.

NYT -  Barraco em construção em Yarchen Gar - Gilles Sabrie/The New York Times - Gilles Sabrie/The New York Times
Barraco em construção em Yarchen Gar
Imagem: Gilles Sabrie/The New York Times

Assim como boa parte da região, Yarchen Gar fica a 4.000 metros de altitude. Os invernos são rigorosos aqui, mas em outubro os dias ainda eram quentes. Era possível ver monjas fazendo piquenique em uma colina que domina o assentamento.

No topo da colina há uma estátua dourada de Padmasambhaya, também conhecida como Guru Rinpoche, um mestre budista indiano que introduziu o budismo tântrico no Tibete no século 8. Ao norte, oito estupas brancas e um muro marcam um sepultamento celestial ao longe, onde corpos humanos são cortados em um ritual funerário e os abutres fazem um banquete com os restos.

Pequenas celas de meditação feitas de finas tábuas ou de plástico pontuavam o lado sul da colina com a estátua. Elas eram ainda menores do que as casas abaixo, com espaço suficiente para somente uma pessoa sentada. Algumas tinham janelas de vidro com vista para o enclave à margem do rio, e outras eram escuras, sem janelas.

No assentamento conheci uma jovem monja de Lhasa, a capital tibetana, que girava uma roda de oração com uma das mãos.

"Vim aqui para aprender", disse a monja, cujo nome não será revelado porque oficiais de segurança chineses prendem tibetanos comuns que falem com jornalistas estrangeiros.

Ela contou que está aqui há dois anos. Ela falava um pouco de inglês e estava ansiosa para praticar, tendo estudado a língua em Lhasa. Assim como todas as monjas e monges do Tibete, ela usava uma túnica cor de carmim.

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Barracos em Yarchen Gar; New York Times chamou o local de "a maior favela de monjas"
Imagem: Gilles Sabrie/The New York Times

Este é o segundo maior "gar", que significa acampamento monástico em tibetano. O maior de todos, Larung Gar, em um vale ao nordeste, tem mais monges do que monjas. Agora há trabalhadores demolindo casas individuais ali, sob ordens de autoridades chinesas. Alguns membros do clero estão sendo forçados a irem embora.

Esse tipo de destruição não está ocorrendo em Yarchen Gar. As monjas não mencionaram nada do tipo, embora oficiais de fato tenham ordenado a demolição de algumas partes em 2001. Eu vi mulheres carregando pranchas de madeira e molduras brancas de janelas para construir ou reformar casas. Ocasionalmente ouvia-se o som de marteladas.

"Yarchen é muito impressionante, uma ilha coberta de celas", disse Katia Buffetrille, uma antropóloga e acadêmica tibetana na École Pratique des Hautes Études de Paris, que visitou Yarchen Gar em julho. "Fiquei surpresa com o tamanho, eu nunca havia estado lá antes."

"As monjas com quem falei, entre elas uma monja de Ganze que já estava lá há sete anos, estavam muito felizes de estarem ali", ela acrescentou. "As celas que você vê na colina são um indicativo da profunda fé que essas monjas têm: elas meditam nessas celas, onde deve ser muito quente no verão e incrivelmente frio no inverno."

Alguns ocidentais podem chamar o assentamento de favela. As casas são um patchwork de tábuas e finas chapas de metal, com lonas de plástico cobrindo cá e lá uma parte do telhado ou da parede. Entre elas se veem caminhos estreitos, e dependendo do vento o ar pode se encher do cheiro de um esgoto parado.

As casas não possuem água corrente. Os residentes fazem fila segurando galões de plástico para usar torneiras públicas à beira do assentamento. Eles trazem roupas para lavar nessas torneiras também.

O monastério no coração de Yarchen Gar, que também se escreve Yachen Gar, foi fundado em 1985 por Achuk Rinpoche, que seguia a escola Nyingma do budismo tibetano. O foco do monastério era a meditação.

No começo, havia somente uma dezena de discípulos, mas o número cresceu à medida que a fama dos ensinamentos do rinpoche foi se espalhando. Com o tempo, aqueles que administravam o monastério decidiram separar monges e monjas e mandou cada grupo viver em lados separados do rio.

NYT Monjas budistas compartilham uma refeição comunitária em Yarchen Gar - Gilles Sabrie/The New York Times - Gilles Sabrie/The New York Times
Monjas compartilham uma refeição comunitária em Yarchen Gar
Imagem: Gilles Sabrie/The New York Times

Achuk Rinpoche morreu em 2011. O bastão da liderança foi passado para outro homem, Asang Tulku, que seria a reencarnação de um outro líder religioso do passado.

Os homens não têm permissão para entrar no centro do enclave das monjas. Em uma tarde, um trabalhador que trazia para a área sacos de esterco de iaque, que os residentes usam como combustível, teve de descarregar os sacos no começo de uma rua principal que divide o enclave em duas partes. As monjas pegaram um saco cada uma.

Qualquer um pode se movimentar livremente à beira do assentamento, onde há lojas de conveniência tocadas por monjas. Uma das lojas tinha rolos de plástico fino com estampas que servem como forro para o chão. Ali perto, um restaurante austero trazia grandes cestos de metal a vapor com pão e pasteis vegetarianos do lado de fora. As pessoas aqui não comem carne.

Dentro de um grande templo branco, várias monjas sentadas em um salão cavernoso no primeiro andar faziam esculturas em manteiga de iaque, a serem usadas em uma cerimônia. Às 15h30, muitas monjas saíram do templo depois de descerem do segundo andar. Quinze minutos depois, várias monjas entraram e subiram para salas nesse andar, e então se sentaram para comer.

NYT - Estátua dourada de Padmasambhava, o guru rinpoche, localizado perto de Yarchen Gar - Gilles Sabrie/The New York Times - Gilles Sabrie/The New York Times
Estátua dourada de Padmasambhava, o guru rinpoche, localizado perto de Yarchen Gar
Imagem: Gilles Sabrie/The New York Times

Em um amplo gramado ali perto, dezenas de monjas rezavam sentadas em um pequeno santuário branco.

Na margem oeste, monges iam se juntando. Em um templo, vários deles ouviam um professor sentados no chão. Alguns nômades ouviam do lado de fora.

Entramos de carro em Yarchen Gar vindos do noroeste, descendo primeiro até as planícies a partir de um desfiladeiro, e depois atravessando o vilarejo de Acha. Ao longe se via uma longa cordilheira coberta de neve. Ao cair do Sol, continuamos na direção dessas montanhas, atravessando colinas marrons com iaques pastando e tendas nômades feitas de lã preta e lona branca.

Subimos em direção a outro desfiladeiro, deixando para trás o mundo desses que se dedicam à reza e à meditação.