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Tirania de código de vestimenta torna invisíveis as mulheres sob domínio do EI

Com o corpo todo coberto, iraquiana segue para campo de refugiados depois de escapar de Mossul - AFP PHOTO / Odd ANDERSEN
Com o corpo todo coberto, iraquiana segue para campo de refugiados depois de escapar de Mossul Imagem: AFP PHOTO / Odd ANDERSEN

Rukmini Callimachi*

Campo de Khazer (Iraque)

12/12/2016 16h37

Quando os jihadistas terminaram suas imposições, nem mesmo os olhos de uma mulher eram legais. Mostrá-los era desacato passível de punição.

O código de vestimenta imposto às mulheres de Mossul começou logo depois que o Estado Islâmico invadiu a cidade, mais de dois anos atrás. Ele foi sendo imposto gradualmente, até que cada parte do corpo feminino fosse apagada, a começar pelo rosto, e depois o resto do corpo, incluindo as mãos, que tinham de ser cobertas com luvas, bem como os pés, que tinham de ser escondidos por meias. E terminou com um anúncio feito através de alto-falantes, mandando as mulheres usarem uma tela de tecido preto sobre os olhos.

Halima Ali Beder, 39, disse que foi com indignação que fez cada novo acréscimo a seu guarda-roupa, começando com o niqab para cobrir seu rosto e a abaya, também conhecida como jilbab, um vestido largo. No entanto, ela ainda quebrou as regras cada vez mais rígidas do Estado Islâmico quando ela pôs os pés para fora de casa, pensando em passar na casa de sua vizinha.

“Eu vesti tudo: o niqab, a abaya, as luvas e as meias. Só me esqueci de cobrir os olhos”, disse Beder, uma das doze mulheres dos bairros recém-libertados da cidade que contaram suas experiências em entrevistas no campo de refugiados de Khazer, a cerca de 72 km de Mossul, no norte do Iraque.

Beder havia dado somente alguns passos quando a polícia da moralidade a viu, e policiais começaram a gritar com ela e a repreendê-la. “Eles disseram: ‘Onde está seu marido? Ele aceita que praticamente qualquer um possa ver seu rosto?’ Eu disse: ‘Mas eu não estava mostrando meu rosto. Só os olhos!’”

Mais de 2 milhões de pessoas viviam em Mossul quando a cidade foi tomada pelo Estado Islâmico no dia 10 de junho de 2014. Essa era uma cidade conservadora, onde a maioria das mulheres já cobriam os cabelos com um lenço e os braços com mangas compridas. Mas assim como em outros lugares onde os militantes impuseram seu credo, as novas regras levaram o recato obrigatório a tal extremo que irritou as famílias em Mossul, que descrevem como logo começaram a se sentir sufocadas.

Três dias depois de tomarem a cidade, os militantes começaram a passar de casa em casa para distribuir a “Lei da Cidade”, explicando como eles planejavam governar, de acordo com um estudo feito pela pesquisadora Rasha al-Aqeedi, nativa de Mossul e hoje membro do Centro de Estudos e Pesquisas de Al Mesbar, em Dubai.

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“Para as mulheres de virtude”, diz a lei, “em recato e de jilbab largo, fiquem em suas casas e só saiam em casos de necessidade.”

Em todo o território controlado pelo Estado Islâmico, foram colocados outdoors mostrando a foto de uma mulher parecida com uma silhueta preta, totalmente coberta por roupas. Eles apresentavam o novo visual em sete itens, incluindo a orientação de que o vestido de uma mulher deve ser “grosso e não revelar o que há por baixo” e não deve “chamar a atenção.” 

Durante pelo menos um mês não se cobrou a obediência às novas regras. Então, no final de julho, milhares de conjuntos de niqab foram distribuídos para as lojas. O primeiro de vários decretos foi emitido, ordenando que as mulheres usassem o niqab, além de luvas. Por volta da mesma época, os moradores começaram a ver veículos pintados com o logo da polícia da moralidade do Estado Islâmico, conta Al Aqeedi.

Em frente à universidade, eles inauguraram a sede da polícia, conhecida como Diwan al-Hisba. Seus agentes se espalharam pela cidade, carregando livros de citações numeradas.

Quando a polícia pegava uma mulher fora do código de vestimenta, eles emitiam uma notificação e apreendiam a identidade de seu marido. Ele teria então de comparecer a uma audiência perante um juiz. De acordo com a infração, seria obrigado a pagar uma multa, do contrário ele ou sua mulher seriam condenados a chibatadas, segundo foragidos recentes.

Quando a polícia islâmica invadiu a casa de Beder, eles pediram a identidade de seu marido. Quando ele compareceu à delegacia, foi obrigado a pagar uma multa de 50 mil dinares (cerca de R$ 135), uma porção considerável da renda mensal da família.

As mulheres dizem que os vigilantes se multiplicavam a cada mês, até que os moradores passaram a ter a impressão de que a polícia da moralidade era onipresente. Os policiais ficavam perambulando perto de lojas e ao lado de barracas de feira. Uma mulher, Zeena Mohamed, 27, descreve como ela levantou a tela sobre seus olhos só o suficiente para ver o vestido cor de creme que ela estava considerando comprar. Ela diz que não conseguia ter certeza do tom dele através da tela preta.

Ela imediatamente ouviu um homem gritando, e ao se virar viu o policial, que a expulsou da loja.

Outras mulheres descrevem não ter certeza de se os lojistas lhes davam o troco certo, por terem medo de levantar o véu para conferir. Elas contam que tropeçar e até cair passou a ser comum.

Em áreas inteiras controladas pelo grupo terrorista no Iraque, bem como na Síria e na Líbia, a Al-Hisba do Estado Islâmico se tornou uma burocracia da virtude, com suas delegacias se enchendo de arquivos com os comprovantes das diversas autuações emitidas por ela. Ela iniciou processos para uma lista de infrações, multando e açoitando homens por comprimento errado de barba, por não rezarem nas horas autorizadas, por posse de cigarro e álcool e por uma longa lista de outras supostas falhas morais.

Em papeis timbrados com a bandeira preta do grupo, o Estado Islâmico emitiu fatwas detalhando cada nova restrição e resumindo as penalidades, de acordo com documentos obtidos pelo pesquisador Aymenn Jawad al-Tamimi, que concordou em compartilhar vários exemplos não publicados com o “The New York Times”. Outra fatwa discutia a cor apropriada que as mulheres deveriam usar, concluindo que o vermelho era ilegal. Outra ressaltava a importância de se cobrir o rosto inteiro “porque é o lugar da atração e da tentação.”

Uma mulher foi parada porque sua meia tinha um furo, revelando a pele de seu tornozelo. Uma secretária de meia idade conta como as luvas atrapalham para segurar uma caneta, que ficava escorregando. Quando ela tentou tirar a luva da mão com a qual escreve, ela foi vista e ameaçada.

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Como o código de vestimenta se aplicava ao que as mulheres deveriam usar em público, Wafa, uma mulher de 39 anos, não se preocupava em se trajar segundo ele quando ia assar pão no forno de barro dentro da residência de sua família.

Embora a residência seja cercada por um muro, este era baixo o suficiente para as pessoas conseguirem olhar, e foi assim que a Al-Hisba a viu. Os policiais imediatamente vieram pedir a identidade de seu marido.

“Eu disse a eles que se estiverem pretendendo começar a interferir mesmo dentro de nossas casas, então eles precisavam a começar a nos trazer gás propano e comida e outras coisas de que precisamos, para que não precisemos sair”, ela diz. “Eles estavam nos fazendo viver como na Idade da Pedra.”

Eles a liberaram com uma advertência, mas na vez seguinte ela seria punida. Wafa, que pediu para que somente seu primeiro nome fosse citado, disse que ela estava em um piquenique com seus filhos quando levantou o khimar, o tecido sobre seu rosto, só o suficiente para colocar a colher na boca, quando percebeu o carro preto com logo verde da polícia da moralidade.

Dessa vez eles confiscaram a identidade de seu marido e lhe deram uma notificação de comparecimento. De acordo com a notificação, de número 4715, o motivo da detenção foi: “Mulher fora de casa sem khimar.”

Então eles levaram Wafa até a delegacia, onde um juiz de barba longa escreveu em um papel seu castigo: 21 chibatadas.

“Tentei protestar, explicar. Como vou comer sem levantar o khimar? Mas eles não me ouviram”, ela disse. Eles a levaram até uma sala onde uma mulher síria ordenou que ela se ajoelhasse. Na mão da mulher havia um cabo com pregos de metal na ponta.

“A dor que senti era indescritível”, disse Wafa. “Eu gritava, chorava, implorava, recitando orações.”

Com as costas retalhadas, ela passou duas noites em um hospital e durante semanas ela conta que só conseguiu dormir de bruços. 

Com o tempo ficou claro que o objetivo das regras era manter as mulheres enclausuradas dentro de casa. “Esse era todo o objetivo. A essência de sua jurisprudência islâmica é fazer as mulheres se apagarem, torná-las invisíveis”, diz Aqeedi. Ela deu o exemplo de uma mulher com quem mantém contato e que ainda está em Mossul, e que não sai de casa há mais de dois anos.

Algumas delas tentaram se rebelar. Mohamed diz ter sido uma delas, sempre retrucando à polícia da moralidade, um relato confirmado por sua mãe e irmãs.

Pouco antes de seu bairro ser libertado, Zeena Mohamed e sua irmã Mona foram até uma loja que vendia roupas de baixo femininas. Entre as clientes estavam duas mulheres de combatentes do Estado Islâmico, “e elas estavam comprando as lingeries mais ousadas de toda a loja”, disse Zeena.

Quando as irmãs saíram da loja, elas passaram pelos dois maridos do Estado Islâmico, que estavam à toa no corredor do lado de fora da loja. Um deles viu que Zeena havia se esquecido de cobrir os olhos de volta com a tela e começou a repreendê-la em voz alta.

“Sua mulher está lá em cima comprando calcinhas sexy”, ela teria lhe dito, “e você está preocupado comigo mostrando meus olhos?”

* Com contribuição de Sarah Mustafa.