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Análise: "Ilhas de honestidade" podem esmagar a corrupção

20.nov.2016 - Manifestantes fazem protesto em favor de medidas contra a corrupção em frente ao Congresso Nacional - Pedro Ladeira/Folhapress
20.nov.2016 - Manifestantes fazem protesto em favor de medidas contra a corrupção em frente ao Congresso Nacional Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Amanda Taub

13/12/2016 06h00

Há mais de um ano um mistério mundial vem ganhando corpo: por que tantos governos do mundo todo estão caindo em meio a escândalos de corrupção?

A atenção se concentra na Coreia do Sul, cujo Parlamento votou na sexta-feira (9) o afastamento da presidente Park Geun-hye. As denúncias contra Park são várias: uma assessora misteriosa, Choi Soon-sil, é suspeita de ter influenciado secretamente os discursos públicos e a tomada de decisões de Park, enquanto extorquia milhões de grandes companhias.

Fora os detalhes, porém, a história já é conhecida: um escândalo de corrupção abala um país, alcançando os níveis mais altos do governo e provocando uma crise política. Foi uma história comum nos últimos anos. No Brasil, por exemplo, o escândalo que veio à tona pela Operação Lava Jato envolveu grande parte da classe governante e levou indiretamente ao impeachment da presidente Dilma Rousseff em agosto. A África do Sul parece rumar na mesma direção, depois que se revelou que o presidente Jacob Zuma desviou verbas públicas, provocando pedidos de sua demissão. Em 2015, o governo da Guatemala caiu depois que investigadores da ONU disseram que o presidente Otto Pérez Molina e sua vice-presidente, Roxana Baldetti, estavam envolvidos em um esquema de propinas. E na Argentina a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner e quatro autoridades de seu partido foram indiciadas em agosto por acusações de corrupção.

A cavalgada de escândalos pode fazer parecer que os políticos do mundo de repente ficaram mais gananciosos como um todo.

Mas concentrar-se em erros individuais é enganoso, disse Raymond Fisman, um professor de economia comportamental na Universidade de Boston que estuda a corrupção sistêmica, que ocorre quando a corrupção é tão generalizada e grave que se torna parte integral da vida econômica e política de um país. Quando a corrupção sistêmica se instala, explicou ele, pode rapidamente infectar todo um sistema, incentivando ou até obrigando ao mau comportamento, mesmo aqueles que em outro contexto permaneceriam honestos.

Vistos por essa lente, dizem os especialistas, os escândalos recentes podem ser, com certa cautela, uma boa notícia. Eles mostram que os promotores e outras instituições conseguiram se libertar desses sistemas e exigem prestação de contas de seus líderes --com o apoio avassalador do público, quando isso acontece.

Parlamento aprova impeachment da presidente da Coreia do Sul

AFP

Equilíbrio perigoso

Fisman afirma que a maneira mais precisa de pensar na corrupção é como um "equilíbrio" --o resultado de pessoas que agem racionalmente em um sistema defeituoso, não apenas lapsos morais de indivíduos.

A análise do custo-benefício de se pagar uma propina, explicou ele, "depende de quantas pessoas ao meu redor eu acho que também estão envolvidas em corrupção".

Se a maioria das pessoas é honesta, disse ele, pagar uma propina é um comportamento arriscado. Há relativamente poucas pessoas interessadas em aceitar uma, e muitas dispostas a denunciar a propina às autoridades. Nesse cenário, o equilíbrio favorece a negociação honesta.

Mas "se todo mundo ao seu redor está pagando propinas, o custo-benefício muda de lado", continuou Fisman. "Conforme cresce o número de pessoas que participam da corrupção, maior a capacidade de uma pessoa encontrar parceiros de crime. E os benefícios de permanecer honesto diminuem, porque todo mundo está passando na sua frente na fila ou conseguindo contratos que talvez você pudesse ganhar honestamente".

Um novo equilíbrio se instalará, favorecendo os negócios desonestos.

Esse tipo de equilíbrio corrupto é o pano de fundo do escândalo na Coreia do Sul. Embora as idiossincrasias das acusações contra Park tenham chamado a atenção global, o caso é apenas o último de uma série de grandes escândalos de corrupção que surgiram no país.

Em 2014, depois do acidente com o ferry-boat da Sewol que matou 302 pessoas, incluindo 250 estudantes colegiais, uma investigação revelou que o dono da empresa tinha feito tratativas com autoridades do governo para evitar as verificações de segurança. Em janeiro, o primeiro-ministro Lee Wan-koo se demitiu em um escândalo de propinas. E também houve escândalos envolvendo as grandes empresas familiares (chaebols) que detêm poder considerável na Coreia do Sul.

Na verdade, durante sua campanha e sua Presidência, Park havia se apresentado como alguém capaz de enfrentar esse sistema corrupto. Solteira e sem filhos, ela salientou a falta de uma família próxima como uma vantagem de sua Presidência, porque tantos escândalos anteriores haviam envolvido o desvio de bens para filhos ou cônjuges. Depois do desastre da Sewol, Park prometeu atacar as "camadas de corrupção" que haviam contribuído para ele.

Mas agora parece que Choi se aproveitou do isolamento da presidente para adquirir influência sobre ela e explorar essa conexão para obter benefícios financeiros e outros. Em vez de combater as camadas de corrupção do país, a presidente hoje parece muito inclinada e deixar o cargo em desgraça, manchada por elas.

No Brasil, o impeachment de Rousseff atraiu grande atenção global para a crise de corrupção no país, mas o escândalo envolveu uma grande parte da elite política e econômica local. Dezenas de empresários privados foram indiciados ou julgados por desvio de fundos da companhia estatal de petróleo, Petrobras. E pelo menos 50 legisladores brasileiros estão sob investigação.

Imagem representativa para matérias sobre corrupção - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

"Ilhas de honestidade"

Quando um equilíbrio corrupto se instala, dizem os especialistas, ele não pode ser contido até que se restabeleça a confiança do público nas instituições e nos líderes do governo. É por isso que as investigações que levaram aos escândalos na Coreia do Sul, no Brasil e em outros lugares são tão importantes.

"Quando Ray e eu dizemos que a corrupção é um equilíbrio, significa realmente que as instituições só são fortes quando você acredita nelas", disse Miriam Golden, uma cientista política na Universidade da Califórnia em Los Angeles, que escreveu com Fisman um novo livro sobre a corrupção. "Não quero dizer que nossas instituições só existem em nossas mentes, mas de fato isso é verdade. O que é o Estado de direito, exceto que em última instância acreditamos que devemos seguir certas regras?"

Em sistemas corruptos, entretanto, essa crença muitas vezes não existe, porque as instituições que deveriam fazer a prestação de contas muitas vezes são enfraquecidas pelas propinas, ameaças e outros meios ilícitos.

"As instituições normais da justiça --os tribunais, os promotores, auditores, ombudsman, etc.-- estão de tal forma corrompidas que você pode roubar impunemente", disse Matthew C. Stephenson, professor na faculdade de direito de Harvard que estuda a corrupção. Isso abala a confiança pública e reforça a percepção de que a corrupção é universal e inevitável.

Os meios de repressão aos abusos públicos podem ser enfraquecidos do mesmo modo, acrescentou ele.

"Se o processo eleitoral é suficientemente corrupto que você pode comprar votos ou manipulá-lo de alguma forma, então você realmente não se preocupa que sua corrupção represente uma ameaça eleitoral", disse.

Essa é a situação em países como Rússia, disse Christoph Stefes, professor de ciência política na Universidade do Colorado em Denver, que estuda autoritarismo e democratização. Na Rússia, o controle do poder político e da corrupção se concentra em um pequeno grupo de políticos e nos oligarcas em seu círculo estreito, e nenhuma instituição ou promotor tem poder suficiente para contestá-los.

Mas quando os promotores ou outras autoridades adquirem independência suficiente para investigar autoridades corruptas isso pode começar a perturbar o equilíbrio corrupto.

"Chamo a isso de 'ilhas de honestidade'", disse Stefes. Tais investigações não são suficientes por si sós para erradicar a corrupção, disse ele. "Mas certamente podem fazer uma diferença assim que comecem a se disseminar, especialmente quando podem se conectar com a sociedade civil."

Esse tipo de conexão está no centro de muitas das principais histórias de corrupção dos últimos anos. Na Coreia do Sul, os promotores não apenas investigaram Choi, como também interrogaram Park --a primeira vez que uma presidente em exercício foi submetida a esse tipo de investigação. E esta foi reforçada pelo enorme apoio público, que incluiu os maiores protestos na história do país.

Na Guatemala, uma comissão especial da ONU operando fora do sistema judicial comum conduziu a investigação que envolveu o então presidente Otto Pérez Molina e a vice-presidente Roxana Baldetti em uma grande fraude alfandegária. As provas da comissão provocaram grandes protestos públicos e a dupla acabou renunciando.

Na África do Sul, o ombudsman público Thulisile Madonsela determinou que Zuma tinha desviado verbas públicas para reformar sua residência particular. O tribunal constitucional do país decidiu que suas conclusões e demandas eram reais e hoje Zuma enfrenta um inquérito público e uma crescente pressão para que renuncie.

E que dizer dos EUA, cujo presidente eleito, Donald Trump, sofreu críticas recentemente por aparentemente misturar negócios pessoais e públicos? Até pouco tempo atrás, os especialistas acreditavam que fortes instalações típicas de democracias ricas e desenvolvidas fossem uma proteção robusta contra a corrupção sistêmica.

"Eu sempre disse que não estudo os EUA porque não são interessantes", disse Golden durante uma entrevista recente. "Simplesmente não são tão corruptos."

Mas desde a eleição de Trump, segundo ela, a coisa mudou.

Trump não parece aceitar a divisão padrão entre público e privado, disse Golden, referindo-se à decisão de Trump de dar a direção de seus negócios a seus filhos, em vez de colocar seus bens em um fundo patrimonial, e sua aparente mistura de reuniões de negócios com decisões governamentais durante o período de transição.

No entanto, a reação do público e do Partido Republicano foi muda.

"Essas proteções já não estão funcionando", disse Golden. "A questão é até que ponto elas poderão degenerar."