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Suspeitos pela morte de Kim Jong-nam se protegem na embaixada norte-coreana

Policiais malaios passam diante da Embaixada da Coreia do Norte, em Kuala Lumpur - Athit Perawongmetha/ Reuters
Policiais malaios passam diante da Embaixada da Coreia do Norte, em Kuala Lumpur Imagem: Athit Perawongmetha/ Reuters

Richard C. Paddock

Em Kuala Lumpur (Malásia)

02/03/2017 10h40

Há anos a Coreia do Norte goza de liberdade para que seus cidadãos visitem, trabalhem e vivam na Malásia, um raro privilégio para um país considerado fora da lei pela maior parte do mundo.

Agora essa liberdade está ameaçada, com a embaixada norte-coreana em um subúrbio de Kuala Lumpur, a capital malaia, no centro de uma investigação de assassinato que está perturbando o cálido relacionamento entre os dois países.

Dois norte-coreanos acusados de participar em 13 de fevereiro do assassinato de Kim Jong-nam, o meio-irmão do líder norte-coreano, Kim Jong-un, refugiaram-se na embaixada e se recusam a cooperar com a polícia. Sua posição apresenta às autoridades malaias um enorme desafio, enquanto elas tentam desvendar um caso com grandes ramificações internacionais.

Um dos homens, Hyon Kwang Song, é um funcionário de alto nível na embaixada que alega imunidade diplomática e, em consequência, é intocável pela polícia. O outro, Kim Uk Il, um empregado da companhia aérea estatal, Air Koryo, está a salvo de prisão enquanto permanecer na embaixada.

Autoridades da inteligência sul-coreana disseram na segunda-feira (27) que Hyon trabalhou para o Ministério da Segurança de Estado da Coreia do Norte, a polícia secreta do país.

"A embaixada é considerada território soberano do país envolvido, por isso as autoridades não podem entrar sem permissão", disse Sivananthan Nithyanantham, um advogado malaio que trabalhou no Tribunal Penal Internacional em Haia, na Holanda. "Fazer isso seria como entrar em solo estrangeiro sem autorização, um sério rompimento do protocolo diplomático."

A Convenção de Viena de 1961 dá aos diplomatas e às embaixadas uma situação especial de proteção para salvaguardar a condução dos assuntos internacionais. Mas ao longo dos anos houve vários casos de destaque de diplomatas e cidadãos que tentaram usar essas proteções para evitar processos por sérios crimes não diplomáticos.

Durante um tenso impasse com os EUA, o general Manuel Antonio Noriega, ex-ditador do Panamá, refugiou-se na embaixada de fato do Vaticano na Cidade do Panamá em 1989 para evitar a captura por tropas dos EUA que tentavam prendê-lo. Ele foi obrigado a sair após dez dias, quando o Vaticano não aceitou lhe dar asilo.

E o ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) Dominique Strauss-Kahn tentou sem sucesso invocar a imunidade diplomática para evitar um processo pelo ataque sexual a uma empregada de hotel em Nova York em 2011. Mas sua alegação de imunidade foi recusada por um juiz estadual de Nova York porque Strauss-Kahn já tinha deixado o cargo antes do início do processo.

Um dos mais conhecidos solicitantes de asilo diplomático é Julian Assange, o fundador do WikiLeaks que está há cinco anos escondido na Embaixada do Equador em Londres para evitar a extradição para a Suécia, onde é acusado de estupro. Embora ele não seja um diplomata, o Equador lhe concedeu asilo e permitiu que ficasse na embaixada.

Como Assange, Kim Uk Il, o empregado da companhia aérea norte-coreana, é vulnerável à prisão se sair do terreno da embaixada --ou, em seu caso, se as relações amargarem a ponto de a Malásia e a Coreia do Norte cortarem os laços diplomáticos e a embaixada fechar.

Os serviços de inteligência, incluindo a CIA, destacam habitualmente agentes para trabalhar em embaixadas estrangeiras disfarçados de diplomatas, principalmente devido às proteções da imunidade diplomática. Os governos às vezes expulsam esses agentes quando a espionagem é descoberta. Mas é raro que alguém trabalhando sob disfarce diplomático seja ligado a um assassinato e que um governo busque sua prisão.

A polícia diz que Kim Jong-nam foi assassinado por duas mulheres que esfregaram o agente nervoso VX em seu rosto. Siti Aisyah, 25, da Indonésia, e Doan Thi Huong, 28, do Vietnã, foram acusadas na quarta-feira (1) pelo assassinato de Kim. Elas disseram que pensaram estar participando de uma brincadeira inocente.

A Coreia do Sul acusou o governo norte-coreano pelo assassinato de Kim, e a polícia da Malásia identificou oito homens norte-coreanos, incluindo Hyon, um segundo-secretário da embaixada, e Kim Uk Il, como participantes da trama.

A Coreia do Norte disse na quarta-feira que a conclusão de que Kim foi morto por agente nervoso VX é "o máximo do absurdo" porque esse veneno é tão poderoso que teria matado mais pessoas.

O envenenamento no meio do movimentado aeroporto internacional de Kuala Lumpur levou alguns malaios a pedir uma análise da função de seu país ao ajudar a Coreia do Norte a conectar-se com o mundo exterior --e a questionar se o Norte deve ter permissão para ter uma embaixada na Malásia.

Dennis Ignatius, um ex-embaixador malaio em vários países do hemisfério ocidental, chamou as autoridades malaias de "ingênuas e crédulas" ao lidar com a Coreia do Norte, e questionou por que o Estado vilão teve permissão para abrir uma embaixada, para começar.

Ele pediu que o governo --às vezes conhecido pelo mesmo nome que sua localização geográfica, Putrajaya-- rebaixe o nível das relações diplomáticas com a Coreia do Norte. Ele sugeriu expulsar o embaixador norte-coreano, revogar os vistos de norte-coreanos que trabalham na Malásia e fechar a embaixada malaia em Pyongyang, a capital da Coreia do Norte. A Malásia já chamou de volta seu embaixador, para consulta.

"A verdadeira pergunta é por que Putrajaya permitiu que a Coreia do Norte transformasse a Malásia em uma de suas bases de operação mais importantes na região, de onde realiza atividades clandestinas, escapa às sanções da ONU e se envolve em todo tipo de empreendimento ilícito para obter divisas para o regime", escreveu ele em um blog nesta semana.

Sob a Convenção de Viena, os países podem declarar um diplomata estrangeiro "persona non grata". A Malásia estaria considerando essa designação para Hyon e seu superior, o embaixador Kang Chol, que emitiu uma declaração em tons fortes na semana passada, acusando a Malásia de conluio com a Coreia do Sul no caso de Kim.

Tanto a Malásia quanto a Coreia do Norte assinaram o Tratado de Viena, que permite que um país cancele a imunidade de seus próprios diplomatas.

Isso acontece raramente. A Malásia cancelou a imunidade no caso de seu adido militar Muhammad Rizalman bin Ismail, que foi preso na Nova Zelândia em 2014 por suspeita de agressão sexual a uma jovem.

Ele alegou imunidade diplomática e deixou a Nova Zelândia para evitar um processo. Mas diante da natureza das acusações a Malásia revogou sua imunidade e o devolveu para enfrentar julgamento na Nova Zelândia, onde ele se declarou culpado.

Em outro caso incomum, em 1997, o presidente Eduard Shevardnaze, da Geórgia, revogou a imunidade de Gueorgui Makharadze, um diplomata de alto nível na embaixada em Washington, que foi então julgado e condenado por dirigir embriagado e causar a morte de uma jovem de 16 anos em Maryland.

Em 2011, autoridades americanas afirmaram que Raymond Davis, um subcontratado da CIA que matou dois paquistaneses em uma rua movimentada na cidade de Lahore, tinha direito à imunidade diplomática, alegação rejeitada pelo governo do Paquistão. Ele afinal foi libertado e deixou o país, depois que as famílias das vítimas receberam promessas de milhões de dólares em "dinheiro de sangue".

Em Kuala Lumpur, o governo malaio, que não quis comentar o caso, poderá enfrentar um impasse prolongado com a Coreia do Norte por causa dos dois suspeitos na embaixada.

Cerca de mil norte-coreanos vivem e trabalham na Malásia, onde suas empresas têm o raro acesso aos mercados globais e ao sistema bancário internacional. Os malaios, por sua vez, podem visitar a Coreia do Norte sem visto, mas poucos têm motivos para fazê-lo. Com um relacionamento tão desequilibrado, a Malásia talvez tenha pouco a perder se cortar as relações com a Coreia do Norte, caso esta continue negando à polícia o acesso aos suspeitos.

"Este é certamente um dos países mais sigilosos e excluídos do mundo, e provavelmente por bons motivos", disse Oh Ei Sun, um ex-secretário do primeiro-ministro Najib Razak e professor-adjunto na Escola de Estudos Internacionais S. Rajaratnam, em Cingapura. "Devemos realmente pensar duas vezes sobre deixá-los entrar livremente."