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De volta ao Afeganistão, garoto refugiado tem em papagaio seu único amigo

Bilal Shah, 6, e seu papagaio Toti na nova casa da família, no Afeganistão - im Huylebroek/Norwegian Refugee Council via The New York Times
Bilal Shah, 6, e seu papagaio Toti na nova casa da família, no Afeganistão Imagem: im Huylebroek/Norwegian Refugee Council via The New York Times

Mujib Mashal

Em Beshud (Afeganistão)

13/05/2018 04h00

O caminhão avançava pelas passagens da montanha na escuridão antes do amanhecer, lotado de pertences de uma vida de refugiado acumulados durante 30 anos.

A família Shah foi forçada a sair de um refúgio no Paquistão, que seu patriarca encontrou para ela durante a última guerra, contra os soviéticos. Agora estava voltando ao Afeganistão, um local em meio a uma guerra mais nova e mais longa que fez centenas de milhares partirem.

Ela se agarra a tudo o que pode: latas de roupas, fardos de cobertores, bules e panelas, 11 camas charpai (de cordas), 40 galinhas, dois pombos, uma cabra e mais. As mulheres e crianças, quase duas dúzias somadas, ou viajavam sobre o caminhão ou se misturavam com os pertences na traseira.

Entre eles estava um menino de 6 anos chamado Bilal, que segurava firmemente uma pequena gaiola. Nela estava seu papagaio, Toti, seu único amigo em um país no qual nunca esteve, e sua fuga dos dias solitários no desfiladeiro isolado onde iniciariam suas novas vidas.

A grande família formada por Dawran Shah, o avô de Bilal, está entre os quase 100 mil afegãos sem documentos que foram expulsos do Paquistão no ano passado. Muitos deles foram repatriados à força, mas outros, como os Shah, se cansaram de ser alvos de abuso por policiais.

Na província de Nangarhar, a região rochosa no leste do Afeganistão onde se estabeleceram, uma entre três pessoas é deslocada interna pela guerra ou um refugiado que retornou, segundo a Organização Internacional para as Migrações.

Bilal Shah caminha com amigo por Nangarhar, no Afeganistão - Jim Huylebroek/The New York Times - Jim Huylebroek/The New York Times
Bilal Shah caminha com primo por Nangarhar, no Afeganistão
Imagem: Jim Huylebroek/The New York Times

A nova vizinhança da família é desolada, com apenas algumas poucas casas esparsas em um desfiladeiro na montanha. Quando descarregaram, as mulheres e crianças choraram ao ver sua nova casa, disse Shah. (Muitas das casas foram construídas com a ajuda do Conselho Norueguês para Refugiados. Bilal chamou a atenção do "Times" devido a um fotógrafo que tirou fotos do menino em nome do grupo de ajuda.)

"Nossa casa ali tinha varanda, três quartos e também um quarto de hóspedes", disse Bilal sobre a casa deles no Paquistão. "Aqui temos dois quartos e não tem portas. E temos duas tendas."

Bilal tinha apenas 4 anos quando encontrou Toti, em um país diferente, mais verde, onde a vida parecia abundante.

O avô do menino, Shah, se estabeleceu na área de Hashtnaghar, no noroeste do Paquistão, fugindo de sua casa na província de Kunar não muito depois dos soviéticos invadirem o Afeganistão. Ele cultivava tomates e abobrinhas e, ao longo de 30 anos, formou uma grande família.

O menino acompanhava seu pai, Jamshed, nos campos no dia em que viu o papagaio, empoleirado no galho de um álamo alpino.

"Meu pai sacudiu o galho. Toti caiu e eu o cobri com meu cachecol", lembrou Bilal.

Qual era o tamanho de Toti?

"Era um bebê, desse tamanho", disse Bilal, unindo seus pequenos dedos.

Bilal e Toti passaram a ser inseparáveis: juntos em casa, juntos nos campos, juntos quando Bilal estava brincando com outras crianças.

"Eu tinha 10 amigos, Noor Agha, Khan, Mano", disse Bilal. "A gente construía casas."

Os únicos momentos em que Bilal tira Toti do ombro é para alimentá-lo com grãos e amendoim, ou para colocar a gaiola do pássaro sob sua cama à noite.

Então veio a mudança. Para alguns refugiados, mesmo 30 anos em um lugar não é o bastante para permanecer enraizado em um novo lar.

Por quase duas semanas após se estabelecer em Nangarhar, o pai de Bilal, Jamshed, ainda tentava encontrar trabalho. Mas a cada dia voltava sem nada, exceto mais dívidas.

Certo dia, Jamshed não aguentou mais.

"Tantas dívidas, elas precisam ser pagas. E quando vejo você preocupado dessa forma, não gosto", Shah lembrou de Jamshed ter-lhe dito. "Pai, o senhor me dá permissão?"

Assim, Jamshed se juntou ao Exército e foi enviado para o inquieto sul. Uma guerra que toma cerca de 50 vidas de todos os lados por dia exige sangue novo.

Para Bilal, a vida nova não é fácil. Sua avó morreu de diabete ali. Ele não tinha muitos amigos com os quais brincar. Suas três irmãs são novas, sendo que uma delas, Lalmina, é deficiente devido ao que a família acha que pode ser pólio.

"Tenho medo aqui. Meus amigos não estão aqui, eles ficaram lá", disse Bilal. "Fiquei doente, meus olhos doíam e tive febre. O médico me deu comprimidos."

Mas Bilal tinha Toti. Todo dia, o pássaro ficava em seu ombro enquanto escalavam a montanha atrás da casa nova, e permaneciam ali por horas.

"Toti, Toti", Bilal chamava a ave.

"Toti!" a ave respondia.

Certa noite há dois meses, Bilal colocou Toti na gaiola e, assim como em todas as noites, a deslizou para baixo da cama. Quando acordou, Toti estava imóvel na base da gaiola.

"Eu enviei uma foto para o meu pai pela internet. Eu disse: 'Toti morreu'", disse Bilal. "Ele disse: 'Quando eu voltar para casa, comprarei outro'."

É difícil saber o que aconteceu com Toti. O avô de Bilal disse que foi a mudança de clima no Afeganistão, o mesmo motivo dado para as mortes dos dois pombos e 40 galinhas.

"As gaiolas estão vazias", disse Shah.

Bilal Shah ao lado de gaiola vazia na nova casa da família, no Afeganistão - Jim Huylebroek/The New York Times - Jim Huylebroek/The New York Times
Bilal Shah ao lado de gaiola vazia na nova casa da família, no Afeganistão
Imagem: Jim Huylebroek/The New York Times

A morte de Toti devastou Bilal. Ele perdeu o amigo que ajudava a tornar seus dias suportáveis. Mas, com o tempo, um consolo o aguardava nas proximidades.

A cerca de 20 minutos de caminhada da casa de Bilal, Asadullah Safi estava dando aulas em sua casa.

Um grupo de ajuda estava financiando a escola improvisada. Bilal começou a frequentar no fim daquele programa, acompanhando Yasir, um parente do qual gostava. Ele não tinha nenhum documento oficial, de modo que não podia se registrar como aluno.

Diferentemente das demais 30 crianças, ele não tinha livros, nem mochila. Mas quando uma das crianças abandonou a escola, a família devolveu a mochila e os livros, e Safi os deu para Bilal. Registrado com o nome de outra pessoa, ele começou a estudar.

O programa foi concluído, mas as crianças ainda vêm por duas horas por dia, com a casa virando uma espécie de creche. Uma vez por mês, as crianças recebem biscoitos e suco. Elas repetem depois de Safi enquanto ele lê em voz alta o que está no quadro-negro.

E então Safi as leva para o quintal. Com uma vaca aqui, uma cabra acolá, pintinhos correndo sob seus pés, os meninos correm atrás de uma bola, jogando futebol.

Bilal não está mais sozinho. (Há até mesmo duas outras crianças chamadas Bilal na turma.) Ele corre e brinca.

Em uma rachadura na parede externa de sua casa, Bilal mantém um punhado de penas de Toti, em um memorial ao pequeno amigo.