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Como Israel diz ter roubado, na calada da noite, papéis secretos sobre armas nucleares do Irã

Fotos que autoridades israelenses disseram terem sido roubadas do arquivo nuclear do Irã parecem mostrar uma câmara de metal gigante, em um prédio militar construído para realizar experimentos com explosivos - Mossad via The New York Times
Fotos que autoridades israelenses disseram terem sido roubadas do arquivo nuclear do Irã parecem mostrar uma câmara de metal gigante, em um prédio militar construído para realizar experimentos com explosivos Imagem: Mossad via The New York Times

David E. Sanger e Ronen Bergman

Em Tel Aviv (Israel)

17/07/2018 04h01

Os agentes do Mossad que se movimentavam em um armazém em bairro comercial de Teerã, no Irã, sabiam exatamente quanto tempo teriam para desarmar os alarmes, arrombar duas portas, cortar dezenas de cofres enormes e sair da cidade com meia tonelada de materiais secretos: seis horas e 29 minutos.

O turno matinal dos guardas iranianos chegaria por volta das 7h, segundo havia descoberto a agência de espionagem israelense após um ano de vigilância do armazém, e os agentes receberam ordem de sair antes das 5h para terem tempo suficiente para escapar. Quando os guardas iranianos chegassem, ficaria imediatamente claro que alguém tinha roubado grande parte do arquivo nuclear clandestino do país, que documenta anos de trabalho em armas atômicas, projetos de ogivas e planos de produção.

Os agentes israelenses chegaram na noite de 31 de janeiro com maçaricos que alcançavam pelo menos 3.600 graus, o suficiente, como eles sabiam pelas informações obtidas durante o planejamento da operação, para cortar os 32 cofres fabricados no Irã. Mas eles deixaram muitos intactos, buscando primeiro os que continham fichários pretos com os projetos mais críticos. Quando o tempo terminou, fugiram até a fronteira, carregando 50 mil páginas e 163 CDs de memorandos, vídeos e projetos.

Trump deixa acordo nuclear

AFP

No final de abril, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, anunciou os resultados do saque, depois de fazer um relato particular ao presidente Donald Trump na Casa Branca. Ele disse que era mais um motivo para Trump abandonar o acordo nuclear de 2015, afirmando que os documentos provavam o estratagema do Irã e a tentativa de reiniciar a produção da bomba. Alguns dias depois, Trump cumpriu sua antiga ameaça de abandonar o acordo, uma medida que continua tensionando as relações entre os EUA e seus aliados europeus.

Na semana passada, a convite do governo israelense, três repórteres, inclusive um de The New York Times, puderam ver documentos chaves do tesouro. Muitos confirmaram o que inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica haviam suspeitado, segundo diversos relatórios: apesar da insistência do Irã de que seu programa tinha fins pacíficos, o país havia trabalhado para montar sistematicamente tudo de que precisava para produzir armas atômicas.

Os papéis mostram que esses caras estavam trabalhando em bombas nucleares

Robert Kelley, engenheiro nuclear e ex-inspetor da AIEA

Não há como confirmar de forma independente a autenticidade dos documentos, a maioria dos quais tinha pelo menos 15 anos. Eram da época em que uma iniciativa chamada Projeto Amad foi suspensa e parte do trabalho nuclear se tornou ainda mais encoberta. Os israelenses escolheram os documentos que mostrariam à imprensa, o que significa que material isentivo pode ter sido deixado de fora. Alguns disseram que parte do material foi separada para não dar informações a outros que desejem fabricar armas nucleares.

Os iranianos afirmaram que todo o pacote é fraudulento, o que seria mais um esquema elaborado dos israelenses para que sejam reimpostas sanções ao país. Mas autoridades de inteligência britânicas e americanas, depois de seu próprio exame, que incluiu comparar os documentos com alguns obtidos previamente por meio de espiões e desertores, disseram acreditar que era verdadeiro.

Pelo que os israelenses mostraram aos repórteres em um prédio seguro da inteligência, algumas coisas ficam claras.

O programa iraniano para construir uma arma nuclear era quase certamente maior, mais sofisticado e organizado do que a maioria das pessoas supunha em 2003, quando o Projeto Amad foi encerrado, segundo peritos nucleares externos consultados pelo "Times". O Irã teve ajuda estrangeira, mas as autoridades israelenses não apresentaram documentos indicando de onde ela veio. Grande parte era claramente do Paquistão, mas as autoridades disseram que outros peritos estrangeiros também estiveram envolvidos, embora possam não ter trabalhado para seus governos.

Netanyahu faz apresentação de power point sobre o programa nuclear do Irã - Sebastian Scheiner/AP - Sebastian Scheiner/AP
Netanyahu faz apresentação de power point sobre o programa nuclear do Irã
Imagem: Sebastian Scheiner/AP
Os documentos detalharam os desafios de se integrar uma arma nuclear a uma ogiva do míssil iraniano Shahab-3. Um documento propôs locais para possíveis testes nucleares subterrâneos e descreveu planos para se fabricar um lote inicial de cinco armas. Nenhuma foi construída, possivelmente porque os iranianos temiam ser apanhados, ou por causa de uma campanha das agências de inteligência dos EUA e de Israel para sabotar a iniciativa, com ataques cibernéticos e revelação de instalações chaves.

David Albright, um ex-inspetor que dirige o Instituto para Ciência e Segurança Internacional, disse em uma entrevista que os documentos continham "ótima informação".

"O Irã realizou muitos outros testes altamente explosivos relacionados ao desenvolvimento de armas nucleares do que se sabia antes", disse ele ao Congresso no mês passado.

Netanyahu afirma que o pacote de documentos prova que o acordo de 2015, com suas cláusulas finais permitindo que o Irã produza combustível nuclear novamente depois de 2030, foi ingênuo. O fato de que os iranianos se esforçaram tanto para preservar o que tinham aprendido e escondido o conteúdo do arquivo dos inspetores internacionais em um local secreto, apesar do acordo para revelar as pesquisas anteriores, é evidência de sua futura intenção, disse ele.

Mas o mesmo material também poderia ser interpretado como um forte argumento para manter e expandir o acordo nuclear pelo maior tempo possível. O acordo privou os iranianos do combustível nuclear de que eles precisariam para transformar os projetos em realidade.

Ex-membros do governo Obama que negociaram o acordo dizem que o arquivo prova o que eles suspeitavam há muito tempo: que o Irã tinha capacidade avançada de combustível, projetos de ogivas e um plano para construí-las rapidamente. Foi por isso que eles negociaram o acordo, que obrigou o país a enviar para fora 97% de seu combustível nuclear. O Irã nunca teria concordado com uma proibição permanente, segundo eles.

O arquivo capta o programa em um momento, 15 anos atrás, antes que as tensões se acelerassem, antes que os EUA e Israel atacassem as centrífugas nucleares do Irã com uma arma cibernética e que um centro de enriquecimento subterrâneo fosse construído e descoberto.

Hoje, apesar da decisão de Trump de sair do acordo, ele continua vigente. Os iranianos ainda não retomaram o enriquecimento ou violaram seus termos, segundo inspetores internacionais. Mas se as sanções forem renovadas e mais empresas ocidentais deixarem o Irã é possível que seus líderes decidam retomar a produção de combustível nuclear.

O armazém que os israelenses invadiram só foi utilizado depois do acordo feito em 2015 com os EUA, as potências europeias, a Rússia e a China. Esse pacto garantiu amplos direitos à Agência Internacional de Energia Atômica de visitar locais suspeitos de atividade nuclear, incluindo bases militares.

Por isso, segundo entrevistas de autoridades israelenses, os iranianos sistematicamente coletavam milhares de páginas espalhadas pelo país documentando como construir uma arma, como encaixá-la em um míssil e como detoná-la. Eles as consolidaram no armazém, em um bairro comercial sem relação anterior com o programa nuclear e longe dos arquivos declarados do Ministério da Defesa. Não havia vigilância 24 horas ou qualquer outra coisa que desse indícios aos vizinhos, ou espiões, de que algo incomum acontecia lá.

22.set.2013 - Caminhão militar iraniano carrega um míssil balístico de 2.000 km de alcance, capaz de alcançar Israel e as bases dos Estados Unidos na região durante o desfile militar anual que marca a invasão do Iraque em 1980, em Teerã, no Irã, neste domingo (22) - Abedin Taherkenareh/EFE - Abedin Taherkenareh/EFE
Caminhão militar iraniano carrega um míssil balístico de 2.000 km de alcance
Imagem: Abedin Taherkenareh/EFE

O que os iranianos não sabiam era que o Mossad estava documentando o esforço de coleta, filmando a movimentação durante anos, desde que começou a relocação em fevereiro de 2016. No ano passado, os espiões começaram a planejar uma invasão que segundo uma autoridade israelense se assemelhava muito às aventuras de George Clooney em "Onze Homens e Um Segredo".

Na maioria das operações do Mossad, espiões visam penetrar uma instalação e fotografar ou copiar material sem deixar vestígios. Mas nesse caso, o chefe do Mossad, Yossi Cohen, ordenou que o material fosse simplesmente roubado. Isso encurtaria drasticamente o tempo que os agentes, muitos deles iranianos, senão todos, passariam dentro do prédio. Mas os israelenses queriam ser capazes de negar alegações dos iranianos de que o material foi forjado e oferecê-lo para exame de grupos internacionais.

Os espiões israelenses claramente tiveram ajuda interna. Eles sabiam quais dos 32 cofres continham a informação mais importante. Vigiaram os hábitos dos trabalhadores, estudaram o funcionamento do sistema de alarme para que ele parecesse estar ligado mesmo que não avisasse ninguém quando os agentes chegaram, por volta das 22h30.

Apesar de todos os detalhes cinematográficos da invasão, a consequência imediata não foi muito dramática. Não houve perseguição, segundo autoridades israelenses, que não quiseram revelar se os documentos foram levados por terra, ar ou mar, embora uma fuga pelo litoral, a poucas horas de carro de Teerã, parecesse a menos arriscada.

Menos de duas dúzias de agentes participaram da invasão. Temendo que alguns deles fossem apanhados, os israelenses retiraram os materiais por várias rotas diferentes. Exatamente às 7h, como esperava o Mossad, um guarda chegou e descobriu que as portas e os cofres estavam arrombados. Ele tocou o alarme, e as autoridades iranianas logo iniciaram uma campanha nacional para localizar os ladrões, em um esforço que, segundo uma autoridade israelense, incluiu "dezenas de milhares de membros da segurança e da polícia locais".

O esforço não deu em nada. E, até o discurso de Netanyahu, os iranianos nunca disseram uma palavra em público sobre o que aconteceu.