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O que mina a credibilidade do modelo revolucionário do blockchain?

Na sede da empresa suiça Alpine Mining, centenas de placas gráficas que mineram moedas virtuais. - FABRICE COFFRINI/NYT
Na sede da empresa suiça Alpine Mining, centenas de placas gráficas que mineram moedas virtuais. Imagem: FABRICE COFFRINI/NYT

Paolo Tasca

Diretor executivo do UCL Centre for Blockchain Technologies

27/12/2018 04h00

Uma tecnologia que poderia revolcionar nosso conceito de confiança enfrenta um grande obstáculo

O blockchain é muito mais do que apenas a tecnologia subjacente da moeda virtual bitcoin. É uma ferramenta que promete descentralizar as estruturas que regem todas as transações econômicas e, no processo, redefinir nosso conceito de confiança.

Esse é o aspecto mais revolucionário e inovador do blockchain. Mas essa promessa poderia estar sendo minada.

A confiança - a base das interações sociais e comerciais -é garantida há séculos por provedores de confiança institucionalizados, como empresas hierarquicamente organizadas e outras autoridades terceirizadas. Esses mecanismos de confiança funcionam para modelos de negócios off-line, mas estão se tornando obsoletos em nosso mundo digital hiperconectado.

Na economia da plataforma digital, a confiança é mais bem fomentada por aqueles que controlam essas plataformas. Eles são gigantes da tecnologia, como Uber e Airbnb, que estão substituindo os provedores de confiança institucionalizados e se tornando os guardiões de nossa identidade digital e de nossa confiabilidade. Eles controlam os mecanismos que geram a confiança com base em transações, estabelecendo reputações baseadas na comunidade através de um sistema de classificação por estrelas.

Nos últimos anos, no entanto, algumas plataformas abertas, como o Twitter, se tornaram cada vez mais restritivas. As coisas se complicaram quando os primeiros desenvolvedores e usuários se sentiram traídos. Havia a promessa de plataformas abertas, mas esse sonho acabou.

Além disso, incidentes envolvendo vários gigantes de tecnologia, como Facebook, eBay, Uber e Experian, destruíram sua credibilidade como depositários confiáveis de nossos dados. Nosso medo da vigilância e do uso indevido de informações cresceu.

Graças ao blockchain, as pessoas agora são capazes de enfrentar os proprietários da plataforma ao se envolver diretamente umas com as outras, através de redes distribuídas peer-to-peer, ou P2P, que funcionam com base em um conjunto de regras estabelecidas por todos. A confiança orientada por máquinas que disso resulta permite que os usuários evitem os efeitos colaterais de mecanismos centralizados, como o controle de terceiros ou a vigilância não autorizada.

De fato, aqueles que garantem a confiança centralizada podem logo dar lugar aos sistemas de confiança descentralizados e aos sistemas P2P possibilitados pelo blockchain.

Nesses sistemas, os algoritmos garantem a autenticidade das transações e podem registrar a identidade de cada parte, junto com uma avaliação de confiança e reputação, no blockchain, que atua como uma espécie de livro-caixa. Comportamentos indevidos são evitados porque é impossível adulterar ou falsificar esse livro-caixa, e a responsabilização é melhorada porque todas as ações podem ser auditadas independentemente por qualquer participante.

Caixa automático de bitcoins em uma loja em Nova York. - DANNY GHITIS/NYT - DANNY GHITIS/NYT
Caixa automático de bitcoins em uma loja em Nova York.
Imagem: DANNY GHITIS/NYT

Os benefícios de um sistema descentralizado são claros: os usuários são capazes de confiar sem a necessidade de terceiros. A cooperação em grupo é reforçada. Transações fraudulentas são minimizadas. Além disso, os usuários podem construir sua reputação pessoal em várias plataformas, e não só podem controlar seus vastos dados de transações, como também construir e gerenciar sua própria identidade digital - ignorando a vigilância dos gigantes da tecnologia.

É o Uber sem o Uber, o Airbnb sem o Airbnb.

Essa evolução já está acontecendo. Provedores de pagamento e serviços financeiros como o PayPal estão sendo desafiados pelo Ripple ou pelo Circle. As redes sociais como Twitter e Facebook enfrentam concorrência de plataformas descentralizadas como Steemit ou Akasha. Aplicativos descentralizados - que permitem decisões através de software e ações autônomas - podem ser criados e adotados em diferentes blockchains, como o Ethereum ou o EOS. Esses são apenas alguns exemplos.

Essa transformação sedutora parece boa demais para ser verdade, e os sistemas distribuídos baseados em blockchain enfrentam um dilema.

Nos modernos mercados P2P de grande escala, a confiança e o crescimento estão em desacordo: quanto mais uma rede cresce, menos os usuários confiam nela. Mas o grande número de usuários é essencial para o sucesso da economia P2P.

Esse problema pode ser resolvido dificultando a adesão à rede (reduzindo o crescimento do número de usuários) ou centralizando o controle em um punhado de codificadores ou nódulos confiáveis (reduzindo a descentralização). Infelizmente, a comunidade blockchain parece favorecer o aumento da centralização.

Além das plataformas business-to-business, que geralmente são executadas em blockchains privados, onde a governança é centralizada a princípio, as plataformas P2P mais rápidas, mais seguras e que crescem com maior velocidade são baseadas em redes públicas de blockchain - todas centralizadas. Um pequeno grupo de pessoas faz e aplica as regras.

Por exemplo, apenas um punhado de "supermineradores" - aqueles que contabilizam e autenticam transações - garante a maioria das transações de bitcoins, enquanto um pequeno núcleo de desenvolvedores faz a grande maioria das mudanças nos protocolos dessa moeda virtual.

Para o Ethereum, o maior blockchain público, adotado por milhares de plataformas P2P, a situação é ainda pior. Os cinco maiores grupos de mineração são responsáveis por até 80 por cento das transações. Os desenvolvedores também estão concentrados: 20% do código base do Ethereum foi escrito pelo mesmo programador.

A confiança baseada em máquina está prestes a saltar de sistemas controlados por gigantes da tecnologia para sistemas controlados por um pequeno grupo de gurus anônimos do setor.

Se apenas alguns membros tiverem a capacidade de editar o livro-caixa do sistema e controlar o protocolo, onde estariam então os blockchains abertos, transparentes, de uso livre e universalmente acessíveis que tantos esperavam que poderiam ignorar o controle e a vigilância de terceiros?

Uma carteira de criptomoeda no La Maison du Bitcoin, em Paris - GEOFFROY VAN DER HASSELT/NYT - GEOFFROY VAN DER HASSELT/NYT
Imagem: GEOFFROY VAN DER HASSELT/NYT

Em última análise, essa nova fronteira de gestão da confiança no mundo digital apresenta uma escolha bastante difícil: ou negociamos nossa privacidade com os provedores de confiança centralizados, mas responsáveis, ou mantemos o "controle" direto de nossos dados através de uma máquina de confiança controlada por um grupo limitado de pessoas anônimas, que poderiam agir desonestamente.

Esses problemas de governança minam a credibilidade do blockchain como uma máquina de confiança da nova economia P2P. Parece que a confiança sintética entre as partes não está embasada por um conjunto sólido de princípios. Essa falta de confiança inevitavelmente divide a comunidade e fragmenta a solidariedade do grupo, como evidenciado pelas muitas cadeias oriundas dos protocolos originais do Bitcoin e do Ethereum.

Por enquanto, há uma guerra para controlar esses sistemas blockchain, e não existe a perspectiva de um novo bem comum que a tecnologia ainda tem o potencial de oferecer.