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O êxodo de 143 mi de migrantes climáticos e a era das cidades sustentáveis

Fazendas de criação de camarão administradas pelo World Wildlife Fund na periferia de Hong Kong. Segundo textos indianos antigos, o arquiteto tem que ter consciência dos ciclos sustentáveis da natureza - Billy H.C. Kwok para o New York Times
Fazendas de criação de camarão administradas pelo World Wildlife Fund na periferia de Hong Kong. Segundo textos indianos antigos, o arquiteto tem que ter consciência dos ciclos sustentáveis da natureza Imagem: Billy H.C. Kwok para o New York Times

Balkrishna Doshi*

The New York Times

01/01/2019 04h00

Um relatório do Banco Mundial concluiu que mais de 143 milhões de pessoas se tornarão "migrantes climáticos", fugindo das perdas de colheitas, falta de água e elevação do nível do mar.

Quando a cultura e a recreação se unem, surgem comunidades.
Quando comunidades se tornam sociedades, um acordo é estabelecido.
Nessas realidades, habitamos nossas aspirações de união.

As cidades sustentáveis são como uma floresta, com diversidade, em crescimento constante. Na floresta, cada galho, cada tronco e cada árvore são únicos, desenvolvendo-se de forma própria; no entanto, tudo está relacionado entre si. Tudo na floresta tem um papel na sinfonia cósmica. Com a cidade é a mesma coisa.

Ela também é um organismo, ao mesmo tempo estável e fluido, estático e em constante transformação. O ser humano faz parte de seu mecanismo interno, da mesma forma que nossas células são parte de nós. As ruas funcionam como veias, conectando-os a uma rede de vida semelhante a uma floresta rica em biodiversidade.

Por que então não encaramos nossas cidades, grandes e pequenas, e nossas aldeias, como entidades biotecnológicas? Por que não as planejamos e construímos de forma natural para reacender o espírito da comunidade, de uma cultura participativa positiva?

O Palácio dos Ventos em Jaipur, cidade indiana que prosperou no século XVIII, graças ao planejamento cuidadoso de Maharajah Sawai Jai Singh II - Credit: Vijay Mathur/Reuters - Credit: Vijay Mathur/Reuters
O Palácio dos Ventos em Jaipur, cidade indiana que prosperou no século XVIII, graças ao planejamento cuidadoso de Maharajah Sawai Jai Singh II
Imagem: Credit: Vijay Mathur/Reuters
Um bom exemplo é Jaipur, onde Maharajah Sawai Jai Singh II reinou sobre a Índia do século XVIII. Ele via a cidade como um paraíso na terra. Levando em consideração o clima em constante mudança, e também o movimento do Sol, construiu uma cidade em torno de núcleos e moradias cooperativas e sustentáveis. Ao mesmo tempo que cultivava o corpo, a mente e o espírito, prosperava social, econômica e culturalmente.

Jaipur lança mão da antiga mandala vastu purusha – modelo de desenho com o objetivo de criar um ambiente equilibrado e saudável. Essa antiga ciência moldou a maior parte dos assentamentos tradicionais indianos, onde são realizadas atividades sazonais como festivais e feiras. O princípio da mandala se adapta a climas e lugares totalmente diferentes, e é o que os inspira.

Infelizmente, de lá para cá parece termos esquecido essa abordagem intensa da arquitetura e do desenho, seguindo em vez disso o modelo predominante de planejamento que aposta em orçamentos milionários, estruturas em larga escala e comportamentos isolados. Consequentemente, nossas habitações se tornaram fragmentadas, e não conseguimos ver a infraestrutura e a vida da cidade de forma integrada.

Balkrishna Doshi - New York Times - New York Times
Balkrishna Doshi
Imagem: New York Times
Em vez de construirmos mais megaestruturas – que consomem constantemente tempo, energia e recursos naturais e humanos –, será que não devíamos seguir uma linha mais natural e biológica da arquitetura, que gere núcleos de povoamentos pequenos, mas complexos e, quem sabe, crie assim um mundo novo?

Esses núcleos seriam sustentáveis e replicáveis, cheios de energia e vitalidade, mas não ultrapassariam um certo tamanho, e teriam as mesmas virtudes de uma rede biodiversa.

Não desperdiçariam nem tempo, nem energia, nem recursos naturais. Seus habitantes teriam capacitação global e um estilo de vida gratificante e adequado. Como consequência, isso ajudaria a salvar nosso planeta dos desastres e disparidades atuais que geram ansiedade e dúvida em relação ao futuro.

Geralmente quando visitamos cidades antigas que são social, econômica e culturalmente bem engendradas, somos tomados por uma morosidade e um silêncio estranho e inesperado. Nosso desejo de forçar, conquistar e impor diminui; pensamos mais em como a natureza se conecta conosco e como podemos compartilhar e valorizar o que mais íntimo levamos dentro de nós.

Além dessa quietude, outras medidas estéticas incluiriam graça, amor, compaixão e humildade. Para fazer vibrar um assentamento, há que se criar conexões simples e honestas, que encorajem as pessoas a se unir, compartilhar e sentir que fazem parte de uma ordem maior, da Mãe Terra.

Nos textos indianos antigos, o sthapati (arquiteto ou planejador) tem que ter consciência dos ciclos sustentáveis da natureza, seguir as leis e a energia do tempo, como faz nosso ecossistema. Ele é obrigado a integrar esse fluxo natural às vidas dos habitantes do assentamento. Esse método de planejamento interligado facilita as atividades culturais e a integração social. Essa forma de arquitetura sustentável dá a todos os indivíduos, independentemente de classe ou credo, a capacidade de se conectar com suas verdadeiras naturezas.

Não é por isso que algumas casas japonesas têm um bonsai – para lembrar as pessoas de sua conexão com o eterno mistério da existência?

Bonsai do Museu Huntington, em San Marino, Califórnia. No Japão, algumas casas têm bonsais para garantir a conexão com a natureza - Beth Coller/The New York Times - Beth Coller/The New York Times
Bonsai do Museu Huntington, em San Marino, Califórnia. No Japão, algumas casas têm bonsais para garantir a conexão com a natureza
Imagem: Beth Coller/The New York Times
Atualmente, embora estejamos conectados globalmente, nos vemos perdidos espiritualmente. Prana, a energia sutil que só pode ser sentida – é o elo perdido que, se estimulado, tem a capacidade de reavivar o espírito da comunidade. Será que não podemos aplicar essas filosofias de planejamento no presente para criar um ambiente duradouro de cultura participativa positiva?

*Balkrishna Doshi é o vencedor do Prêmio Pritzker 2018, o primeiro indiano a receber a honraria mais prestigiada do mundo da arquitetura.

Este texto faz parte da série Fator de Mudança, que inclui artigos de opinião, fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2018 que repercutirão não só em 2019, mas nos anos seguintes.