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Como medo de vacina entre grupo judaico provocou surto de sarampo em NY

Crianças a uma escola ultraortodoxa no bairro de Williamsburg, no Brooklyn, onde um surto de sarampo ocorreu neste ano - John Taggart/The New York Times
Crianças a uma escola ultraortodoxa no bairro de Williamsburg, no Brooklyn, onde um surto de sarampo ocorreu neste ano Imagem: John Taggart/The New York Times

Tyler Pager

Em Nova York (EUA)

11/04/2019 17h37

"The Vaccine Safety Handbook" (O Manual de Segurança de Vacinas, em tradução livre) parece uma revista bonita e inócua para pais que desejam criar filhos com saúde. Mas as 40 páginas trazem alertas falsos de que vacinas provocam autismo e contêm células de fetos humanos abortados.

"Acreditamos que não há maior ameaça à saúde pública do que as vacinas", conclui a publicação, contradizendo o consenso científico de que as vacinas em geral são seguras e altamente eficazes.

O manual, criado por um grupo chamado Pais Educando e Defendendo a Saúde das Crianças (Peach, na sigla em inglês), é voltado para os judeus ultraortodoxos, cujas crescentes comunidades fechadas estão no epicentro de um dos maiores surtos de sarampo nos Estados Unidos em décadas.

Na terça-feira (9), o prefeito Bill de Blasio declarou emergência de saúde pública em partes do Brooklyn, em um esforço para conter a disseminação do sarampo nos bairros ultraortodoxos dali. Ele disse que os indivíduos não vacinados seriam obrigados a receber a vacina contra sarampo, ou estariam sujeitos a multa, enquanto a cidade intensifica sua campanha para conter o surto.

O manual do Peach, com cartas assinadas por rabinos e seções como "Pontos de Interesse segundo o Halachá", se transformou em um dos principais veículos para desinformação entre os grupos ultraortodoxos, incluindo os judeus hassídicos. Sua mensagem é compartilhada por linhas telefônicas dedicadas e em mensagens de texto grupais.

"Vacinas contêm DNA de macaco, rato e porco, assim como soro sanguíneo de vaca, que são de consumo proibido segundo a lei de dieta kosher", disse por e-mail Moishe Kahan, um editor colaborador da revista do Peach.

As vacinas costumam ser cultivadas em um caldo de células animais, mas o produto final é altamente purificado. A maioria dos rabinos ultraortodoxos proeminentes concorda que vacinas são kosher (de acordo com os preceitos judaicos) e pedem aos judeus devotos que sejam imunizados.

Mesmo assim, de enclaves no suburbano Rockland County até as ruas movimentadas de Borough Park no Brooklyn, folhetos dizem aos judeus hassídicos que sejam céticos a respeito da imunização. Em uma noite recente de domingo, uma teleconferência de quatro horas promovida para as famílias ultraortodoxas, com números de chamada de vários países, oferecia conselho de palestrantes apresentados como especialistas em ciência de vacinas.

O movimento antivacinas vai muito além dos limites da comunidade ultraortodoxa. Há crescentes bolsões de oponentes de vacinas por todo o país que cobrem todo o espectro ideológico: no Estado de Washington, algumas comunidades liberais evitam vacinações, enquanto populações conservadoras no Texas também se opõem a elas.

Na comunidade ultraortodoxa de Nova York, o movimento antivacinas não tem um líder claro. Os líderes judaicos disseram que sua mensagem se disseminou por meio do ativismo de base e ganhou terreno em grande parte devido a muitos hassídicos terem acesso limitado à internet ou pesquisa científica.

Muitos dos céticos de vacinas envolvem sua retórica em linguagem científica, assim como os oradores na recente teleconferência.

A teleconferência, que foi anunciada em folhetos e era acessível por qualquer um que dispusesse do número de chamada, disse aos participantes que sua meta era "criar uma discussão inteligente sobre o que estamos injetando em nossas crianças". Ela contou com participação de rabinos, médicos e advogados, todos dizendo ter diplomas de pós-graduação e minimizando os riscos do sarampo e questionando a eficácia das vacinas.

Uma mãe hassídica que vive em Rockland County e que participou da teleconferência, disse ao "New York Times" que nenhum de seus três filhos é vacinado e todos tiveram sarampo recentemente. A mulher, que falou sob a condição de anonimato por temer retaliação, disse que não relatou os casos aos médicos e que as crianças se recuperaram em questão de dias.

"O corpo não é uma máquina", ela disse. "O corpo é algo que reage às toxinas de certas formas. Soube diretamente de casos de SMSI após as crianças receberem uma vacina", ela acrescentou, referindo-se à síndrome de morte súbita infantil. Muitos estudos concluíram que vacinas não causam SMSI.

Manual antivacinas criado por um grupo chamado Pais Educando e Defendendo a Saúde das Crianças - Handout via The New York Times - Handout via The New York Times
Manual antivacinas criado por um grupo chamado Pais Educando e Defendendo a Saúde das Crianças
Imagem: Handout via The New York Times

O surto de sarampo teve início em Nova York em outubro, após judeus ultraortodoxos retornarem de Israel, onde celebraram o Sucot, o festival das colheitas judaico. Eles rezaram no Muro das Lamentações, fizeram suas refeições em sucás (cabanas) e desfrutaram do clima quente.

Mas Israel estava no meio de uma epidemia, e autoridades de saúde disseram que várias crianças não vacinadas voltaram para casa com o vírus.

Quando os médicos confirmaram os primeiros casos em Nova York, as autoridades de saúde e os líderes judaicos correram para deter a disseminação da doença, que os Estados Unidos tinham declarado ter sido erradicada em 2000.

Folhetos enfatizando a importância das vacinações foram distribuídos. Especialistas em saúde organizaram reuniões com pediatras judeus, e milhares de doses de vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) foram distribuídas.

A maioria dos rabinos ultraortodoxos disse também ter pedido que as pessoas se vacinassem, citando as escrituras religiosas a respeito de proteger a própria saúde e a saúde dos outros.

Mas tudo isso não bastou para persuadir os céticos de vacinas.

Yosef Rapaport, um jornalista hassídico de Borough Park que escreveu sobre a importância da vacinação, disse que os pais que não querem imunizar seus filhos procurarão uma orientação rabínica alinhada com seus pontos de vista.

"Você se decide e então tenta encontrar uma interpretação no Talmud", ele disse. "Você sempre encontrará um rabino que expressará dúvida."

O médico Aaron Glatt, um especialista em doenças infecciosas que também é um rabino ordenado em Long Island, diz que tem combatido a desinformação a respeito dos riscos das vacinas.

Ele enfatiza para seus pacientes e fiéis que o sarampo é disseminado pelos não vacinados e pode ser mortal, especialmente para crianças com menos de 6 meses e pessoas com sistemas imunológicos comprometidos, que não podem ser vacinadas.

"Infelizmente, não somos imunes às pessoas antivacinação", disse Glatt. "Elas são encontradas em todas as comunidades, em todas as religiões e, infelizmente, são muito ativistas."

O médico Yakov Kiffel, um pediatra em Monsey, Rockland County, disse ter tanto vacinado crianças quanto tratado meia dúzia de pacientes com sarampo desde o final do ano passado. Ele disse que a maioria dos doentes tinha menos de 6 meses, a idade em que uma criança recebe a primeira dose da vacina tríplice viral, e familiares.

Mais de 400 casos de sarampo foram confirmados em Nova York desde outubro, e a maioria deles entre os judeus hassídicos.

Alguns hassídicos disseram que a tensão de longa data entre os membros da comunidade ultraortodoxa e o governo os deixam desconfiados dos esforços das autoridades para conter o surto.

Antiga perseguição aos judeus ainda pesa, eles disseram. E mais recentemente, disputas com líderes laicos em torno de um ritual de circuncisão que transmitia herpes fatal aos bebês e a supervisão pelo governo das escolas privadas judaicas ultraortodoxas, conhecidas como yeshivás, apenas azedaram ainda mais as relações.

Alguns pais hassídicos também culpam a ausência de ensino de ciências nas yeshivás.

"A falta de uma educação secular abrangente criou uma geração de pais que não apreciam a ciência moderna e não confiam no sistema de saúde", disse Dov Bleich, um pai hassídico de dois filhos que vive em Monsey e enfatizou que a maioria dos rabinos apoia a vacinação.

"Isso os deixa vulneráveis à cruzada antivacinação."

Na sexta-feira, rabinos se reuniram no Brooklyn para considerar uma proposta que obrigaria todos os hassídicos a serem vacinados para poderem frequentar as sinagogas e yeshivás. Após a reunião, organizadores antivacinação enviaram chamadas telefônicas automáticas, pedindo às pessoas que persuadissem seus rabinos a não apoiarem a medida.

O médico Paul Offit, diretor do Centro de Educação de Vacinas do Children's Hospital da Filadélfia e coinventor da vacina contra rotavírus, disse que as pessoas com frequência não entendem a gravidade das doenças erradicadas pelas vacinas.

"As vacinas são vítimas de seu próprio sucesso", disse Offit.

"O que me perturba é não termos aprendido com a história", ele acrescentou. "O que a história nos ensina é que o sarampo é um assassino e as vacinas podem eliminar esse assassino, mas agora, devido à nossa ignorância, temos que ver crianças sofrendo."