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OPINIÃO

Argentina: Cristina Kirchner será a nova Evita?

Após as eleições de outubro, com vitória dos peronistas, painéis com a imagem de Evita Peron, como este, em Buenos Aires, voltaram a se iluminar - Juan MabromataA/AFP
Após as eleições de outubro, com vitória dos peronistas, painéis com a imagem de Evita Peron, como este, em Buenos Aires, voltaram a se iluminar Imagem: Juan MabromataA/AFP

Pola Oloixarac*

03/01/2020 04h00

Quando a vitória foi declarada , em 27 de outubro, os retratos gêmeos gigantescos de Eva Perón que pairam sobre a avenida 9 de Julho, em Buenos Aires, foram iluminados contra o céu noturno pela primeira vez desde que Cristina Kirchner deixara a presidência, em 2015.

Um milagre peronista tinha acabado de ocorrer, e o que parecia impensável durante os quatro anos em que o partido foi oposição se tornou realidade: os eleitores argentinos coroaram Cristina como a rainha política do país de novo. Mesmo com 11 acusações de corrupção contra si, a ex-presidente, que já ocupara o cargo durante dois mandatos, voltava ao topo, desta vez como vice ao lado do ex-aliado Alberto Fernández (e também inimigo de longa data).

"Não chores por mim, Argentina", diz a letra da canção de um antigo musical. De fato, as lágrimas, o drama e a nação são inseparáveis desde que a vida de Evita, como Eva Perón era conhecida pelos fãs, se tornou tema de um show de sucesso da Broadway. Cerca de três décadas antes, como primeira-dama do país, ela conquistara grande influência política tanto como defensora dos pobres quanto como a esposa badalada do general Juan Domingo Perón, então presidente.

Sob os Perón, a polarização entre defensores e oponentes tomou conta da consciência política nacional. Polêmica semelhante se criou durante o mandato presidencial de Cristina, de 2007 a 2015 e que, aliás, domina o diálogo doméstico até hoje.

Antes, só Evita

Menino agita a bandeira argentina com a imagem de Cristina Kirchner, em Buenos Aires, no início do ano - Alejandro Pagni/AFP - Alejandro Pagni/AFP
Menino agita a bandeira argentina com a imagem de Cristina Kirchner, em Buenos Aires, no início do ano
Imagem: Alejandro Pagni/AFP

Nenhuma outra mulher desde Evita manteve tanto poder concentrado por tanto tempo —ou se envolveu tanto com o momento presente do país— como Cristina. As semelhanças são claras, e ela faz questão de ressaltá-las: as duas começaram como primeiras-damas, ambiciosas e enérgicas, ganhando status ao lado do marido. Para Cristina, cujo marido e antecessor foi Néstor Kirchner, a política foi uma jornada extremamente pessoal, moldada tanto pelos que a apoiam como pelos que se opõem a ela.

Essencial para sua ascensão ao poder foi a devoção conjugal que Evita demonstrava como essencial à própria imagem. "Tudo o que sou, tudo o que tenho, tudo o que penso e sinto devo a Perón", diz ela sobre o marido em sua autobiografia, "La Razón de Mi Vida" ("A Razão da Minha Vida").

Evita incorporou o papel conservador da mulher para quem o casamento é uma instituição sagrada, e o marido, uma entidade quase divina. E é essa mesma perspectiva que marca a atitude de superioridade de Cristina em relação a outras mulheres no poder atualmente; durante sua campanha, por exemplo, ela menosprezou Maria Eugenia Vidal, governadora da Província de Buenos Aires, pelo fato de ser divorciada.

Em sua autobiografia publicada este ano, "Sinceramente", Cristina sugeriu que o presidente Mauricio Macri e sua mulher (ambos divorciados, no segundo casamento) não se encaixam na imagem de família perfeita que pretendem passar. E os comparou à própria união a Kirchner, primeiro e único casamento de ambos e que durou 35 anos, até a morte dele, em 2010.

O presidente eleito Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, cumprimentam correligionários em Buenos Aires em 27 de outubro de 2019 - Agustin Marcarian/Reuters - Agustin Marcarian/Reuters
O presidente eleito Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, cumprimentam correligionários em Buenos Aires em 27 de outubro de 2019
Imagem: Agustin Marcarian/Reuters

Peronista, não feminista

De uns tempos para cá, Cristina expandiu suas opiniões sobre questões ligadas ao feminismo. Entretanto, durante os quase 10 anos em que permaneceu na presidência, foi contra a legalização do aborto —e quando a imprensa lhe perguntou como se sentia em relação aos chamados "temas femininos", ela declarou que era "peronista, e não feminista".

Quando o Ni Una Menos, movimento de base pelos direitos da mulher, surgiu em 2015, com um imenso protesto de rua contra o aumento de feminicídios, Cristina estava na presidência e, mais tarde, escreveu que via o grupo como uma força oposicionista. Então, em 2018, aparentemente inspirado pelo ímpeto global e os protestos do Ni Una Menos e do movimento #MeToo, Macri abriu um debate nacional com um projeto de lei que descriminalizaria o aborto. Dessa vez, aparentemente energizada pelo papel de oposição, Cristina votou a favor da legalização.

A ex-presidente compreende a dinâmica do poder como ninguém na Argentina. Se Evita —e cuja morte, causada por um câncer, só reforçou seu mito— era reverenciada como mãe dos descamisados, Cristina nutre seu apelo como a viúva forte, que sobreviveu a tudo: à morte de Kirchner, às acusações de corrupção, à lista crescente de traidores. De fato, Fernández, o presidente eleito, se tornou inimigo quando deixou o posto de chefe de seu gabinete, em 2008, para organizar uma nova versão do peronismo sem ela.

Durante um tempo, o objetivo de Fernández e os outros inimigos políticos foi enfraquecê-la, desacreditando Cristina e sua coalizão em comícios e programas de TV. Entretanto, o poder de La Señora continuou inabalável: ela mantém o controle de 35 por cento do eleitorado, sendo os subúrbios de baixa renda de Buenos Aires, densamente povoados, a base de seu apoio. Se não pode derrotar o inimigo, junte-se a ele. Com o tempo, Fernández acabou se rendendo e foi beijar o anel de Cristina.

Livro-campanha

Mestre da teatralidade tanto quanto Evita, Cristina se reinventou como escritora, decisão que demonstra até que ponto considera suas ações refletidas no espelho da história. Sua turnê de lançamento de "Sinceramente" foi sua campanha eleitoral mais recente; nesses eventos, além de dar autógrafos, ela teve a chance de falar diretamente com seus seguidores fiéis.

O mundo de Cristina é baseado na luta entre as forças do mal e os guardiães do bem (esses, é claro, são da sua turma). Sob seu ponto de vista, ela está presa em uma luta contra excessos legais e sua perseguição nos tribunais. Ao reagir às investigações de corrupção, continua a se mostrar como a defensora do povo, soldado de envergadura mítica muito semelhante à própria Evita. Para Cristina, é um conflito que, por natureza, a mantém no poder.

A escritora argentina Pola Oloixarec: "Cristina compreende a dinâmica do poder como ninguém na Argentina". - Helena Insinger/The New York Times - Helena Insinger/The New York Times
A escritora argentina Pola Oloixarec: "Cristina compreende a dinâmica do poder como ninguém na Argentina".
Imagem: Helena Insinger/The New York Times

Ao enfrentar os muitos obstáculos ao seu retorno, Cristina ofereceu uma resposta à questão premente no feminismo atual: o que fazer com os homens? Ela optou por transformar o marido em um mártir peronista —e nesse aspecto, seguiu o exemplo de Juan Perón, não o de Evita, transformando Néstor Kirchner em uma figura quase religiosa, da mesma forma que o general Perón fez da mulher um ícone— de modo que pudesse partir para o que interessava. É a sua forma de dizer, "Obrigada, Néstor, mas quem manda agora sou eu."

Quanto tempo pode durar a ilusão?

* Pola Oloixarac é uma romancista argentina, autora de "As Teorias Selvagens"