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'É um arraial fantasma': os moradores que insistem em morar nos vilarejos destruídos pela lama de Mariana

João Elói passou quase um ano sem energia elétrica em Paracatu, para onde voltou um mês e meio depois do desastre - Camilla Veras Mota/BBC Brasil
João Elói passou quase um ano sem energia elétrica em Paracatu, para onde voltou um mês e meio depois do desastre Imagem: Camilla Veras Mota/BBC Brasil

Camilla Veras Mota - @cavmota - Enviada especial da BBC Brasil a Mariana (MG) e a Paracatu (MG)

03/11/2017 09h17

"Eu sou nascido, vivido e convivido aqui. Quando a pessoa é nascida, vivida e convivida em um lugar, é difícil ela sair dele". É assim que o agricultor João Elói da Silva, de 64 anos, explica porque deixou a família em Mariana 48 dias depois do rompimento da barragem de Fundão para voltar para o distrito de Paracatu, que foi engolida pela lama.

Ele passou 45 dias na pousada para onde parte dos mais de mil atingidos - incluindo os que vieram do vilarejo de Bento Rodrigues - foi levada após o desastre; e apenas três dias em um imóvel alugado pela mineradora Samarco, operadora do complexo onde o desastre aconteceu, no dia 5 de novembro de 2015.

Ele não é o único. No decorrer dos últimos dois anos, ex-moradores acabaram retornando às três ou quatro casas que ficaram de pé na parte baixa do vilarejo. Ele está às margens do rio Gualaxo do Norte, afluente do Doce, por onde o paredão de rejeito de minério de ferro se deslocou nas horas seguintes ao acidente.

Em Bento Rodrigues, a apenas dois quilômetros da barragem, um grupo cada vez maior de ex-moradores volta ao distrito todo fim de semana e nas principais datas festivas do ano.

"Isso aqui é um arraial fantasma", diz a esposa de Silva, Maria Salete, para depois emendar que só não volta para a antiga casa porque tem que cuidar do filho de 17 anos, caçula de 12, em idade escolar. 

Poucas casas ficaram de pé depois que a avalanche de lama passou pelo distrito, que está a 35 km de Mariana - Camilla Veras Mota/BBC Brasil - Camilla Veras Mota/BBC Brasil
Poucas casas ficaram de pé depois que a avalanche de lama passou pelo distrito, que está a 35 km de Mariana
Imagem: Camilla Veras Mota/BBC Brasil

A estrada que corta Paracatu ainda guarda os rastros da destruição causada pela lama. As ruínas que ficam na entrada do distrito estão soterradas quase até a altura da porta pelo rejeito, coberto por um lençol de grama que cresce desde 2015.

Objetos pessoais de antigos moradores e quase tudo o que poderia ter algum valor foram saqueado nos últimos dois anos. Ficou uma máquina de lavar, um resto de sofá, um tapete enrolado.

A igreja e a escola, um pouco mais à frente, ainda têm a fachada bicolor, dividida pelo nível que a lama atingiu. Do Bar do Jairo, ponto de encontro para o rala-bucho semanal, só sobrou a parede da frente.

A lama chegou até o quintal de Silva. A casa dele, aparentemente intacta, está cheia de rachaduras por dentro, causadas pelo desprendimento de um grande bloco de pedra do leito do rio quando o tsunami de lama passou pelo vilarejo. "A terra balançou", ele lembra. 

A escola e a igreja do vilarejo ainda trazem as marcas que a lama deixou dois anos atrás - Camilla Veras Mota/BBC Brasil - Camilla Veras Mota/BBC Brasil
A escola e a igreja do vilarejo ainda trazem as marcas que a lama deixou dois anos atrás
Imagem: Camilla Veras Mota/BBC Brasil

Os reparos na estrutura ele negocia com a Fundação Renova, que hoje responde pelas ações de reparação da mineradora Samarco e de suas controladoras, Vale e BHP Billiton. É a instituição que discute com os atingidos as indenizações, que ainda não foram pagas.

As vítimas recebem um auxílio emergencial de um salário mínimo por mês, mais 20% por dependente e o valor de uma cesta básica. Das compensações, foram antecipados pagamentos de R$ 10 mil às famílias que tinham residência de uso eventual nos distritos atingidos, R$ 20 mil às que perderam a casa em que moravam e R$ 100 mil aos parentes de desaparecidos ou mortos.

O agricultor passou quase um ano sem energia elétrica. A luz voltou depois que um dos filhos fez um apelo a um vereador conhecido, conta a esposa. No último ano, Silva replantou sua horta, voltou a criar porcos, galinhas e codornas. "Isso aqui é uma diversão", diz ele.

A família vem visitá-lo uma vez por semana. Eles comemoram os aniversários em Paracatu, com "churrasquinho e cerveja".

Ele lamenta a situação dos antigos vizinhos, especialmente os mais velhos, como ele, que não conseguem se adaptar à vida urbana de Mariana, que está a 35 km. Muitos têm sido diagnosticados com depressão e hoje tomam remédios.

"Tem muita gente lá sofrendo, e a gente está sofrendo junto com eles". 

O que restou da cidade foi saqueado depois que os moradores foram levados para Mariana - Camilla Veras Mota/BBC Brasil - Camilla Veras Mota/BBC Brasil
O que restou da cidade foi saqueado depois que os moradores foram levados para Mariana
Imagem: Camilla Veras Mota/BBC Brasil

Silva segue com a saúde de ferro, que o ajuda na rotina pesada da roça - ele faz questão de limpar o chiqueiro duas vezes por dia -, e só se queixa de uma ardência nos olhos quando o tempo fica seco e a lama que ainda está sobre o distrito vira poeira.

A Renova passa periodicamente com carros-pipa pelo vilarejo, nos períodos mais secos, para evitar que a poeira de rejeito se espalhe. A fundação afirma que a lama em si não traz riscos à saúde, que os estudos químicos feitos no material chegaram à conclusão de que ele é inerte.

Nesse sentido, um caso particular vem sendo observado entre os atingidos do município de Barra Longa, a 60 km de Mariana, que permaneceram em suas casas durante o processo de reconstrução. A poeira intensa gerada pelas obras no decorrer do último ano e espalhada pela cidade pelo trânsito de veículos pesados vem ocasionando, de acordo com os moradores, problemas respiratórios e de pele.

O início da reconstrução de Paracatu em um terreno próximo está previsto para 2018 e a entrega, para o ano seguinte. Silva não sabe se quer mudar. "Isso vai ser uma coisa que vai ter que ser muito conversada", afirma o agricultor, que se preocupa com questões como a disponibilidade de água na região escolhida para a "nova" Paracatu.

Loucos por Bento

Para tentar fugir da realidade árida da vida provisória na cidade, marcada por uma relação tensa com os marianenses, a comunidade de Bento Rodrigues, a mais afetada pelo rompimento da barragem, também tem voltado ao local do desastre. 

Mônica Quintão e a mãe, Maria das Graças, voltam a Bento Rodrigues praticamente todos os fins de semana - Camilla Veras Mota/BBC Brasil - Camilla Veras Mota/BBC Brasil
Mônica Quintão e a mãe, Maria das Graças, voltam a Bento Rodrigues praticamente todos os fins de semana
Imagem: Camilla Veras Mota/BBC Brasil

Já faz um ano que Mônica Quintão e a família passam praticamente todos os fins de semana no distrito, que permanece sem energia elétrica. A casa da tia, uma das poucas poupadas pela lama, estava suja, sem porta e sem janelas - levadas por saqueadores - na primeira vez em que dormiram lá.

À medida que a casa foi sendo recauchutada, o número de ex-moradores que participavam das excursões aumentou. Hoje, ela contabiliza 32 "loucos por Bento", como o grupo se autodenomina.

Ao contrário de Paracatu, a entrada no distrito não é livre. Apenas funcionários da mineradora, moradores e seus convidados podem circular pelas ruínas. 

Grupo dos "loucos por Bento" costuma se reunir em datas festivas, como a procissão de Nossa Senhora das Mercês (acima) - Camilla Veras Mota/BBC Brasil - Camilla Veras Mota/BBC Brasil
Grupo dos "loucos por Bento" costuma se reunir em datas festivas, como a procissão de Nossa Senhora das Mercês (acima)
Imagem: Camilla Veras Mota/BBC Brasil

A turma dos fins de semana, que improvisa a iluminação com celulares e baterias, é menor. As grandes reuniões acontecem nas datas festivas, comemoradas entre as ruínas - a procissão de Nossa Senhora das Mercês, a festa de São Bento, semana santa, virada do ano - e contam com os geradores que passaram a ser alugados pela Renova após um pedido feito pelos atingidos.

As mesas improvisadas a céu aberto são fartas de comida mineira típica. "Todo mundo ganhou peso no último ano", brinca Quintão.

Juntos, os moradores do distrito rezam, cantam, tomam banho na cachoeira que está a uma caminhada de distância e percorrem o que restou de suas casas, ainda em busca de objetos pessoais e lembranças da vida no vilarejo.