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Por que não é correto comparar os incêndios na Amazônia aos que ocorrem na Austrália

Os incêndios na Austrália deixaram milhões de hectares arrasados por chamas - AFP
Os incêndios na Austrália deixaram milhões de hectares arrasados por chamas Imagem: AFP

Juliana Gragnani - @julianagragnani - Da BBC News Brasil em Londres

08/01/2020 14h48

Pense na fumaça que sai de um vulcão. Agora, imagine compará-la à fumaça que sai do escapamento de um carro.

"São coisas completamente diferentes", diz Erika Berenguer, pesquisadora brasileira das universidades britânicas de Oxford e de Lancaster. Seria erro semelhante comparar os incêndios na Amazônia brasileira às queimadas atuais na Austrália, aponta ela.

"Não é porque é fogo que é igual. Não é uma comparação válida", afirma Berenguer, que estuda os impactos do fogo na Amazônia. "Por parte de pessoas que têm informações, é uma comparação desonesta."

A analogia com a fumaça vulcânica e a de um carro não é ao acaso. É porque a diferença essencial entre os dois tipos de fogo é a mesma daquela entre esses dois tipos de fumaça: um é, em sua maior parte natural; o outro, causado principalmente por ação humana.

Na opinião do biólogo Alexander Lees, professor da Manchester Metropolitan University, "há mais diferenças que semelhanças" entre os dois eventos. A influência do aquecimento global sobre a intensidade das situações é uma das poucas semelhanças possíveis. "Os fogos na Austrália, na Sibéria e no Brasil vão ficar piores com o aquecimento do planeta", afirma.

A BBC News Brasil ouviu especialistas que explicam em detalhes por que a comparação não é cabível.

Causas

É principalmente devido a causas tão distintas que não se pode comparar os fogos na Amazônia e na Austrália.

Jos Barlow, pesquisador da Universidade de Lancaster e da Universidade Federal de Lavras, explica que a flora australiana evoluiu com o fogo, que ocorre naturalmente em regiões do país.

"É um ecossistema que queima de tempos em tempos". Ou seja, as queimadas acontecem em sua maior parte de forma natural, pela incidência de raios. Também há uma minoria de casos de incêndios causados de forma proposital.

"Os incêndios em diversos ecossistemas australianos, como os outbacks, ocorrem naturalmente. Faz parte ter fogo com uma certa frequência, como nas florestas costeiras da Califórnia, nas savanas na África ou no cerrado brasileiro. Tem um regime de fogo", afirma Berenguer.

Mas isso, diz ela, está sendo exacerbado pelo efeitos das mudanças climáticas. "As temperaturas já estão mais altas e o período de secas mais prolongado na Austrália, o que favorece a propagação do fogo."

Também houve influência do Dipolo do Oceano Índico (conhecido como El Niño do Índico), que se refere à diferença nas temperaturas da superfície do mar em regiões opostas do oceano. No ano passado, foi "extraordinariamente forte", segundo Lees.

Isso significa que a região a oeste do Índico ficou mais quente que o normal e, a leste, mais fria, causando enchentes na África e na Indonésia e condições secas na Austrália.

"Foi mais forte que o normal, e isso é um efeito das mudanças climáticas. Está empurrando a Terra para seus limites", afirma Lees.

Já a floresta amazônica, diz ele, "sem interferência, nunca queima naturalmente". Berenguer explica que a floresta é úmida - como diz o nome em inglês, "rainforest", ou "floresta de chuvas". "O fogo não ocorre naturalmente nesse ambiente ultraúmido que é a Amazônia. Precisa ser iniciado por alguém", afirma.

Então, o fogo no Brasil teria sido iniciado em sua maior parte como parte do processo de desmatamento, quando a vegetação é derrubada, colocada ao sol para secar e depois queimada para limpar a área. As árvores viram cinzas.

Tamanho e período

A comparação entre a dimensão das queimadas nos dois países - feita anteriormente pela BBC News, outros veículos e usuários de redes sociais - tampouco poderia ter sido feita. Isso porque não só são incêndios com causas bastante diferentes, como também diferentes períodos e metodologias para a medição das dimensões.

Segundo dados do programa Queimadas, do Inpe (Instituto Nacional de Programas Espaciais), entre janeiro e novembro de 2019, uma área de 70.698 km² foi queimada na Amazônia brasileira. Isso equivale a 7 milhões de hectares. O Inpe usa dados de satélite, e ainda está processando o mês de dezembro.

Já na Austrália, de acordo com o jornal The Guardian, total queimado desde o início da temporada, em junho de 2018, até esta quarta-feira (8) é de 10,7 milhões de hectares. O jornal está compilando dados comunicados por cada Estado da Austrália.

Então, um dado é referente a quase um ano inteiro no Brasil; o outro, à temporada de incêndios na Austrália que começou em junho. E comparar o que aconteceu nos dois países no mesmo ano não seria justo, segundo Barlow, porque o Brasil teve um ano "normal" em relação à temperatura, "até bastante úmido", enquanto a Austrália teve "condições climáticas excepcionais" neste ano.

Para ele, seria menos injusto comparar o fogo na Amazônia em 2015 com a atual temporada de queimadas da Austrália. Em 2015, o fenômeno El Niño causou secas extremas na Amazônia, dando condições para que incêndios prosperassem.

O gráfico com comparação numérica incorreta entre os incêndios nos dois países foi usado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para acusar jornalistas e ONGs de "seletividade" ao abordar os dois temas. A imagem, feita a partir de dados divulgados pela BBC News, mostrava o Brasil com uma área muito menor de incêndios do que a realidade.

A BBC News havia publicado na semana passada um gráfico com dados incorretos não retirados do INPE e avisou o veículo autor do gráfico utilizado por Salles sobre o erro. O gráfico foi retirado do ar pela BBC News.

O programa Queimadas, do Inpe, dá uma estimativa "ampla e visão geral das áreas queimadas nos biomas brasileiros". Desenvolvido em parceria com o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais - LASA, do Departamento de Meteorologia da UFRJ, está em "constante atualização e validação".

Além de datas e metodologias distintas, outros aspectos que esses dados não podem traduzir complicam a comparação entre o fogo na Austrália e no Brasil.

Especialistas dizem que os números do Inpe subestimam a área queimada na região amazônica porque "os satélites têm dificuldade de detectar fogo debaixo da copa das árvores", segundo Berenguer. Os satélites detectam melhor fogo em áreas abertas ou em biomas como o cerrado ou a savana.

"A extensão da queimada na Austrália é mais clara", diz Barlow. "Mas no Brasil, no momento, ainda não sabemos quanto queimou em 2019."

Isso porque os dados do Inpe não fazem distinção entre os tipos de fogo na região amazônica: fogos após desmatamento (quando a vegetação é derrubada, deixada para secar ao sol e depois queimada), fogos em áreas de pastagens (que foram desmatadas em um período anterior, utilizadas para agricultura e cuja queima pode servir para eliminar ervas daninhas, por exemplo), e fogos florestais (quando o incêndio é descontrolado e foge dos limites de quem faz a queima, podendo ser acidental ou intencional).

Essas diferenças entre tipos de incêndio está explicada no estudo Clarifying Amazonia's Burning Crisis (Esclarecendo a Crise dos Incêndios na Amazônia, em tradução livre), publicado na revista científica Global Change Biology em novembro do ano passado, de autoria de Barlow, Berenguer, os pesquisadores Rachel Carmenta e Filipe França, e outros que preferiram se manter anônimos.

Os pesquisadores fizeram uma análise dos dados de queimada e desmatamento que contradizem o discurso oficial do governo de Jair Bolsonaro, que minimizou os incêndios na Amazônia. Segundo o estudo, os incêndios em agosto de 2019 na região foram quase três vezes maiores do que em 2018.

Impacto

Os incêndios também têm impacto diferente nos dois ecossistemas.

"Em ecossistemas que evoluíram com o fogo, ele não causa um impacto tão grande", diz Berenguer, em relação à Austrália. "Um fogo dessa severidade vai levar à mortalidade de árvores e de animais, só que o ecossistema é mais resiliente ao fogo. Ele vai se recuperar numa taxa mais rápida", afirma.

Ela dá um exemplo: em ecossistemas que evoluíram com o fogo, as árvores têm casca bem grossa, formando uma barreira contra chamas. Já as cascas das árvores na Amazônia são bastante finas.

Segundo ela, o fogo, quando entra na Floresta Amazônica, causa uma mortalidade de cerca de metade das árvores. "A floresta fica como um queijo suíço, esburacada. Vai entrar mais vento, mais sol, e deixar a floresta mais quente e seca", afirma.

"Não sabemos ainda o tempo que demora para a Amazônia se recuperar", diz Berenguer. Quando a vegetação nativa queima, ocorre uma substituição de espécies, adaptadas a esse tipo de condição. Após o fogo, nos 10, 20 anos seguintes, ocorre uma mudança nas espécies presentes na floresta.

Reação política

Há mais semelhanças na maneira como o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, e o presidente Bolsonaro, lidaram com os eventos do que entre os próprios eventos, opina Lees. "A semelhança está no caráter negacionista nos dois governos", diz Berenguer.

Em agosto do ano passado, quando os incêndios na Amazônia ganharam manchetes em todo o mundo, Bolsonaro minimizou os dados da Nasa (agência espacial dos EUA) e do Inpe. Ambos apontavam maior número de focos de incêndio no Brasil em nove anos.

Depois, o presidente também afirmou que ONGs teriam causado o fogo como resposta à redução de repasses de verbas federais a elas.

Quando o caso ganhou ampla repercussão nacional e internacional - sendo debatido até por líderes na cúpula do G7 -, o governo brasileiro decidiu enviar tropas do Exército para combater os incêndios.

O primeiro-ministro australiano também foi acusado de estar sendo negligente perante a crise - passou, inclusive, alguns dias de férias no Havaí - e tem sido criticado por subestimar os efeitos do aquecimento global nos incidentes.

Só em dezembro Morrison admitiu haver uma conexão entre os incêndios e as mudanças climáticas, "entre outros fatores".

A influência da ação humana sobre as mudanças climáticas não é um consenso entre integrantes do governo Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, por exemplo, já disse ser contrário ao "alarmismo climático".

Para Barlow, das universidades de Lavras e de Lancaster, estão "tentando fazer com que as pessoas joguem um jogo de 'o que é pior'. Os dois são ruins. Dizer que um é pior que o outro não vai nos ajudar. Os dois governos têm o devem de atacar os problemas".