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Amazônia: agricultores causam maioria das queimadas, e não índios e caboclos, diz cientista Carlos Nobre

Cientista Carlos Nobre critica fala do presidente Bolsonaro na ONU - Reuters
Cientista Carlos Nobre critica fala do presidente Bolsonaro na ONU Imagem: Reuters

Rafael Barifouse

Da BBC News Brasil em São Paulo

23/09/2020 08h37

Diferentemente do que disse o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no discurso de abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a maioria dos incêndios na Amazônia não ocorre em áreas já desmatadas nem é provocada por caboclos e índios para ampliar seus roçados, diz Carlos Nobre, um dos principais estudiosos do tema no Brasil.

Nobre é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas.

À BBC News Brasil, o cientista diz que monitoramentos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da agência especial americana, a Nasa, mostram que a mais da metade da área queimada na região amazônica é de floresta que ainda estava de pé.

"É o famoso e tradicional processo de expansão da área de agropecuária, e quase tudo, acima de 80% dessa expansão, é feita por grandes propriedades", diz Nobre, que é doutor em meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT).

De acordo com o cientista, a Amazônia se aproxima de um ponto de não retorno, em que a floresta perderia a capacidade de se regenerar diante da degradação causada pelo homem e haveria mudanças drásticas e permanentes do ecossistema.

Isso exige mudar o modelo de desenvolvimento econômico da região, diz Nobre, e uma ação energética por parte do Bolsonaro.

"Se de fato ele tem tolerância zero com o crime ambiental, e o desmatamento responde por mais de 90% do crime ambiental, o desmatamento tem que zerar. Então, que se cobre isso do presidente."

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - O presidente afirmou em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU que a maior parte dos incêndios na Amazônia é causada em áreas já desmatadas, por caboclos e índios que buscam ampliar seus roçados. Esse entendimento é respaldado pelo que apontam os dados científicos?

Carlos Nobre - A grande maioria dos incêndios do Pantanal e da Amazônia é de origem humana. Os incêndios por descargas elétricas, de causas naturais, ocorrem normalmente na transição da estação seca para a estação chuvosa, que no Pantanal é entre outubro e novembro; e na Amazônia, no oeste, é entre setembro e outubro, e indo pro leste, entre outubro e novembro. Então, tudo que nós vimos desde julho são praticamente todos incêndios de origem humana.

O segundo ponto é que mapeamentos bastante rigorosos, feitos em 2020, tanto pelo Inpe quanto pela Nasa mostram que acima de 50% da área queimada na Amazônia é mata derrubada. É o famoso e tradicional processo de expansão da área de agropecuária. E quase tudo, acima de 80% dessa expansão, é feita por grandes propriedades, não é o pequeno agricultor ou o caboclo ou a roça indígena. O pequeno agricultor e o caboclo usam fogo, todos usam, mas o número de área queimada pela pequena agricultura é relativamente pequeno, A grande maioria é área queimada pela expansão de grandes propriedades.

Bolsonaro já falou isso antes. É um discurso que ele vem fazendo desde o pico de incêndios na Amazônia em agosto do ano passado, e já houve inúmeros cientistas que já mostraram que não é o caso, então, não é uma frase apoiada pelo conhecimento científico, pelos dados que estamos vendo com os satélites e estudos de campo.

O presidente também mencionou que a floresta é úmida, mas isso não impede que em um ano de muita seca, como esse, o fogo se espalhe pelo chão da floresta. O Inpe e da Nasa analisaram focos que acontecem na floresta e chegaram à conclusão que, por causa da seca e da degradação da floresta, o chão da floresta queimou bastante. Um incêndio detectado pelo sistema da Nasa queimou 23 mil hectares.

BBC News Brasil - O presidente afirmou que o Brasil é alvo de uma grande campanha de desinformação sobre as queimadas na Amazônia e no Pantanal. O senhor concorda?

Nobre - Não existe essa campanha. Os satélites não mentem. Eles veem fogo na Califórnia, no Pantanal. No verão passado, viram o maior incêndio da história da Austrália. Não é uma campanha, não. Alguém na Califórnia ou no Oregon vai dizer que não estão acontecendo incêndios? Ou que neste verão no Ártico a área de permafrost congelada pegou fogo? Isso aí é não querer ver, é querer tapar o sol com a peneira. Os incêndios são todos visíveis.

BBC News Brasil - Bolsonaro diz que há um exagero na reação pública aos incêndios nestes biomas porque eles sempre teriam ocorrido.

Nobre - Incêndios causados pelo homem na Amazônia de fato ocorrem desde que o Brasil resolveu ocupar a Amazônia com a destruição da floresta. Esses incêndios ocorrem, sim. Mas agora estamos vivendo uma crise climática, não podemos mais aceitar práticas destrutivas da floresta e da biodiversidade e silenciar como no passado. Estamos entrando em um momento crítico global, e perder a Floresta Amazônica aumenta muito o risco das mudanças climáticas.

O fato de ter acontecido muitos incêndios no passado não significa que não se tenha que criticar esse modelo de desenvolvimento da Amazônia, com desmatamento ilegal, incêndios ilegais, grilagem de terra... Estamos muito perto do ponto de não retorno do clima do planeta global e também na Amazônia.

Não há como aceitarmos um equívoco, um erro, um modelo errado de desenvolvimento da Amazônia que ocorreu no passado. Tem um momento em que não podemos mais dizer que porque ocorreu no passado pode continuar a ocorrer no futuro. Tem que parar.

BBC News Brasil - Quando ocorreria esse ponto de não retorno?

Nobre - Estamos vendo muitos sinais no sul da Amazônia de aumento da duração da estação seca. Está muito mais quente, e há uma diminuição da reciclagem da água da floresta. Se essa estação seca ficar muito maior do que quatro meses, isso é um clima de cerrado.

Vários estimativas apontam que, se o desmatamento passar de 20% a 25% da área da Amazônia, a efetividade da reciclagem de água diminui tanto que provavelmente estaremos em um ponto de não retorno. Estamos com cerca de 16% a 17% de desmatamento, então, estamos muito próximos. Com a taxa de desmatamento atual, ele ocorrerá entre 15 e 30 anos.

BBC News Brasil - O presidente afirmou hoje em seu discurso e em outras ocasiões que há interesses ocultos na proteção ambiental no Brasil, como uma forma de limitar o desenvolvimento econômico do país. Como o senhor avalia essa argumentação?

Nobre - Não sei de onde vem essa argumentação dele. Essa avaliação do presidente ignora a vontade dos brasileiros. As últimas pesquisas mostram que 95% dos brasileiros são contra o desmatamento da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal... Então, o presidente ignora a vontade do povo brasileiro?

Nem estou discutindo o aspecto econômico, porque muitos estudos mostram que o potencial econômico da floresta em pé é muito superior ao de eliminar a floresta, então, não vou nem entrar o debate econômico. Mas, mesmo que não fosse assim, se 95% dos brasileiros são contra o desmatamento, como um político pode defender 5% da população?

Em uma democracia, o presidente deveria ser o primeiro a defender uma política com desmatamento zero e restauração florestal. Há aí um problema de democracia, não é nem de economia.

BBC News Brasil - O Brasil é de fato líder em conservação ambiental, como afirmou o presidente?

Nobre - O Brasil é o país que tem a maior floresta tropical do planeta, isso é verdade. Mas percentualmente falando Suriname, Guiana e Guiana Francesa têm um percentual de floresta mais preservado. O Brasil tem 20% de sua Amazônia desmatada. A grande preocupação é a velocidade do desmatamento.

Se a Amazônia se "savanizar", os estudos mostram que perderemos de 200 a 300 bilhões de toneladas de gás carbônico para atmosfera, complicando muito as metas do aquecimento global do Acordo de Paris e uma imensa biodiversidade, modificamos o clima da Amazônia, do Cerrado, de outras partes do Brasil. Então, é um risco enorme que estamos correndo.

BBC News Brasil - O Brasil faz um combate rigoroso aos crimes ambientais, conforme declarou Bolsonaro?

Nobre - Não, de jeito nenhum. O Brasil teve uma ação mais efetiva entre 2005 e 2014, com um nível mínimo de desmatamento da Amazônia, com uma atuação muito efetiva das polícias federal e estaduais, do Ibama, de órgãos estaduais, o que aumentou muito o risco dos criminosos ambientais.

Durante este período, o desmatamento caiu de mais de 20 mil km2 para menos de 5 mil km2 por ano, e a produção agropecuária na Amazônia dobrou. Dobrou. Não há nenhuma relação entre produção e desmatamento. Produção é produtividade. A produtividade do gado na Amazônia é muito baixa. Com uma parcela da área já desmatada, dá pra aumentar muito a produção do gado. Então, não há muita justificativa para o argumento da expansão contínua da fronteira de desmatamento.

Como quem financia quase toda essa expansão é o crime ambiental organizado, é preciso uma ação muito enérgica do governo, dos órgãos de fiscalização para diminuir isso. Não é fácil, mas a gente já aprendeu como fazer isso naquele período em que o desmatamento caiu.

BBC News Brasil - Qual balanço o senhor faz do discurso do presidente no tocante à questão ambiental?

Nobre - O presidente falou algo que ele disse em agosto do ano passado: tolerância zero com crime ambiental. Se de fato ele tem tolerância zero com o crime ambiental, e o desmatamento responde por mais de 90% do crime ambiental, o desmatamento tem que zerar. Então, que se cobre isso do presidente.