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Chegada da usina ameaça o modo de vida do povo jabuti no Pará

Para evocar a inteligência e a estratégia de defesa do jabuti, os índios mundurucus pintam a pele com traços iguais ao da casca desse animal - Marcio Isensee e Sá/ Agência Pública
Para evocar a inteligência e a estratégia de defesa do jabuti, os índios mundurucus pintam a pele com traços iguais ao da casca desse animal Imagem: Marcio Isensee e Sá/ Agência Pública

Ana Aranha e Jessica Mota

Da Agência Pública, no Pará

12/12/2014 06h00

Apesar do agito na aldeia com as discussões sobre a usina, os mundurucus da Sawré Muybu mantêm a rotina de ligação íntima com a terra. De manhã, mulheres varrem suas casas, que têm chão de barro, paredes de madeira cheias de frestas e teto de folhas de babaçu. Galinhas e cachorros rapidamente comem o que foi varrido para fora. Quase não há lixo não-orgânico.

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Os adultos cuidam do roçado, pescam e caçam. A água é tirada de um igarapé cristalino que banha a aldeia. Ao sair da escola, as crianças correm de um lado ao outro e comem frutas do pé. A única birra que presenciamos foi a respeito do banho: “A mãe só me deixa banhar três vezes por dia!”, reclamou um menino que já havia estourado a cota num dia de calor e sol. Minutos depois, ele se jogou na água gelada do igarapé com um sorriso de orelha a orelha.

O cardápio é sempre uma surpresa. Só se descobre quando os pescadores e caçadores voltam. As adolescentes limpam a carne e separam uma porção por família. Para cada dia que a reportagem passou na aldeia, houve uma carne diferente: tatu, jabuti, veado e os saborosos porcos do mato, conhecidos como caititu e porcão. A variedade de peixes foi tanta que perdemos a conta.

É difícil imaginar como será a sobrevivência dessa população em um ambiente com pouca oferta de caça e peixe.

Entre todas as incertezas trazidas pelas usinas, o maior medo é o de serem removidos para a cidade. “A gente não sabe viver como vocês” explica Aldira Akai Munduruku. “Sempre a gente viveu no meio do mato, caçando, pescando. Na cidade a gente depende do dinheiro. Se não tiver, a gente não come, não”. Grávida de cinco meses e mãe de uma menina de 2 anos, Aldira guarda a lembrança da fome dos anos em que viveu na cidade de Jacareacanga quando criança.

Nas histórias contadas pelos mais velhos, narrativas que misturam homens e bichos na mesma entidade, o jabuti é o herói mais presente. Graças à sua inteligência e estratégia, ele sempre vence a força e a prepotência dos inimigos: a anta, a sucuri e a onça. É para evocar essas habilidades que os guerreiros se pintam com traços iguais aos da sua casca.

As histórias do passado de guerras também são presentes. Na segunda metade do século 18, foram tantos os ataques a acampamentos portugueses, que por sua vez despertaram a reação dos agentes coloniais, que um dos afluentes do Tapajós ganhou o nome de rio das Tropas. Dessa época, eles levam a fama de “caçadores de cabeça”. Como o nome sugere, eles cortavam o pescoço do inimigo abatido e, após um processo de mumificação, enfiavam sua cabeça em uma lança, que era fincada nas fronteiras do território. A prática foi abandonada há mais de um século, mas os mundurucus evocam seu poder simbólico ao pintar essa imagem nas placas da autodemarcação.

Embora defendam seu território, eles não gostam do rótulo de violentos. “Os mundurucus são pacíficos. Mas, quando toca na ferida, aí fica bravo”, diz Deusiano Saw Munduruku, professor na escola de Sawré Muybu. O nome do movimento de resistência às usinas é Ipêreg Ayû, que significa “o povo que sabe se defender”. Roseninho explica: “O governo diz que nós somos ameaçadores. Mas nós é que estamos sendo ameaçados”.