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Peixe é o vertebrado mais comum do planeta

Exemplar do peixe boca-de-cerda - Scripps Institution of Oceanography
Exemplar do peixe boca-de-cerda Imagem: Scripps Institution of Oceanography

William J. Broad

07/07/2015 10h34

Os habitats em terra -- florestas tropicais, estepes, bosques, prados alpinos, todos bem explorados ao longo dos séculos -- correspondem a menos de um por cento da biosfera do planeta. Por que tão pouco? A faixa da vida é estreita. O solo fértil não tem grande fundura e mesmo as árvores mais altas se estendem apenas algumas dezenas de metros. Os pássaros podem voar alto, mas precisam voltar ao solo para se alimentar.

Na água, porém, a história é diferente. Ela cobre mais de 70 por cento da superfície da Terra, com profundidades de quilômetros. Cientistas acreditam que os oceanos respondam por mais de 99 por cento da biosfera. Os pescadores conhecem as águas superficiais e os exploradores, suas profundezas. Porém, em geral, comparado a terra, o oceano global é desconhecido.

O que ajuda a explicar os motivos pelos quais os cientistas somente recentemente chegaram à conclusão de que o boca-de-cerda -- peixe da faixa intermediária das profundezas que brilha no escuro e tem uma abertura extraordinária da boca, com presas que parecem agulhas -- é o vertebrado mais numeroso do planeta.

"Eles estão em todo lugar", declarou Bruce H. Robison, biólogo marinho do Instituto de Pesquisa do Aquário da Baía de Monterey, Califórnia. "Todo mundo concorda. É o mais abundante do planeta."

Para os padrões humanos, o animal é minúsculo -- menor do que um dedo. Porém, esse peixinho estranho com ossos compensa o tamanho diminuto com números impressionantes, além de alguns truques de comportamento.

Ele é um transgênero, começando a vida como macho e, em alguns casos, se tornando fêmea. Os cientistas chamam o fenômeno de "protandria" -- isto é, um hermafrodita que primeiro é macho --, também visualizado em vermes, moluscos e borboletas.

John C. Avise, autor de um livro sobre o hermafroditismo, disse que o peixe-boca-de-cerda macho tendia ser menor do que a fêmea e tinha olfato mais bem desenvolvido -- aparentemente, ele avalia, para encontrar parceiras na escuridão.

"Eles ocupam um ambiente difícil de acessar", Avise afirmou, e existe "pouca e preciosa informação" sobre seu comportamento.

Uma forma levemente repulsiva de aumentar essa informação tem sido inspecionar o conteúdo estomacal de peixes maiores. Entre os predadores do boca-de-cerda estão o peixe-dragão e peixe-ogro, moradores das águas abissais dotados de dentes afiados como facas.

Embora a descrição do "boca-de-cerda" seja incompleta, os cientistas sabem o bastante para afirmar com confiança que ele supera com grande vantagem todos os outros concorrentes pelo título de vertebrado mais comum.

Noah Strycker, autor de um livro sobre aves, declarou recentemente a um entrevistador que a galinha doméstica "tem mais exemplares" do que qualquer outro vertebrado.

Ele estimou a cifra planetária em 24 bilhões.

Em comparação, os ictiólogos afirmam que o total provável de bocas-de-cerda seja de centenas de trilhões -- e, talvez, quatrilhões.

"Nenhum outro animal chega perto", disse Peter C. Davison, cientista especializado em peixes do Instituto Farallon de Pesquisa Avançada do Ecossistema, de Petaluma, Califórnia. "Existe uma dúzia deles por metro quadrado do oceano."

O boca-de-cerda é uma família voraz de peixes de águas profundas que incluem o gênero incrivelmente bem-sucedido "Cyclothone" ("circular" em grego) -- uma suposta referência à espantosa boca da criatura.

O gênero tem 13 espécies, tais como o boca-de-cerda-escuro. As principais características que os distinguem são diferenças sutis nas barbatanas e nos órgãos luminosos. Todos os membros têm dentes que lembram cerdas. No geral, o peixe tem de 2,5 a sete centímetros, com as cores variando de bege ao preto, às vezes apresentando uma translucidez fantasmagórica.

As primeiras pistas da onipresença do peixe surgiram durante a viagem do HMS Challenger, navio britânico que navegou pelo globo entre 1872 e 1876, ajudando a assentar as bases da oceanografia. O barco baixou redes em dezenas de pontos de pesquisa e levantou criaturas que estavam até 4,8 quilômetros de profundidade.

Os relatórios grossos da expedição descreviam os peixinhos como portando fileiras de órgãos luminosos, mandíbulas extravagantes e dentes afiados. Os estudos observaram espécies diferentes, mas diziam pouca coisa mais. O mero fato de se conhecer a existência do animal era o suficiente.

O primeiro cientista a ver os animais em seu habitat escuro foi William Beebe. No começo da década de 1930, Beebe, explorador tarimbado do que agora é a Wildlife Conservation Society, mergulhou nas profundezas das costas das Bermudas num submersível esférico, olhou por suas vigias e viu alienígenas.

"Criaturinhas incalculáveis" corriam por seu raio de luz, escreveu o cientista em um livro de 1934. Eram os bocas-de-cerda. Uma chapa colorida no livro mostra um grupo de mandíbulas abertas perseguindo um cardume de copépodes, crustáceos minúsculos com antenas longas.

Paulatinamente, o boca-de-cerda ganhou o título de abundância à medida que mais redes e mergulhadores exploravam as profundezas. Em 1954, N.B. Marshall, famoso biólogo marinho do Museu Britânico e autor de um livro sobre a biologia das águas abissais, os chamou de "o peixe mais comum do oceano".

Porém, um mistério obscureceu a afirmativa.

Durante a Guerra Fria, a Marinha norte-americana ficou intrigada com um fenômeno global conhecido como a camada profunda de dispersão, que refletia as ondas sonoras para a superfície com tanta eficiência que, às vezes, era confundida com o leito marinho.

Os biólogos julgaram que ela fosse composta de hordas de coisas vivas porque migrava para perto da superfície à noite e voltava para baixo durante o dia. A Marinha queria compreender melhor a camada para aprimorar o rastreio de submarinos inimigos, bem como se esconder deles.

A pesquisa mostrou que a região era composta de muitas criaturas -- krill, lulas e longos animais gelatinosos conhecidos como sifonóforos. A camada abrigava muitos peixes, mas aparentemente poucos bocas-de-cerda, que conseguiam evitar a nadada noturna rumo à superfície.

Se o peixe mais comum na verdade tinha pouco a ver com a camada fervilhante, será que a abundância fora exagerada? Livros didáticos sobre o oceano publicados entre as décadas de 1970 e 90 pouco falavam do Cyclothone, o principal gênero dos bocas-de-cerda. Em silêncio, o rei fora destronado.

Então, chegou uma nova onda de pesquisa, centrada em redes de arrasto cuidadosas no oceano profundo com uma nova geração de redes nas quais a malha era muito mais fina. Independentemente da profundidade a que baixavam, elas subiam com quantidades enormes de bocas-de-cerda.

Uma equipe que vasculhou o fundo do Atlântico, até uma profundidade superior a cinco quilômetros, relatou em 2010 que o peixinho "dominava a pesca".

Davison, do Instituto Farallon, quando era aluno de pós-graduação do Instituto Scripps de Oceanografia, trabalhou com colegas para investigar a costa do Pacífico, ao largo do Sul da Califórnia, repetidas vezes entre 2010 e 2012. Novamente, o peixinho dominava.

No ano passado, oceanógrafos da Espanha, Austrália, Noruega e Arábia Saudita publicaram um estudo realizado durante um cruzeiro de pesquisa que circum-navegou o globo, para sondar a densidade da vida das profundezas escuras. Outra vez foi reafirmado que os bocas-de-cerda do gênero "Cyclothone" eram "os vertebrados mais abundantes da Terra".

Durante décadas, Robison, do Instituto de Pesquisa do Aquário da Baía de Monterey, utilizou robôs para explorar o Cânion de Monterey, garganta profunda no leito marinho costeiro da Califórnia que desce a mais de 1,5 quilômetro. Ao contrário da maioria dos oceanógrafos, ele observou de perto enxames das criaturinhas no habitat nativo.

"Seu padrão natatório tem pouco a ver com o dos peixes", ele declarou durante entrevista. "Nos menores, o corpo inteiro trabalha, ondulando e serpenteando pela água. Não é um comportamento natatório típico com a barbatana."

Robison acrescentou que os bocas-de-cerda têm olhos muito pequenos no habitat sombrio, os quais parecem desempenhar um papel pequeno, se é que têm algum, na captura das presas. Em vez disso, como muitos vertebrados aquáticos, o peixe parece se valer da linha lateral -- sistema de órgãos sensoriais que podem detectar o movimento e a vibração nas águas ao redor. Os órgãos se estendem no sentido do comprimento dos dois lados do corpo do peixe, da região das guelras ao rabo.

E as fileiras de pontos brilhantes no abdome do boca-de-cerda? Robison disse que eles pareciam ser camuflagem, ajudando o bicho a se esconder dos predadores.

Na zona do oceano pouco banhada com luz solar, é difícil para os predadores verem para baixo, mas, durante o dia, é possível observar as coisas acima, que aparecem como silhuetas. Para não se revelarem, algumas espécies de predadores usam pontos bioluminescentes para se mesclar à luz ao redor, estratégia conhecida como contraluz.

Robison disse que os bocas-de-cerda pareciam usar a "contraluz para que as sombras não fossem vistas". Segundo ele, cientistas demonstraram experimentalmente que as criaturas do oceano podem fazer as silhuetas sumirem, e que a intensidade e o comprimento de onda dos órgãos incandescentes podem mudar para combinar exatamente com a luz ao redor.

"Todavia, ninguém ainda conseguiu provar que o ardil da contraluz possa mesmo enganar um predador", afirmou Robison.

Demorou quase 150 anos, mas a ciência finalmente passou a conhecer muito bem o boca-de-cerda e seus trilhões de exemplares, ainda que nem todas as questões tenham sido respondidas. O mesmo não se dá com outras criaturas abissais. Se o caminho tortuoso para identificar o peixe dominante servir como algum indicativo, vai demorar ainda mais para a ciência descobrir as formas de vida incomuns que vagam pelas profundezas sem sol -- a maior biosfera do planeta.

"Nós continuamos a ver criaturas diferentes que nunca havíamos visto", disse Robison a respeito das viagens pelo Cânion de Monterey e outros lugares. "Quanto mais fundo se vai, mais estranhas as coisas ficam."

Atualmente, o total de espécies animais no planeta soma perto de dois milhões, incluindo os bocas-de-cerda. Para Robison, o oceano global pode abrigar mais de um milhão de espécies desconhecidas pela ciência.

"É pelo menos um milhão. Isso porque existem muitos lugares que ainda não visitamos."