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Privatização e aumento das tarifas: o que pode mudar com a MP do Saneamento

Esgoto sem tratamento que desemboca no rio Xingu, na cidade de Altamira, sudoeste do Pará; 45% da população do país não possui tratamento adequado de esgoto - Anderson Barbosa / Fotoarena
Esgoto sem tratamento que desemboca no rio Xingu, na cidade de Altamira, sudoeste do Pará; 45% da população do país não possui tratamento adequado de esgoto
Imagem: Anderson Barbosa / Fotoarena

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

13/05/2019 04h00

Caminha em ritmo acelerado no Congresso a Medida Provisória 868, que altera o Marco Legal do Saneamento, conjunto de leis e diretrizes para a implementação do saneamento básico nas cidades do país.

Tramitando em regime de urgência, a MP foi um dos últimos atos de ofício do ex-presidente Michel Temer (MDB) e hoje é apoiada pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL).

O novo marco já obteve sinal positivo na comissão mista formada no Congresso, que votou favoravelmente ao parecer do relator Tasso Jereissati (PSDB) na última quarta-feira (8). O projeto foi alterado com emendas e agora está na mesa diretora da Câmara dos Deputados.

Desde sua apresentação, a MP vem sendo criticada por instituições do setor, estudiosos e pesquisadores. Além do governo, empresários e multinacionais que atuam com saneamento são defensores da novas regras e argumentam que o Estado não está dando conta dos investimentos necessários.

Uma maior abertura para o capital privado pode, segundo os críticos, acarretar maiores tarifas para a população, já que as empresas privadas não desfrutam dos mesmos privilégios que as públicas na hora de fazer um empréstimo, por exemplo, e não têm de atender determinada função social.

Hoje, estão programadas manifestações em pelo menos sete capitais contra a MP. Os protestos serão conduzidos pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), com o apoio da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental.

Como funciona o saneamento no Brasil

A implementação de saneamento básico no país é regida pela Lei 11.445 de 2007. O artigo 2º estabelece que o saneamento é o conjunto de serviços operacionais de:

  • Abastecimento de água potável;
  • Esgotamento sanitário, envolvendo coleta, transporte, tratamento e disposição final no meio ambiente;
  • Limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos;
  • Drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.

A titularidade do serviço de Saneamento Básico é dos municípios, e estes têm três possibilidades para gerir estas atividades:

  • Administração pública direta, quando o município se encarrega de prestar os serviços de saneamento;
  • Contratos de programa, instrumento utilizado pelo município para contratar empresas estatais (Sabesp, por exemplo) para realizar o serviço de saneamento;
  • Licitação para contratação de empresas privadas.

"Para a época, são normas bem avançadas. A lei traz elementos inovadores, ela enxerga a necessidade dos mais pobres. Não acho que seja um modelo perfeito, as companhias estaduais têm problemas, mas a ideia de uma solidariedade entre os municípios maiores e menores não pode ser ignorada", diz ao UOL Leo Heller, pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o direito à água e ao saneamento.

Dados de 2017 (último ano analisado) levantados a partir do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) mostram que a situação do abastecimento de água no país é estável: 93,01% dos municípios são atendidos.

O tratamento de esgoto, no entanto, é um problema mais extenso. Segundo o Atlas Esgotos, elaborado pela Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental e pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2017, 45% da população do país não possui tratamento de esgoto adequado.

Outro problema é o volume de perdas. O país desperdiça, em média, 38,1% da água distribuída, conforme dados do Instituto Trata Brasil.


Um dos motes da MP do Saneamento diz sobre a universalização do serviço, garantida na lei de 2007. Em um dos cenários traçados pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), elaborado em 2013, o país deveria atingir essa universalização daqui a 14 anos, com cerca de R$ 300 bilhões de investimentos no setor entre 2014 e 2033.

Estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra, contudo, um investimento médio bem menor: entre 2010 e 2017, de R$ 13,6 bilhões por ano. O pico foi em 2014, quando houve R$ 15,2 bilhões de investimentos em saneamento.

Segundo a pesquisa "Saneamento Básico: Uma Agenda Regulatória e Institucional", o país precisaria aumentar esse montante em pelo menos 60% ao ano (média de cerca de R$ 21,6 bilhões) para alcançar a universalização em 2033. Hoje, cerca de 80% do total de investimentos é público, e 20%, privado.

Dessa forma, a crise fiscal que assola o país acabou pavimentando um caminho para os defensores da iniciativa privada no setor, partindo do princípio de que os estados não teriam mais recursos para investir. Atualmente, são 106 prestadores privados (Organizações Sociais, empresas privadas e empresas mistas com administração privada) e 1.429 públicos (autarquias, administração pública direta, empresa pública e empresa mista com administração pública) atuando no saneamento dos municípios.

"Duas facas no pescoço dos prefeitos"

A principal mudança com a MP do Saneamento diz respeito à forma de gestão da água e esgoto dos municípios e, consequentemente, à entrada de capital privado no setor. A nova lei de saneamento estabelece que os estados deverão criar "blocos" de municípios para negociar a prestação dos serviços.

Segundo Heller, a MP "não está sintonizada com o mundo". "Houve um aumento das privatizações nos anos 1980 e 1990, mas esse processo apresentou fissuras. Depois disso houve um processo de 'remunicipalização', em que os contratos foram cancelados por vários motivos. Isso aconteceu em Buenos Aires, Paris, Berlim, cidades emblemáticas. Hoje, há uma certa tendência pelo contrário, para não privatizar", afirma.

Dois artigos são considerados os mais delicados pelas instituições contrárias à MP. O artigo 10 acaba com o modelo de contrato de programa, ou seja, só restarão duas possibilidades aos municípios: administração direta ou licitação. Os contratos que estão vigentes poderão ser cumpridos, mas, após o término, os municípios não poderão mais recorrer a esse tipo de parceria.

"Não vai mais existir alternativa para que as cidades de São Paulo façam parceria com a Sabesp, por exemplo. O grande problema disso são os municípios pequenos. Essa extinção dos contratos de programa pode desestruturar o saneamento do país", diz Roberval Tavares de Souza, presidente da Abes.

O artigo 13, que libera a alienação das ações das empresas estatais de saneamento, também causa preocupação. Na prática, é um dispositivo legal que permite que essas empresas sejam privatizadas. A nova lei ainda cita um "apoio técnico e financeiro" da União para a venda das ações das empresas estatais.

Caso as empresas sejam privatizadas, os contratos de programa com os municípios poderão ser renegociados. Se os municípios não aceitarem os novos termos, terão de pagar indenizações para essas empresas pelos serviços prestados e "ainda não amortizados".

São duas facas no pescoço dos prefeitos. Eles não terão saída. Ou pagam as indenizações, e as cidades estão com problemas fiscais, ou aceitam as condições da empresa privada. Para deixar claro, nós somos totalmente a favor da entrada de capital privado. Mas não desse jeito
Roberval Tavares de Souza, presidente da Abes

Presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Roberto Cavalcanti enxerga como positivo o artigo das indenizações, mas diz que acabar com os contratos de programa é o "pior equívoco". "No fim, o município não terá dinheiro para fazer a administração direta e só vai sobrar a licitação com empresas privadas", diz à reportagem.

O receio com a MP diz também sobre o aumento das tarifas. "A grande parte dos recursos das empresas privadas de saneamento vem das taxas cobradas, e outra parte vem dos bancos públicos, por meio de linhas de financiamentos na Caixa e no BNDES. Existe uma ideia de que a empresa privada vai trazer recurso para obras, e não é assim que funciona", diz o pesquisador Leo Heller.

"As empresas privadas vão escolher os blocos de municípios mais rentáveis, e os blocos menos rentáveis vão sobrar. Obviamente as taxas podem aumentar para compensar esse desequilíbrio", afirma Cavalcanti.

Souza e outras pessoas ouvidas pela reportagem afirmam que a MP do governo não diz respeito ao saneamento básico, mas tem como objetivo amenizar a dívida fiscal dos estados. Em um dos documentos elaborados pelo governo federal para defender a medida, o texto é claro ao afirmar que a MP colabora "com a recuperação fiscal dos estados". "Estimativas apontam que as empresas estaduais de saneamento básico podem valer de R$ 130 a R$ 170 bilhões", diz o documento.

Para a Abcon (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Servicos Públicos de Água e Esgoto), o novo marco legal não estimula o modelo de privatização, "ao contrário, incentiva a formação de blocos de municípios para a concessão". "O Brasil não está indo contra uma tendência mundial de 'remunicipalização'", disse a instituição em nota.

Do Tocantins para o Brasil

Três entrevistados diferentes ressaltaram que a MP do Saneamento pode exportar para todo o país o modelo que vigora hoje no Tocantins. A principal companhia de saneamento do estado, responsável pela grande maioria dos municípios, era a Saneatins, privatizada em 1998 após aquisição do Grupo Odebrecht. Depois, teve seus ativos vendidos novamente pela construtora e hoje chama-se BRK Ambiental.

O modelo tornou-se insustentável em 2010, quando o governo do estado teve de realizar um acordo com a empresa e criar uma autarquia (espécie de empresa pública), a Agência Tocantinense de Saneamento (ATS). O contrato foi colocado em prática em 2013, e a estatal assumiu os serviços de saneamento de 78 dos 139 municípios do estado. A ATS também tem de cuidar das quase 300 mil pessoas que vivem na zona rural --área que demanda mais investimentos. Já a Odebrecht Ambiental (hoje BRK) ficou responsável por 47 cidades, entre as mais populosas do estado, incluindo a capital Palmas.

"A iniciativa privada ficou com o filé e o estado ficou com o osso", diz Roberval Souza, presidente da Abes. "É o Tocantins expandido para o Brasil inteiro. Apostar todo o futuro do saneamento nesse modelo é muito preocupante", completa Heller.