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Estudo aponta que um sexto do território brasileiro é 'terra de ninguém'

Vista aérea de área de preservação permanente com enorme parte desmatada em Nova Ubiratã (MT) - Fernando Donasci/Folhapress
Vista aérea de área de preservação permanente com enorme parte desmatada em Nova Ubiratã (MT)
Imagem: Fernando Donasci/Folhapress

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

02/07/2019 04h00

A cooperação entre pesquisadores de institutos e universidades nacionais e internacionais condensou uma informação, até então, pouco conhecida: uma área de 141 milhões de hectares, o equivalente a cerca de um sexto de todo o território brasileiro, é de propriedade desconhecida pelo governo.

O território, que, somado, abrange área correspondente a três vezes o tamanho do Paraguai, foi revelado pela pesquisa "A Quem Pertencem as Terras Brasileiras?", publicada no último dia 25 na revista Land Use Policy.

"Do total de 8,5 milhões de quilômetros quadrados [do país], 36,1% de todas as terras são públicas, 44,2% são privadas e 16,6% não são registradas ou têm propriedade desconhecida", aponta o estudo.

Foram observadas 18 bases de dados de terras públicas e privadas, incluindo informações do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), do Exército Brasileiro e do Cadastro Ambiental Rural (CAR) --instaurado após a aprovação do Código Florestal, aprovado em 2012.

Entre as instituições que respaldaram o estudo, estão o GeoLab da Esalq/USP (Universidade de São Paulo), o Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), o Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) e o Stockholm Environment Institute, da Suécia.

"Impressiona saber que um sexto do Brasil não está em nenhum banco de dados, a gente não sabe quem está lá. Imaginamos que sejam terras privadas que não tenham registro no CAR, mas não dá para ter certeza. É uma grande dúvida sobre um território imenso. É possível que tenha gente se escondendo do estado e pode ser também que o estado não tenha encontrado populações originais daqueles territórios", diz Luís Fernando Guedes Pinto, pesquisador do Imaflora e coautor do artigo.

Ao UOL, Guedes relatou uma saga dos pesquisadores para concluírem o estudo da forma mais fidedigna possível. Os autores começaram a compilar dados em 2018 e resolveram esperar o fim daquele ano para que os proprietários rurais se regulamentassem junto ao CAR, conforme estabelecido pelo Código Florestal.

Manobras de Michel Temer (MDB) e de Jair Bolsonaro (PSL), no entanto, adiaram indefinidamente o prazo para adesão dos proprietários. O limbo favorece parte dos fazendeiros que desmataram ilegalmente e, após o cadastro, teriam de ressarcir o estado e recuperar as áreas destruídas.

Os pesquisadores constataram, além da predominância territorial do grande latifúndio, o número elevado de terras privadas em interseção com terras públicas (176 milhões de hectares). Estudo do Imazon divulgado na segunda semana de junho mostra que a solução encontrada pelo governo brasileiro para sanar este problema pode causar um prejuízo R$ 118 bilhões aos cofres públicos com a alienação dessas propriedades em interseção.

O prejuízo advém da chamada "MP da Grilagem", sancionada em 2017 por Temer e que deve abrir caminho para que frações públicas dentro de terras privadas, exploradas ilegalmente pelos proprietários, sejam vendidas a preços abaixo dos praticados no mercado.

"Essa MP do Temer era uma tentativa de regularização fundiária, só que tinha vários jabutis [adendos estranhos ao propósito original da lei] no meio. Tentava resolver uma parte, só que acabou permitindo a venda de áreas griladas. Ela incentiva esse movimento", diz Guedes.

"Excetuando-se alguns problemas técnicos entre as bases de dados, as sobreposições de terras públicas com privadas ou de terra privadas entre si podem estar associadas a graves problemas fundiários, como grilagem de terras e corrupção de cartórios no registro da propriedade", afirmou em nota o pesquisador da Esalq/USP Gerd Sparovek, também autor do artigo.

Concentração de terras e pautas do governo

Desde que empossado, o governo Bolsonaro reitera determinadas teses sobre as terras brasileiras, com especial enfoque nas áreas demarcadas para os povos indígenas. O presidente já afirmou mais de uma vez que não demarcará nenhuma terra durante seu mandato, e, nos meses que sucederam sua eleição, atacou algumas vezes a reserva indígena ianomâmi (localizada em Roraima), criticando sua suposta baixa densidade demográfica.

Disse o presidente, em evento em novembro passado antes de assumir o cargo: "Justifica, por exemplo, ter a reserva ianomâmi de duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro para, talvez, 9.000 índios? Não se justifica isso aí".

O estudo mostra que apenas 13,2% do território do país é demarcado para os povos indígenas (cerca de 112 milhões de hectares). Outro alvo do governo, as unidades de conservação somam 93 milhões de hectares, ou 11% da área do Brasil. Já os territórios quilombolas amargam 0,4% do território do país (3 milhões de hectares).

"Essas áreas protegidas cumprem um papel fundamental para a preservação da vegetação nativa. Outra questão que é importante deixar clara: essas unidades de conservação e terras indígenas estão concentradas na Amazônia. Na mata atlântica, cerrado, nos pampas e outros biomas, temos pouquíssimas terras protegidas", pontua o pesquisador do Imaflora.

Os números contrastam com a quantidade de grandes latifúndios no país (os pesquisadores seguiram a lei brasileira e utilizaram o número de 15 módulos fiscais como base para determinar essas propriedades).

As grandes fazendas ocupam a maior parte do território do país (22%), com 182 milhões de hectares. Por outro lado, os assentamentos rurais --normalmente propriedades desapropriadas que entram no radar da reforma agrária-- ocupam 5% do território, ou 41 milhões de hectares.

Isso porque a gente não conseguiu agregar os imóveis que têm o mesmo dono. Se tivéssemos o Cadastro Ambiental Rural com CPF, a gente iria descobrir que isso é muito mais concentrado
Luís Fernando Guedes Pinto, pesquisador do Imaflora

Os números de terras no Brasil

  • País tem 8,5 milhões de km², ou 850 milhões de hectares
  • Maior parte é de terras privadas (44%), e quase 17% da área do Brasil não tem propriedade conhecida pelo Estado
  • Terras públicas ocupam 36% do território nacional; cidades, corpos d'água e infraestrutura cobrem apenas 3%
  • Enquanto grandes latifúndios ocupam 22% (182 milhões de hectares) da área do país, terras indígenas e quilombolas somam 13,6% (cerca de 115 milhões de hectares)
  • Unidades de conservação somam 93 milhões de hectares, ou 11% da área do Brasil e assentamentos abrangem 5% do território, ou 41 milhões de hectares