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Pedidos de mineração atingem mais de 200 terras indígenas na Amazônia

Mineradoras têm pedidos de estudo ou lavra registrados em mais de 200 terras indígenas na Amazônia - Getty Images/iStockphoto
Mineradoras têm pedidos de estudo ou lavra registrados em mais de 200 terras indígenas na Amazônia Imagem: Getty Images/iStockphoto

Rafael Neves

Do UOL, em Brasília

13/03/2022 04h00Atualizada em 14/03/2022 11h21

Com votação na Câmara dos Deputados prevista para a primeira quinzena de abril, o projeto de lei que libera mineração em terras indígenas deve impactar mais de 200 reservas só na Amazônia. É o que indicam dados oficiais da ANM (Agência Nacional de Mineração), extraídos e cedidos ao UOL pela plataforma Amazônia Minada, uma ferramenta de monitoramento mantida pelo site InfoAmazonia.

O levantamento aponta que a ANM recebeu, desde a década de 1970, pedidos de autorização para pesquisa mineral ou lavra garimpeira em áreas que invadem os limites de 204 terras indígenas registradas na Amazônia Legal, que abrange Mato Grosso, Maranhão e todos os estados da região Norte. Destas, 170 já estão registradas junto à Funai (Fundação Nacional do Índio), enquanto as demais estão em alguma etapa do trâmite de homologação.

Segundo a Constituição, a mineração em terras indígenas só pode ocorrer hoje com aval do Congresso e mediante consulta às comunidades afetadas. Apesar disso, a ANM mantém como ativos mais de 2,6 mil pedidos de atividade minerária em áreas que penetram, em maior ou menor extensão, os limites das terras indígenas.

Boa parte destes processos é antiga, mas neste ano já foram protocolados 23 requerimentos. Em 2021, foram outros 93. Somente a terra indígena Yanomami, em Roraima, que já sofre há décadas com invasões ilegais de garimpeiros, é alvo de 500 pedidos ativos, que se acumulam desde 1974 (veja detalhes abaixo).

Via de regra, pedidos desse tipo não têm sido autorizados pela ANM, mas seguem como ativos no sistema apesar da irregularidade. Mesmo que permaneçam engavetados, todavia, estes processos mostram quais terras indígenas são mais visadas pelas mineradoras e devem se tornar alvos preferenciais se a prática for legalizada, como defende o governo.

"Por trás desses pedidos, principalmente os de pesquisa, estão mineradoras. Estas empresas só não entram e não exploram as áreas por uma questão de reputação, mas mantêm os pedidos lá. O que elas fazem, na verdade, é uma reserva de mercado", afirma Larissa Rodrigues, gerente de projetos do Instituto Escolhas, que conduz pesquisas sobre desenvolvimento sustentável.

Procurada, a ANM afirmou que o sistema eletrônico da agência "não aceita áreas incidentes sobre unidades de conservação de proteção integral, sobre terras indígenas ou outras áreas bloqueadas". Segundo a agência, "nenhum requerimento para execução de atividade mineral prospera em áreas com bloqueio legal".

O UOL confirmou, no entanto, que há interseções geográficas entre terras indígenas e as áreas desejadas pelas empresas. Todos os pedidos de mineração captados pelo monitoramento do Amazônia Minada têm alguma sobreposição espacial com as terras indígenas.

Estes dados foram tirados diretamente do Sigmine (Sistema de Informação Geográfica da Mineração), mantido pela ANM. A ferramenta do Amazônia Minada é de acesso público e pode ser consultada livremente.

Áreas mais visadas

A maioria das reservas de minerais metálicos pelo mundo está em solos do pré-cambriano, período geológico que vai desde a formação da Terra até 500 milhões de anos atrás. A Amazônia, que tem 40% do seu território em áreas pré-cambrianas, é rica em uma série de substâncias e alvo de atividades minerárias desde a primeira metade do século passado.

No sistema da ANM, os pedidos mais antigos de pesquisa minerária que avançam sobre terras indígenas, e que ainda estão ativos, remontam a 1972. Na maioria dos casos, as áreas cobiçadas são limítrofes às terras demarcadas pela Funai, e ultrapassam ligeiramente estas fronteiras.

Um exemplo é a terra indígena Kayapó, no sudeste do Pará, onde moram 4546 pessoas, segundo o Censo 2010. O povo Kayapó, cuja população total gira em torno de 12 mil, também habita outras 11 terras no Pará e no Mato Grosso. Segundo o banco de dados Povos Indígenas do Brasil, do ISA (Instituto Socioambeintal), eles vivem em aldeias dispersas pelo curso de rios afluentes do Xingu.

Os mapas gerados pelo Amazônia Minada, utilizados pelo UOL com autorização da plataforma, mostram a dinâmica dos requerimentos das empresas. Ao redor da TI Kayapó, por exemplo, há 112 pedidos ativos para alguma atividade minerária. O mais comum é o de pesquisa, identificado em amarelo:

Mapa Kayapó - Reprodução/Amazônia Minada - Reprodução/Amazônia Minada
Mapa dos pedidos de mineração sobre a terra indígena Kayapó
Imagem: Reprodução/Amazônia Minada

Mais da metade dos processo na área da TI Kayapó tratam da exploração de ouro, mas também há pedidos ativos para outros minérios: cobre, ferro, manganês, cassiterita (minério de estanho), cobre, tungstênio e zinco, entre outros. Embora haja muitos casos antigos, 28 novos pedidos na área foram protocolados desde 2019.

Existem terras indígenas em que o interesse das empresas não se restringe às regiões limítrofes. É o caso das TIs Yanomami e Raposa Serra do Sol, em Roraima. Apenas sobre a TI Yanomami, onde moram cerca de 27 mil pessoas, os dados apontam um total de 500 pedidos ativos por uma ampla extensão do território. A maioria é antiga, mas desde 2019 a ANM registrou nove processos novos:

Mapa Yanomami - Reprodução/Amazônia Minada - Reprodução/Amazônia Minada
Mapa dos pedidos de mineração sobre a terra indígena Yanomami
Imagem: Reprodução/Amazônia Minada

Possível legalização

Desde antes de chegar ao poder, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (PL) defende a abertura destas terras para mineração. Em abril daquele ano, ele recebeu representantes de povos indígenas em Brasília, afirmou que Roraima teria "trilhões embaixo da terra" e declarou que "índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica".

Meses depois, em fevereiro de 2020, o governo enviou ao Congresso o projeto de lei que esttá hoje em discussão. Mas o deputado Rodrigo Maia (sem partido-RJ), presidente da Câmara à época do envio, se comprometeu com ambientalistas e lideranças de povos indígenas a não colocar o texto para votação.

Com a chegada de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara, porém, Bolsonaro passou a emplacar na Casa mais medidas de interesse do governo. Em fevereiro de 2022, o Planalto divulgou seus projetos prioritários a serem votados na Câmara durante o ano. Além da proposta sobre as terras indígenas, está nessa lista um projeto que facilita o uso de agrotóxicos.

Isto está bem claro: o interesse do PL 191 é puramente a cobiça, é o ouro, é o minério que as terras indígenas, que os povos indígenas têm protegido há milhares de anos. Essa cobiça, esse interesse puramente individualista, quer impedir que os povos indígenas continuem protegendo suas terras".
Deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), em discurso na Câmara em 9 de março

Consultado pelo UOL, o ministério de Minas e Energia saiu em defesa do projeto. Segundo nota enviada à reportagem, a ideia do governo é acabar com os danos causados pelo garimpo ilegal e ter mais controle sobre a atividade.

"A não regulamentação da matéria, além de insegurança jurídica, traz consequências danosas para o País, tais como: não geração de conhecimento geológico, potencial de energia, emprego e renda; lavra ilegal; não pagamento de compensações financeiras e tributos; ausência de fiscalização do aproveitamento de recursos minerais e hídricos; riscos à vida, à saúde, à organização social, costumes e tradições dos povos indígenas; conflitos entre empreendedores e indígenas", afirma a pasta.

"Esse projeto é inconstitucional, inaceitável e injustificável", atacou, em discurso na Câmara no último dia 9, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), única parlamentar indígena no Congresso. "Quem pensa que vai solucionar a economia do Brasil está errado, porque a imagem do Brasil vai fazer com que os financiadores e investidores parem de apoiar a economia brasileira. E não é isso o que desejamos", afirmou.

A deputada fez as críticas na tribuna da Câmara no dia em que a Casa aprovou um requerimento de urgência para o projeto, por um placar de 279 votos a 180. Lira anunciou a criação de um grupo de trabalho que vai analisar o texto, previsto para ser votado em abril.

Para Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, é uma falácia o argumento de que a legalização tornaria a mineração inofensiva para o meio ambiente. "Isso não existe. A mineração, como um todo, não é uma atividade sustentável. Ela usa um recurso natural que não é renovável e tem impactos ambientais. Ela é praticada em alguns países com salvaguardas, mas sustentável não é", afirma.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A versão original desta reportagem afirmava que 40% das terras indígenas do Brasil já foram alvo de pelo menos um pedido de mineração em seus teritórios. O banco de dados a que o UOL teve acesso, no entanto, tratava apenas das terras indígenas da Amazônia, e não de todo o país. Os erros foram corrigidos.